Sobre o pós-teísmo. Artigo de Enrico Peyretti

(Foto: Ben Vaughn | Unsplash)

16 Fevereiro 2023

Há algum tempo, pelo menos desde a publicação do livro “Oltre Dio: in ascolto del Mistero senza nome” [Além de Deus: em escuta ao Mistério sem nome] (Gabrielli, 2021), embora a questão tenha raízes que remontam ao início do século passado, discute-se o pós-teísmo.

Com esta reflexão de Enrico Peyretti, continuamos dando atenção a um tema “crucial” para a conjugação da nossa fé na história, depois do artigo de Raniero La Valle intitulado “Um Deus do passado ou sempre contemporâneo na história?”.

O texto de Peyretti é um discurso proferido no primeiro encontro internacional ligado ao novo paradigma pós-teísta, organizado em 2 de abril de 2022 pela editora Gabrielli, em colaboração com a Adista e a Officina Adista, em torno do tema “Qual Deus? Qual Cristianismo? A necessidade de repensar a fé”, publicado no livro organizado por Claudia Fanti e intitulado “Quale Dio, quale cristianesimo: la metamorfosi della fede nel XXI secolo” [Qual Deus, qual cristianismo: a metamorfose da fé no século XXI] (Ed. Gabrielli, 2022).

Peyretti é teólogo, ativista italiano, padre casado, pesquisador do Centro de Estudos Domenico Regis, em Turim, membro da Comunidade Cristã de Via Germanasca, na mesma cidade, e ex-presidente da Federação Universitária Católica Italiana – Fuci. O artigo foi publicado em Viandanti, 13-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

É possível ir além do teísmo, ou seja, da “ideia de um Deus absolutamente separado do mundo que intervém de fora para salvá-lo”?

Há uma verdadeira necessidade de superar o teísmo! É bom, é interessante que toda imagem de Deus seja sempre superada, corrigida, refinada. Deus nunca é um objeto que possa ser circunscrito por uma teologia concluída. É realidade grande.

O teísmo pensa um deus mágico, onipotente, separado do mundo, senhor, juiz arbitrário, modelo fácil para os tiranos, que quer nos salvar a partir de fora de nós. O Deus da lei, do prêmio e da pena. No Dies irae, ele era chamado Rex tremendae maiestatis. Um Deus Terror, não Amor. Não nos faz felizes. Continuamente fazemos falsos ídolos para nós mesmos: até mesmo Maradona era chamado de “deus”. Se acordarmos, nos livraremos disso.

O maior pós-teísta

Entre os muitos perfis de Deus, claros ou vagos, há uma proposta honesta e clara no coração do evangelho que nos chegou de Jesus de Nazaré: “Ninguém jamais viu a Deus” (duas vezes no Novo Testamento, Bíblia cristã). O evangelho parte da nossa ignorância sobre Deus, da necessidade de romper a imagem dominante e de rever continuamente a sua imagem, para que seja mais verdadeira.

“Ninguém jamais viu a Deus” significa duas coisas no evangelho:

1) João 1,8: Jesus “explicou” Deus (έξηγήϭατο), apresentou-o, em sua própria pessoa; Jesus está em relação viva, filial e íntima com Deus, é animado em plenitude pelo seu Espírito. Deus se manifesta no homem Jesus, nele se fez carne humana. Deus é humano em Jesus.

2) Primeira Carta de João 4,12: ninguém jamais viu a Deus, mas, se nos amamos, ele está aqui, nós o experimentamos presente, é uma realidade viva, muito além dos conceitos.

Jesus é pessoa humana e manifesta, em si mesmo, um Deus humano e pessoal. O Deus de Jesus é solidário conosco, é pessoa con-vivente, amigo, espírito animador íntimo de liberdade, presente nas relações de amor e justiça, estimulador e suporte para a contínua retomada no caminho do bem. Parece claro para mim: Jesus é o pós-teísta mais forte e claro.

Em espírito e verdade

Eu ouço isto de Jesus: Deus é humano. Alguns dizem que não, que seria humano demais. Nós o tornamos humano demais?

É correto corrigir a imagem metafísica de Deus, bem cômoda para as religiões senhoriais. Nós a trazemos de volta ao humano próximo, como Jesus faz também no diálogo muito transparente com a Samaritana. Jesus revela-se a essa mulher de modo privilegiado e diz-lhe que a relação com Deus não é no templo sagrado, mas “em espírito e verdade”, ou seja:

1) é relação íntima e alta, próxima e essencial, no espírito, e

2) é relação horizontal, humana, no cotidiano da vida justa entre irmãos e irmãs humanos.

A ciência da natureza e as ciências humanas também nos incitam a repensar a velha imagem e a velha relação com Deus. Chegam respostas que eu acolho com um ponto de interrogação: Deus é uma energia? É como a força da gravidade e o despertar da primavera? É um fenômeno da natureza? É a própria natureza na sua admirável vitalidade?

Ou: Deus é apenas uma parte de nós? A parte mais profunda de nós?

 

Em vez disso, acredito que Deus é um Tu, Outro, mas Íntimo a nós. Tudo bem rejeitar a imagem de um ser distante, avassalador e inalcançável, mas Deus não pode ser dissolvido na nossa psicologia: é um Tu, de frente.

As palavras mais essenciais da mensagem de Jesus “sentimos que entram em sintonia profunda com o nosso ser, mas intuímos que vêm de outro lugar e, justamente por isso, são graça, dom a ser acolhido com estupor e gratidão, e a se fazer florescer” (Emanuela Buccioni, Rocca, 01-03-2022, p. 15).

A imagem intolerável de Deus é superada pela revelação de Jesus, mas não reduzida a uma parte de nós: Deus é vida grande, absolutamente nova, outra e, ao mesmo tempo, presença íntima. É Outro e Íntimo. Deus, grandeza boa e proximidade íntima.

É claro que a imagem mais verdadeira não é nossa posse obrigatória. Se expulso o velho Deus terrível, posso então me encontrar diante de outras máscaras de Deus: o sistema que me inclui e me dita os mitos ilusórios de uma curta temporada; figuras humanas poderosas, até mesmo religiosas, de nós mesmos, que cobrem o horizonte e exigem homenagem; o nosso poder sobre as forças naturais, iludidos de que as tornamos nossas.

Jesus continua agindo como um verdadeiro pós-teísta até mesmo em relação a esses deuses.

 

Vida-que-dá-vida

Nessa estimulante busca, encontro uma dificuldade: Deus é pensado como não pessoa. Deus não seria pessoal. O que isso significa? Pensá-lo como pessoa seria torná-lo humano demais, segundo um modelo nosso? Mas, se não é pessoa, como pode ser relação?

No evangelho de Jesus, Deus é Amor, efusão de vida, de bem, de resistência, de crescimento evolutivo. Se assim o reconhecemos, Deus é pessoa consciente de si, não é um fenômeno que acontece e não reflete, que não sabe nada de si mesmo, que não é consciente. Pensar Deus como fenômeno, energia cósmica, é panteísmo, é cosmologia, não é nem religião nem fé. A fé é relação íntima, de confiança, de confidência, de comunicação. Mas uma relação só ocorre como troca entre consciências e vontades pessoais.

A fé cristã está “além das religiões”, porque não é culto, não é dívida, não é doutrina, mas comunhão de vida. Conhecemos Deus à nossa imagem porque nós somos imagem dele. Pensamo-lo à nossa imagem porque Deus nos pensou à sua imagem. Por isso, a guerra é “sacrilégio” (diz o Papa Francisco), porque a violação do ser humano é violação de Deus. Está aí o fundamento máximo da dignidade da pessoa humana.

Além disso, nós pecamos fazendo de Deus um instrumento nosso, a pior imagem de nós mesmos: domínio das consciências, “fundamento dos tronos” (Ernst Bloch), capelão militar dos exércitos. Deus nos é tão familiar que o usamos, o ofendemos, o perdemos. Se fosse “outra coisa”, não conseguiríamos ofendê-lo: o Ato Puro de Aristóteles não se ocupa de nós mesmos e não nos interessa: está apenas escrito em um tratado de metafísica, não tem relação conosco.

Tornando-se humano, Deus se põe em nossas mãos, em risco, mas também é sempre outro, fugidio. Nós o pregamos dentro dos nossos sistemas, mas sua vida não se fixa do modo como nós queremos. É vida-que-dá-vida, e não é engolida nem está contida totalmente na nossa vida. Deus se assemelha a nós porque nós nos assemelhamos a ele. Jesus, repito a mim mesmo, é o maior pós-teísta.

Façamos uma civilização da escuta

Conhecemos Deus na relação, não na essência. Se devemos entender literalmente que “nós estamos sós”, como ouvi aqui, Deus não está nem aí para nós, nem em uma imagem nem em outra, muito menos com uma presença. Não haveria nada para ir “pós”. Deus seria uma ideia reguladora, uma imagem mental, mutável como quisermos, precisamente não uma pessoa, não uma realidade. Então, o pós-teísmo assim entendido seria uma forma gentil, não agressiva, não apodítica de ateísmo: “Estamos sós”.

Tentemos escutar, façamos uma civilização da escuta. Primeiro façamos o silêncio que limpa a mente dos ruídos, mas depois exerçamos a escuta: escuta recíproca e escuta universal. A Bíblia é um pedido de escuta: “Shemá Israel” (Deuteronômio 4). Qualquer outra sugestão de significado é um pedido de escuta.

Os poetas escutam. Eles entendem e dizem o que escutam. Só os distraídos, ocupadíssimos com coisas demais, não escutam, não são poetas. Quem já definiu tudo também não escuta. Alguém atento em escutar se dá conta, em alguma experiência, que escuta a outros: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos” (Êxodo 3,7-10). Vê, escuta, conhece. Aquele que sabe ver, escutar, conhecer se revela aos escravos. Damo-nos conta de que podemos estar em uma história de libertação.

Chegam até nós histórias distantes nas quais reconhecemos os nossos sentimentos. Alguns palpitavam como eu. É claro, homens e mulheres como nós. Mas não só. Encontro possibilidades de vida que estão escondidas em mim, que esqueci, há aqui um vento que as desperta. Alguém tem os nossos sentimentos: será que fomos nós que os apreendemos com ele, quando estávamos sem sentimentos?

 

Sem fronteiras

Esse programa de pesquisa também diz: “Além das religiões”. Por que precisamos fugir? Elas nos fazem tão mal? Fizeram muito mais mal a mim a política-guerra, a antropologia maquiavélica-hobbesiana, o homem inimigo do homem, e nós destinados a nos matarmos, a ciência a serviço dos senhores: isso me faz muito mais mal do que as religiões, porque, se é verdade que as religiões nos compactam demais, a antropologia bélica nos separa e nos opõe radicalmente, sob o poder divino de matar, que reina e decide. Esse sim é um vínculo-religião desesperador e condenador, transcendente-incumbente.

Para mim, em vez disso, a religião de céu e terra, de Deus e humanidade, dizia: há fôlego. Escutei Gandhi: “Vejo que, no meio da morte persiste a vida, no meio da mentira persiste a verdade, no meio das trevas persiste a luz”. Por isso, diz Gandhi, “há uma força viva, imutável, que mantém tudo unido, cria, dissolve e recria. Essa força ou espírito informador é Deus (…). E vejo essa força como exclusivamente benévola”, porque, no meio do mal, persiste o bem (Gandhi, “Antiche come le montagne”, Milão: Edizioni di Comunità, 1965, p. 100). O bem é mais do que o mal: eu confio e vejo.

Depois, escutei Aulo Gélio (Roma, circa 125 – circa 180): “Religiosus esse nefas, religentes oportet” (“Noctes Atticae”). Ou seja, é coisa nefasta ser religioso, ligado; é preciso ser daqueles que conectam. Vejo as religiões como conexões, redes de comunicação, até mesmo com nós apertados demais, mas também com fluxos abertos dos quais vem e vai ar, respiração, livre comunidade. A religião pode ser vivida como liberdade, como encontro amistoso, e as religiões juntas como civilização intercultural, megaespiritualidade. Criam dificuldades as doutrinas definidas demais, que se arrastam atrás da luz, como que para enjaulá-la em definições.

