Por que o Vaticano tornou as bênçãos para casais do mesmo sexo um fato consumado

Foto: Madalena Veloso | Unsplash

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04 Março 2024

"A publicação da declaração Fiducia supplicans diz muito sobre o exercício da autoridade do Papa Francisco no contexto de uma Igreja sinodal".

O comentário é de Jean-François Chiron, presbítero da Diocese de Chambéry e professor de Teologia na Universidade Católica de Lyon, na França. O artigo foi publicado em La Croix International, 29-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

O que mais se pode acrescentar a tudo o que já foi dito sobre a declaração Fiducia supplicans? Ainda é possível se interrogar como o documento perturba o processo sinodal – ou mesmo o “fragiliza” – como alguns observaram. A sinodalidade é a valorização do papel de “alguns”, em vez de apenas “um só”, em todos os níveis da Igreja. Como o posicionamento do “um só”, o papa, se insere na ação dos “alguns”, os bispos?

Reconhecemos que as circunstâncias da publicação não honraram os princípios básicos da abordagem sinodal. O Dicastério para a Doutrina da Fé, que publicou o texto, não consultou seus próprios membros nem quaisquer outros escritórios da Cúria Romana. Talvez houvesse o desejo de evitar vazamentos, inevitáveis em uma questão tão delicada. Mas essa preocupação por si só não justifica tal procedimento. Então, como isso pode ser explicado?

Consideremos um elemento fundamental – no catolicismo, a sinodalidade envolve três termos – “um só”, “alguns” e “todos”. Não podemos ignorar o “um só”, neste caso, o papel do papa. Caso contrário, nos afastaríamos da tradição católica.

Mas também estamos lidando com uma questão de temperamento. O teólogo Yves Congar disse certa vez: “Acho que um estilo bastante monárquico praticado por João XXIII seria muito colegial, enquanto um estilo colegial praticado por Pio X ou Pio XI seria muito monárquico”. A sinodalidade implementada pelo Papa Francisco terá sempre algo de “monárquico”.

Enfrentando o fato consumado

Ao publicar Fiducia supplicans, é provável que as autoridades vaticanas também quisessem abordar uma questão que poderia ter ofuscado as discussões durante a sessão da assembleia do Sínodo de outubro de 2024. Esse foi o caso do chamado Sínodo sobre a Amazônia, em que a questão da ordenação dos viri probati (homens de virtude comprovada) ao sacerdócio ofuscou o contexto mais amplo da sinodalidade.

Mas vamos arriscar uma hipótese: Francisco e seus assessores doutrinais quiseram apresentar um fato consumado ou uma decisão pré-determinada, porque era previsível que um debate impediria o progresso desejado nessa questão pelo papa.

A controvérsia sobre a ordenação de homens casados durante a assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia pode ter aberto um precedente – a oposição categórica de alguns impediu todo consenso e, portanto, qualquer progresso. Todos conhecemos o ditado: “Se quer ir rápido, vá sozinho; mas, se quiser ir longe, vá acompanhado”. Infelizmente, caminhar juntos pode impedir o progresso.

Desarmando a situação

Sem dúvida, as autoridades do Dicastério para a Doutrina da Fé pensaram que tinham “desarmado” suficientemente a situação ao distinguir entre as bênçãos, enfatizando que o matrimônio não estava em questão.

Isso não impediu a diversidade de reações, algumas bastante hostis. No estilo “escondam este casal que eu não consigo ver”, alguns bispos na França declararam que se limitariam a abençoar os indivíduos, rejeitando assim o que um documento vaticano com dimensões normativas permite (e se os padres seguirem a diretriz vaticana em vez da de seu bispo?).

O Conselho Permanente da Conferência dos Bispos da França teve o cuidado de não repudiar ninguém em Roma ou em qualquer outro lugar. Ele fala de abençoar os indivíduos sem mencionar – mas também sem rejeitar – a bênção dos casais. Mais radical é a rejeição por parte dos bispos da África Subsaariana, que foi feita em nome da preservação da cultura local, mas também recusando uma cultura ocidental imperialista – alertando, de passagem, contra a cumplicidade da Igreja com essa cultura.

Seria concebível uma abordagem alternativa? Imaginemos que o Vaticano tivesse jogado junto com as conferências episcopais, propondo implementar um documento que formulasse uma possibilidade, deixando-lhes ao mesmo tempo uma escolha. Isso teria reconhecido, desde o início, a legitimidade da diversidade de práticas em escala universal, preservando ao mesmo tempo a fé.

Recordemos a fórmula de Irineu, o bispo de Lyon do século II, em uma carta ao Papa Vítor I sobre uma controvérsia relativa ao jejum durante a Quaresma. “O desacordo no jejum confirma o nosso acordo na fé”, escreveu ele.

Mas a aceitação de uma certa diversidade não está, como mostra a história, no DNA católico. Há um reflexo natural em dizer que a fé, que por definição é una e indivisível, está em jogo. E os bispos que rejeitam a declaração Fiducia supplicans? Até onde pode ir a diversidade sem ser uma incoerência? Aquilo que é possível em uma margem do Rio Loire não é possível na outra?

Um paradoxo único

Por fim, relembremos um paradoxo. Até Francisco se tornar papa, os teólogos que estavam ansiosos por “mover as linhas” na Igreja no que diz respeito tanto à substância de certas questões quanto às modalidades de tomada de decisão promoveram instituições que pudessem contrabalançar o primado romana, a começar pelas conferências episcopais.

O “movimento” de reforma parecia estar do lado dos bispos – os “alguns” – enquanto a proteção do status quo estava no domínio do “um só” romano. Isso ocorreu em continuidade com o Concílio Vaticano II, em que os bispos pressionaram pela mudança, enquanto os papas desempenharam um papel moderador e mediador.

Mas as coisas mudaram repentinamente com a eleição de Francisco. O movimento reformista está agora do lado de Roma, como evidenciado por documentos como Amoris laetitia e Fiducia supplicans, mas também em textos mais programáticos como a exortação apostólica Evangelii gaudium.

O espírito deste pontificado é de reforma. E agora são os bispos que resistem a essa reforma – na África, na Europa Oriental e nos Estados Unidos – enquanto há um sentimento de “esperar para ver” na Europa Ocidental (exceto na Bélgica e na Alemanha).

Então, como podemos continuar valorizando os “alguns”, em vez do “um só”, enquanto procuramos mover as linhas? Essa é a questão fundamental sobre a sinodalidade e seus apoiadores que a declaração Fiducia supplicans trouxe à plena vista.

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