Escatologia das horas: o tempo humano fragmentado pela lógica econômica. Artigo de Douglas Felipe Gonçalves de Almeida

Foto: João Miguel Rodrigues / unsplash

10 Dezembro 2022

"Me recordo da fala do Papa Francisco na mensagem aos participantes do encontro global para Economia de Francisco que 'as solidões são um grande negócio no nosso tempo!' Solidão e virtualização são pontos a serem discutidos. Máquinas de autoatendimento revelam um operativo atemporal, sempre em funcionamento – diferentemente do ser humano, que vive tempos de doença, de luto etc.", escreve Douglas Felipe Gonçalves de Almeida. Ele cursou História pela PUC Minas e é graduando em filosofia da mesma instituição. Tem formação em teologia pastoral pela PUC Minas – ANIMA. Além de animador Laudato Si', faz parte da Articulação Brasileira para Economia de Francisco e Clara.

Eis o artigo.

A especificidade do tempo pós-industrial é a dissolução do tempo em algo puramente métrico, calculável e matematicamente quantitativo. Pode-se dizer que a realidade é a de um tempo economizado no que diz respeito ao bem viver enquanto tempo estritamente condicionado ao desempenho de tarefas e suas execuções. A frenética do fazer, produzir, renega ao futuro incerto e inexistente a expectativa do impossível: aproveitar a vida. A crise contemporânea faz se sinal alusivo e advertência evidente desse futuro extremamente imprevisível, não calculável, tornando a experiência do real momento angustiante.

O domínio do tempo foi extraditado aos detentores de capital. Colonizaram a esfera do momento, da hora, dos ciclos, dos dias, do viver. A opressora força financeira do mundo capitalista livrou-se da singularidade dos seres viventes que é o de se condicionarem às temporalidades, idade, espera etc. Até a ciclicidade da natureza, os tempos dedicados ao prazer, as horas contempladas de amanhecer, são todas destituídas de significância e renegadas a um não agir, não produzir, não fazer. O capital, o mercado, a bolsa de valores, o operativo disso tudo se desvirtua de qualquer caráter ontológico do ser rumo a um pragmatismo tecnocrata, desenvolvimentista, objetivado na acumulação e continuidade de produção de riquezas, ainda que o tempo não espera.

Me recordo da fala do Papa Francisco na mensagem aos participantes do encontro global para Economia de Francisco que “as solidões são um grande negócio no nosso tempo!.” Solidão e virtualização são pontos a serem discutidos. Máquinas de autoatendimento revelam um operativo atemporal, sempre em funcionamento – diferentemente do ser humano, que vive tempos de doença, de luto etc.

Quais são as condições do possível para cada uma, cada um? O tempo do capital é a formação de vítimas da sorte, do acaso. Somos submetidos às leis do determinismo – dinheiro, mercado, inflação etc. O projeto humano precisa estar fora das barreiras. Numa leitura sartreana, existir é processo: é tornar-se. Somos o que não somos: a projeção. Somos movimento. O roubo do tempo de tornar-se, projetar-se é recair na condicionante existência impensada e sem sentido.

Cabe indagar: viver esperando dias melhores que podem não vir tem sentido? Como discutir – como autorreflexão – o tempo e tocar nas estruturas do capital numa espera de outras formas e costumes no lidar com o tempo? Quem detém as horas? Qual relógio funciona à benefício da vida que respira momentaneidade? O sopro da vida é efêmero ou inerente? Até quando? Mário Quintana escreve “a vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.” Há uma supervalorização do agir, em detrimento de uma verdade a imiscuir no caráter e sentido real do viver em cada estrutura, em cada princípio, em cada ética.

O Princípio 7 para a Economia de Francisco e Clara é o “Cremos na economia a serviço da vida.” É certo que, num tempo de profundo abismo existencial, falar da vida e do viver é fundamentalmente necessário. A existência humana não é uma pura linearidade que coaduna ter e fazer. O ser, aquilo que é, do gênesis capitalista à forma selvagem improdutiva e virtualizada atualmente, faz-se malsucedido quando o reconhecimento objetivado a um fim não bom, condicionante de cada experiência, desvirtua o caráter essencial das multiplicidades que envolvem o viver – não é só dinheiro, não é só trabalho, não é só acumulação.

A COVID-19 evidenciou pensamentos esdrúxulos que julgavam o capital superior à singularidade da vida humana. Nem mesmo um vírus extremamente desconhecido, contagioso e letal fez com que as forças do capital se atentassem ao cuidado e atenção com o tempo da vida humana, com o tempo de se precaver e cuidar-se. O senhorio financeiro abarca até mesmo as íntimas singularidades da experiência humana, desvirtuando momentos por obrigações sem fim. Cabe refletir os dias de licença para a experiência temporal dos trabalhadores enlutados, quão curto é a permissividade patronal para sofrer.

É preciso amenizar o peso dos ponteiros. Faz-se preciso entender que o desprezo não é justo com a categoria vida. Em que tempo estaremos se uma economia integral não for aplicada? Que práxis o capitalismo pedirá num tempo em que a economia estiver em crise? O momentâneo é fundamental. É tempo de “retroceder” ao essencial! O tempo não espera ninguém. “Tempo tempo tempo, vou te fazer um pedido...” (Oração ao tempo). O capital determina, obriga, exclui, descarta. Num projeto de existência, só liberdade permite o futuro. Por uma economia que dê tempo!

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