19 Setembro 2023
A expansão agrícola nos pampas argentinos reduziu a profundidade do lençol freático, alterando os ciclos hídricos, o que está causando inundações cada vez mais graves na região.
A reportagem é de Andrea J. Arratibel, publicada por El País, 18-09-2023.
Uma criatura praticamente desconhecida despertou nas planícies sul-americanas. O lençol freático, acúmulo de água subterrânea sob o solo, aumenta cada vez mais nas planícies da região como resultado da perda de vegetação nativa enraizada e do desequilíbrio entre a demanda de água que o clima exerce sobre as plantas e aquela que elas podem suportar. Um fenômeno derivado da rápida e feroz expansão agrícola, que provoca inundações cada vez mais graves.
A profundidade em que se encontra o lençol freático varia dependendo da harmonia entre o consumo de água e a precipitação. Composto por partículas sólidas, pedaços de rocha, restos orgânicos e espaços vazios que retêm líquidos, esse manto subterrâneo está subindo de nível em algumas regiões do Hemisfério Sul. “Também conhecido como napa, funciona como uma esponja sob nossos pés: quando todos os seus poros estão cheios de água, sobe à superfície, gerando inundações permanentes”, explica Esteban Jobbágy, agrônomo e autor de um estudo que mostra a dramática situação ecológica cenário que os pampas argentinos oferecem. Suas planícies tornaram-se um laboratório natural para avaliar os efeitos hidrológicos da agricultura de sequeiro. Aquele que, nos últimos 40 anos, avançou sem freios sobre o território.
Como aponta o estudo, publicado na revista Science, o desmatamento selvagem de campos para plantio e as mudanças no uso da terra estão alterando o equilíbrio hidrológico em grandes áreas da América do Sul. Florestas de espinhos, alfarrobeiras, savanas e pastagens – vegetação da ecorregião Chaco-Pampeana adaptada à aridez – que nos últimos 40 anos foram eliminadas e substituídas por culturas anuais secas. “Campos cultivados há gerações começam a se encher de poças, transformando-se lentamente em lagoas permanentes, transbordando rios e inundando cidades inteiras nas províncias de Córdoba, San Luis e Santa Fé, entre outras”, afirma o cientista.
A transformação da paisagem natural na última metade do século tem a sua origem na procura global de cereais. Um mercado que, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), irá disparar ainda mais, levando à rápida conversão de amplas extensões de pastagens e florestas nativas da América do Sul em terras puramente agrícolas. Estas paisagens planas, que abrigam alguns dos solos mais produtivos do mundo, são particularmente sensíveis a alterações na dinâmica do ciclo da água. “Com o qual ainda temos muito que aprender. Muitos dos habitantes da planície vivem alguns metros acima do lençol freático, mas a maioria nem sabe que ele existe”, afirma o cientista. Pelo que indicam as medições do seu estudo, o lençol freático passou de estar entre 12 e 6 metros abaixo da superfície para 4 e 0 metros hoje. O que implica um aumento de níveis de 17 cm por ano em diferentes partes da região dos Pampas.
Uma terra agrícola inundada, na Argentina. (Foto: Divulgação)
“Ao mudar o tipo de vegetação alteramos a capacidade do sistema de esvaziar a água, de secá-la”, diz Jobbágy. Apesar da grande seca que a região sofre há anos, a água não consegue evaporar. “Se olharmos para os registos das últimas décadas, o que aqui chove é menos do que o sol consegue roubar, mas a paisagem mantém a água à superfície, que inunda cada vez com mais frequência”, explica.
Este fenômeno, sobre o qual tão pouco se sabe, começou com o “Boom da Soja”, que chegou em meados da década de setenta, provocando uma expansão predatória da fronteira agrícola no país. Atualmente, a produção deste cereal coloniza entre metade e dois terços da planície argentina cultivada. “O resto é quase todo plantio de milho, acompanhado de trigo e cevada, dependendo do verão ou inverno”, diz Jobbágy sobre “uma agricultura que cresceu em larga escala ajustando-se ao capitalismo selvagem. Ainda há pequenos produtores que trabalham nas suas pequenas parcelas, mas as grandes áreas, algumas de centenas de milhares de hectares, estão nas mãos de grandes empresas.” O recente aumento do preço internacional do trigo devido à guerra na Ucrânia prevê que a Argentina expandirá ainda mais a área cultivada para o produto tão procurado.
“Estamos falando de um país que tem pouco planejamento territorial, com pouquíssima regulamentação, onde as terras passaram de mão em mão de forma muito violenta. Algumas províncias estão discutindo ideias normativas para transformá-las em regulamentos, mas são apenas os primeiros passos”, explica o cientista.
As conclusões de sua pesquisa revelam a escalada das inundações associadas à expansão da agricultura de sequeiro na América do Sul e os efeitos da elevação do lençol freático, “mas seus impactos e riscos ainda são pouco conhecidos, constituindo grandes desafios de sustentabilidade”. avisa.
Para travar a crescente instabilidade do sistema, o estudo em que está imerso há anos faz um apelo urgente à implementação de políticas de uso do solo que apoiem a agricultura, a gestão da água e as populações rurais de uma forma mais inteligente. “E que integrem também a conservação do pouco de natureza que nos resta, aqueles pedacinhos de floresta, pântanos e pastagens”, afirma Jobbágy.
Nas palavras do cientista, a justiça social e ambiental estão completamente interligadas na paisagem agrícola da planície argentina. “O que representa muitos desafios. Somos um país que praticamente vive da exportação de grãos e essas mudanças hidrológicas podem colocar em xeque o bom viver do território e da população”, afirma o autor do estudo publicado em junho.
Ao concluir, os resultados do trabalho são uma oportunidade para compreender melhor os impactos da transformação de paisagens naturais em campos de cultivo e seus efeitos hidrológicos abaixo do solo. Também para a concepção de políticas que ajudem a encontrar o equilíbrio do ecossistema. “Mudamos a forma como a planície armazena e transporta água, dando origem a uma criatura desconhecida, que começou a acordar há décadas e que não voltará a dormir facilmente. Somente com bons acordos aprenderemos a conviver com isso.”