Em Michele Do, em David Turoldo, em Benedetto Calati, em Adriana Zarri, “religião” soava como “amizade” e significava o mistério-maravilha da semente que cresce no torrão escuro: o mesmo que ocorre em você, em mim. Com esses amigos, a religião fazia bem, dava um espaço total e próximo. Entendiam bem isso pessoas não religiosas como Rossana Rossanda, como Pietro Ingrao. A religião é amizade, rede de amizades.

Mas também pode ser mania de supersticiosos assustados. Depende do que você encontra, do que você pode escutar.

Antes dessa amizade, a religião, no sentido negativo, também me atormentou, mas eu fui mais astuto e livre: tomei o espírito bom, sacudi as correntes, encontrei irmãos em todas as latitudes humanas nesse respiro.

Uma religião única, totalitária? Não! Encontrei mestres como Simone Weil, Pier Cesare Bori (quaker e católico), Raimon Panikkar (cristão e budista), Gandhi (“Deus também é pão com manteiga para quem tem fome”), encontrei católicos como Arturo Paoli, que diz: “Opor religião verdadeira e religiões falsas é uma declaração de guerra!”. Assim como não quero a guerra que mata, também não quero a religião que exclui. A religião que declara guerra não é a minha. Pode-se escolher bem, não?

Escutei a Bíblia, o Alcorão, o Talmud, Buda, Confúcio, Sêneca... Não como estudioso especializado, mas como uma pessoa que vive. O evangelho me fala mais do que tudo. Fala a língua que eu esperava. A poesia é religião, e a religião é poesia. Somos todos poetas, se nos libertarmos.

A religião é liberdade; além da necessidade do ar e do pão, começa a liberdade: admiro a natureza, busco a fonte de beleza e paz, busco alimento para o espírito, que não deve se desesperar, morrer e, pior, matar para se saciar.

Que as religiões sejam modestas e serenas, que não se vangloriem de seu saber, de serem “vigárias de Deus na terra”, que não encerrem Deus em seus templos e recordem aquilo que Jesus disse à Samaritana (Jo 4), tornada digna da mais alta confidência, muito mais do que teólogos e sacerdotes.

E com os dogmas, o que fazemos? São momentos, clarezas vistas. Enrijecidas demais? Tudo bem, seguimos em frente. Tudo caminha, caminhamos. Sem desistir.

A Ir. Maria di Campello escrevia a Gandhi: “Eu sou uma criatura selvagem e livre em Cristo e quero, com Ele, com você, com vocês, com cada irmão buscador de Deus, caminhar pelos sendeiros da verdade” (24 de agosto de 1928). A sua Igreja é “sem fronteiras”: “Sou grata e venero a Igreja do meu nascimento e da minha família, mas a Igreja do meu coração é a Igreja invisível que sobe às estrelas. Que não é dividida pela diversidade de cultos, mas é formada por todos os buscadores da verdade” (11 de julho de 1932).

Sou grato

Para concluir, a minha perplexidade com o pós-teísmo é, modestamente, esta: se perdermos em Deus o caráter pessoal, de um Tu vivo, com quem temos uma relação de conhecimento, sim-patia (sentir-sofrer juntos), diá-logo, escuta e expressão, simplesmente perdemos Deus, todo Deus.

Há um ateísmo sério, que devemos respeitar e estimar. Um ateísmo de retorno, redutivo, é pouco demais. Se Deus é apenas uma energia, uma força, eu que sou apenas “um vapor” (Pascal, 347) sou mais do que ele, porque tenho consciência de pessoa: sei que sou.

Escuto a história das sabedorias humanas: falam a nossa língua, as sabedorias escutam, não criam, mas recolhem a voz das coisas, porque as escutam. Confúcio diz: “Eu transmito, não crio”. Tudo em nós é recebido. Eu sou grato.

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