08 Março 2024
"'Toda violência contra as mulheres é uma profanação de Deus' (Papa Francisco). É preciso dar um basta à retórica da misoginia. O clericalismo-patriarcal e o sexismo são realidades em muitas igrejas autodenominadas cristãs. Se os cristãos não enfrentam um problema, eles se tornam parte do problema. Em igrejas governadas exclusivamente por homens, qual o papel das mulheres?", escreve Élio Gasda, doutor em Teologia pela Universidad Pontifícia Comillas (Madri), pós-doutorado em Filosofia Política (Universidade Católica Portuguesa), professor da área de Ética Teológica e Práxis Cristã e diretor da Coleção Theologica FAJE, em artigo publicado por Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, 07-08-2024.
O Dia Internacional da Mulher foi instituído pela ONU em 1975. A história do 8M está marcada pela luta das mulheres por seus direitos políticos, econômicos e sociais. Inicialmente, essa data remetia à reivindicação por direitos trabalhistas e igualdade salarial, mas, atualmente, simboliza a luta das mulheres contra o machismo, e todas as formas de violência de gênero. Milhões de mulheres continuam lutando todos os dias por direitos humanos e por cidadania, independência da tutela patriarcal, pelo direito de decidir sobre seus projetos de vida, sua sexualidade e seus corpos.
As lutas das mulheres antecedem a própria fundação das Nações Unidas:
Copenhague, agosto de 1910. Cronologicamente é o primeiro evento histórico do Dia da Mulher. Na II Conferência Internacional das Mulheres que reuniu representantes de 17 países, Clara Zetkin (Alemanha, 1857-1933) propôs a criação de uma jornada anual de manifestações internacionais para chamar a atenção às reivindicações das mulheres trabalhadoras. A proposta foi aprovada e assim se celebrou pela primeira vez na Áustria, Dinamarca, Suíça e Alemanha o Dia Internacional da Mulher.
Nova York, 25 de março de 1911. 146 trabalhadores, incluindo 125 mulheres, quase todas imigrantes entre 13 e 23 anos, morreram em um incêndio ocorrido na Triangle Shirtwaist Company. O dono da fábrica trancava seus funcionários durante o expediente como forma de conter motins e greves. No momento do incêndio, as portas estavam trancadas.
Rússia, 8 de março de 1917. Por “Pão, paz e abaixo a autocracia”, mulheres tecelãs e mulheres de soldados na guerra e de familiares tomaram as ruas de Petrogrado (atual São Petersburgo). De fábrica em fábrica, elas convocaram os operários contra a dinastia dos Romanov que governava a Rússia sustentada pelos grandes proprietários rurais e pela Igreja Ortodoxa desde o século XVII. Exigiam também a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial (1914-19018). No país mais populoso da Europa, a maioria da população era extremamente pobre e analfabeta. Liderada pelas mulheres, a revolta se estendeu por vários dias, transformou-se em mobilização política e ajudou a derrubar o poderoso czar Nicolau II.
Clara Zetkin, no livro Como nasce e morre o fascismo, publicado em 1923 (no Brasil: Autonomia Literária, 2019) apontou três traços nucleares do fascismo: o nacionalismo, que coloca o país acima de todos; a violência brutal, primeiro contra os pequenos trabalhadores rurais (“incinerando suas organizações e assassinando seus líderes”), para em seguida propagar o terror fascista ao proletariado urbano; o racismo e o machismo. Para combater o capitalismo fascista, arremata Zetkin, é preciso unir todas as vítimas do capitalismo, principalmente as mulheres. Livro extraordinário. Atual. Necessário.
As trabalhadoras estão na vanguarda de medidas concretas que estão ajudando a derrubar os pilares que sustentam as estruturas de injustiça e violência. Muitos direitos garantidos legalmente são resultantes das lutas das mulheres que entenderam que ‘o pessoal é político’. Entretanto, tais conquistas são insuficientes para derrotar o capitalismo sexista patriarcal que mantém milhões de seres humanos submetidos à exploração afundados na barbárie da fome, das guerras, do desemprego.
Mais de um bilhão de pessoas vivem na pobreza extrema, 70% são mulheres e meninas. No genocídio do povo palestino em Gaza, mais 70% dos assassinados são mulheres e crianças.
O número de casos de violência contra as mulheres é altíssimo em todos os lugares, esferas e setores. Pavor, terror, pânico. Essa economia que mata (Papa Francisco) descarrega sobre as mulheres os maiores flagelos. O machismo mata todos os dias. Como é difícil e perigoso ser mulher em certos ambientes!
O Brasil, assim como a maioria das democracias liberais, chegou a século XXI reconhecendo que a violência doméstica é violência, e não um direito do parceiro; que o abuso sexual e o assédio moral são crimes, e não tradição cultural. Não é não! O lento e árduo processo de desnaturalização das formas de violência de gênero vem provar que o machismo é estrutural, e o patriarcado é um sistema tão enraizado que ainda está longe de ser destruído.
Celebrar o 8M é um ato político. Em um país masculinizado, branco, cristão-conservador, é imperativo resgatar as raízes do Dia da Mulher. O mercado fez dessa data uma oportunidade para aquecer o comércio. Flores, presentes, bombons de qualidade duvidosa, e jantares apagam seu sentido original.
E reforçam o machismo dos demais dias do ano em que o gênero feminino continuará como principal alvo da violência sexual, moral, psicológica.
“Toda violência contra as mulheres é uma profanação de Deus” (Papa Francisco). É preciso dar um basta à retórica da misoginia. O clericalismo-patriarcal e o sexismo são realidades em muitas igrejas autodenominadas cristãs. Se os cristãos não enfrentam um problema, eles se tornam parte do problema. Em igrejas governadas exclusivamente por homens, qual o papel das mulheres?
A história do 8 de Março nos deixa um alerta esperançoso:
“Cuidado com as mulheres quando se sentem enojadas de tudo que as rodeia e se levantam contra o velho mundo. Nesse dia nascerá o novo mundo” (Século XIX, Louise Michel).
Para elas, todos os dias são seus. E são dias de luta! Dias mulheres virão!
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Dias mulheres virão! Artigo de Élio Gasda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU