08 Novembro 2023
"Quem entre nós não subscreveria essas palavras do salmista sobre a sociedade do seu tempo? Sim, hoje temos consciência de que a comunicação está particularmente doente, que a manipulação através das palavras é frequente e praticada na vida quotidiana até por pessoas simples, mas acima de tudo temos medo da parrésia, virtude que deveríamos ter herdado de Sócrates como arte de dizer sempre a verdade, mesmo a alto custo", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, membro da comunidade Casa Madia, em artigo publicado por La Repubblica, 06-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Talvez nunca antes tenhamos falado e prestado tanta atenção à escuta porque estamos atormentados por tantas palavras, mensagens e ruídos que nos impedem uma comunicação autêntica.
O que se exige em cada situação e de forma obsessiva é a escuta, o espaço a ser disponibilizado para tornar a palavra fecunda. A escuta, que não é simplesmente “ouvir”, é um ato intencional que nasce da vontade e é o resultado de uma decisão que comporta reunir forças para acolher e receber uma palavra. Mas é preciso dizer que a palavra que precede a escuta deve ter sua própria gramática precisamente por ser palavra, evento criado apenas pelo homem.
Numa época cultural marcada por diversas “crises” precisamos nos questionar novamente sobre o que é o homem. Como é possível escutar e testemunhar “duplas palavras”, mentiras proclamadas por quem pensa diferente de como fala, sem sentir a exigência de uma gramática da palavra que lhe devolva a veracidade e a autoridade? Segundo a tradição judaico-cristã, o pior sintoma do mal-estar social é a corrupção da palavra, quando “são poucos os fiéis entre os filhos dos homens. Cada um fala a falsidade ao seu próximo; falam com lábios lisonjeiros e coração dobre." (Salmo 12).
Quem entre nós não subscreveria essas palavras do salmista sobre a sociedade do seu tempo? Sim, hoje temos consciência de que a comunicação está particularmente doente, que a manipulação através das palavras é frequente e praticada na vida quotidiana até por pessoas simples, mas acima de tudo temos medo da parrésia, virtude que deveríamos ter herdado de Sócrates como arte de dizer sempre a verdade, mesmo a alto custo. Falar como ato de comunicação e testemunho é muito cansativo e exige disposição para entrar em conflito com a posição majoritária. E, pelo contrário, na sociedade e na Igreja, a hipocrisia é favorecida mais do que nunca, o parecer não como a pessoa é, mas de modo a obter sucesso e poder. É significativo que no Evangelho Jesus perdoou todos os pecados, mas nunca disse uma palavra de compreensão e de misericórdia para com os hipócritas, os religiosos duplos por vocação demoníaca, ignavos e temerosos em relação ao poder, algozes dos últimos. Mas hoje as pessoas entenderam, mesmo que ainda não a ponto de indignação, que sobretudo aqueles que estão no poder e são “duplos”, não dizem o que pensam, mas apenas o que os ajuda a prosseguir os seus interesses: por isso não tem autoridade. É claro que todos deveremos crescer na consciência de que a palavra, que distingue o homem de todos os seres vivos, precede toda comunicação e toda escuta. "No princípio era a palavra!".
A palavra que nós falamos não é mais nossa, mas é entregue a quem a ouve e não pode ser chamada de volta porque pertence a quem a escuta.
Como dizem os agricultores do Monferrato: “Lembre-se, as palavras são como pedras”. Não há verdadeira escuta sem ética da palavra.
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A palavra e a escuta. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU