Comunidades se opõem ao mercado de carbono

Lideranças quilombolas, indígenas e extrativistas dizem não acreditar que o comércio de créditos de carbono seja uma solução climática viável, como apontado na COP27, no Egito (Foto: Ricardo Stuckert).

30 Novembro 2022

A 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27) se encerrou no domingo (20), no Egito, com a promessa de, finalmente, se criar mecanismos de compensação das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera terrestre. Países ricos, poluidores, seriam responsáveis por financiar nações pobres ou em desenvolvimento para protegerem suas matas nativas. O chamado “mercado de carbono” pode vir a se tornar uma bilionária e estável fonte de recursos financeiros nos próximos anos. Mas organizações indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais assinaram uma carta se posicionando contra a inclusão das florestas brasileiras nesse mercado de carbono.

A reportagem é de Cícero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 25-11-2022.

“As florestas devem permanecer fora dos mecanismos de mercado. As florestas são o espaço de enorme biodiversidade e de muitos povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas, agricultores familiares que buscam convivência digna e sustentável com seus ecossistemas, devem ser objetos de políticas públicas e sistemas de governança, transparente e democrática”, declararam 17 organizações signatárias da carta, divulgada no dia 14 durante a conferência. Entre as organizações que subscrevem o documento estão a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem).

“Eu definiria como a negociação do direito de poluir. Eu não vejo que da forma que está sendo posta ele [mercado de carbono] seja uma alternativa a se considerar em relação à questão climática. Eu vejo que é um tema que precisa ser amplamente debatido de forma informada, com linguagem acessível a todos e todas”, defende Flávia Santos, quilombola da comunidade Rio Genipaúba, em Abaetetuba, no Pará, e assessora jurídica da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu). Segundo Flávia, as organizações querem políticas públicas e governança para que possam balizar os contratos firmados por empresas privadas com as comunidades.

A Terra de Direitos afirma que, muitas vezes, os contratos – que já estão sendo firmados com comunidades tradicionais amazônicas – estão focados apenas no comércio dos créditos de carbono, deixando de lado os protocolos assegurados pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia livre e informada das populações para qualquer empreendimento a ser desenvolvido em seus territórios.

“Os assédios de algumas empresas intermediárias têm sido constantes. São assédios que por muitas vezes não são pautados na boa fé, como por exemplo levar em uma reunião que ainda vai acontecer a ata já pronta. Você não vai pra uma reunião com ata definida”, informa Flávia. Ela destaca a importância da relação dessas populações com os ecossistemas e com as tradições que desenvolvem em seus territórios, potencialmente ameaçadas por cláusulas desses contratos. “São contratos de até 30 anos.”

“A primeira empresa a aparecer no nosso território querendo comprar crédito de carbono foi em 2007. A gente nem sabia o que era carbono, chegaram oferecendo milhões, mas isso não serve para os povos indígenas”, diz João de Deus Kaba Munduruku, da Terra Indígena Sai Cinza, no Alto Rio Tapajós, Pará. “Elas [empresas] entram nos territórios levadas por parentes que vivem mais na cidade. Mas essa é uma decisão coletiva, tem que ouvir os caciques e as lideranças para saber se é bom para o nosso povo.”

Embora ainda não haja regulação do governo brasileiro para essas iniciativas, empresas que desejam compensar suas emissões de carbono têm procurado negociar o potencial ecológico diretamente com as comunidades. Na prática, é como se comprassem a capacidade de neutralizar (ou sequestrar) gás carbônico (CO2) do meio ambiente que essas comunidades têm. A demanda surge por conta de acordos internacionais, exigências de mercado para determinados produtos, que preveem a diminuição da chamada “pegada de carbono” dessas empresas, ou seja, a poluição gerada por seus produtos e serviços em outras regiões ou países.

“O principal problema é a poluição que os países ricos produzem; todo o desequilíbrio ambiental que eles produzem e essa vinculação dos países pobres a terem que preservar para compensar essa poluição”, afirma Flávia Santos.

Segurança climática

Na COP27, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), declarou que “não há segurança climática sem Amazônia protegida”, ratificando a importância de se pensar na região e em seus povos, constantemente ameaçados por invasores, grileiros, narcotraficantes, madeireiros, entre outros criminosos. Lula ainda cobrou os 100 bilhões de dólares anuais acordados durante a COP15, em 2009, no famoso “Acordo de Paris”. O montante deveria ser repassado por países ricos às nações mais pobres para ajudá-las a lidar com as consequências desastrosas do aquecimento global a partir de 2020.

Lula durante a COP27. (Foto: Kiara Worth | UN Climate Change)

A conferência climática foi encerrada com o compromisso de os países limitarem e/ou compensarem suas emissões para garantir que a temperatura do planeta não exceda os 1,5ºC. Os países, aparentemente, também chegaram a uma definição sobre o “fundo de perdas e danos”, o pacote econômico para países mais pobres, enfrentarem a crise climática.

“Decidimos um caminho a seguir em uma conversa de décadas sobre financiamento para perdas e danos, deliberando sobre como abordamos os impactos nas comunidades cujas vidas e meios de subsistência foram arruinados pelos piores impactos das mudanças climáticas”, disse Simon Stiell, Secretário Executivo da ONU para Mudanças Climáticas.

No entanto, líderes mundiais saíram decepcionados com a indefinição e obstrução de alguns países no sentido de reduzirem suas emissões e converterem suas matrizes energéticas para além dos combustíveis fósseis.

Crédito de carbono

O mercado de créditos de carbono surge com o Protocolo de Kyoto, um acordo firmado entre países potencialmente industrializados e poluidores, em 1997, para que reduzissem suas emissões de gases de efeito estufa e, com isso, frear o aquecimento global. Vinte cinco anos depois, pouco ou nada de significativo foi feito por essas nações para solucionar o problema.

Floresta próxima ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia. (Foto: Valdemir Cunha | Greenpeace)

Incêndios florestais, seca, tempestades e alagamentos são alguns fenômenos climáticos severos que têm dado mostras de que o planeta pode estar colapsando, segundo apontam cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU.

Um dos pontos elencados pelo último relatório do IPCC, lançado em fevereiro, mostra a discrepância das emissões de países ricos em relação aos países em desenvolvimento. O relatório aponta também para a necessidade de medidas urgentes e efetivas para conter o movimento que pode levar a Terra a aquecer 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais.

Em maio deste ano, o presidente Jair Bolsonaro assinou o Decreto 11.075/2022, que define os procedimentos para elaborar “Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas”, incluindo a criação do Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare). É por meio do Sinare que os créditos de carbono serão registrados e certificados, provando que houve, de fato, a preservação ambiental.

Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de gás carbônico (dióxido de carbono) que deixou de ser emitida na atmosfera ou foi neutralizada por uma parcela significativa e quantificável de vegetação. Vale lembrar que são as árvores e a vegetação as responsáveis mais conhecidas pelo processo de troca gasosa, que transforma o gás carbônico em oxigênio – vital para a vida na Terra.

Uma busca rápida no Google indica que um crédito de carbono atualmente está sendo negociado no mercado entre 10 e 12 dólares. Essa forma de compensação é a que legitima a produção e emissão de outras toneladas de gás carbônico resultante da queima de combustíveis fósseis proveniente das indústrias, dos aviões, dos carros, e que garante também que outras áreas possam sofrer supressão vegetal, por exemplo – deixando elas de exercerem seu papel de equilíbrio ecológico na Terra.

Letícia Rangel Tura, diretora executiva da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), explica que o crédito de carbono é uma “unidade de medida”, utilizada para mensurar a quantidade de gás carbônico emitido na atmosfera. “O crédito de carbono foi financeirizado e virou uma commodity e ele, portanto, tem um valor no mercado. Se emito uma quantidade X de carbono, isso representa X de crédito de carbono [a serem compensados ou neutralizados]. Se deixo de emitir tantas toneladas de carbono, eu passo a ter X créditos comercializáveis”, explica Tura.

A pesquisadora explica também que os créditos não são um mero papel, mas estarem vinculados a territórios que são capazes de neutralizar a demanda de carbono desejada pelos contratantes. Os territórios tradicionais da Amazônia que, em sua maioria, possuem vasta cobertura vegetal são uma das principais fontes para gerar créditos de carbono.

Sem dados oficiais

“O crédito de carbono tem um problema intrínseco. Todo crédito, como toda mercadoria, assim como a soja, por exemplo, ele precisa estar lastreado, não pode estar flutuando; ele precisa ter algum tipo de representação”, argumenta Letícia Tura. O que ela quer dizer é que esse mercado precisa da fiscalização do governo federal. Ela critica a falta de transparência nos contratos de projetos que já estão em andamento no Brasil, questionando o quanto dessas emissões estão de fato sendo neutralizadas. Não há dados oficiais de quantos projetos e quantas empresas estão atuando na Amazônia, e mesmo no Brasil, com o chamado crédito voluntário de carbono.

Avanço da pecuária em Rondônia. (Foto: Alexandre Cruz Noronha | Amazônia Real)

Em março deste ano, o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), abriu chamada pública para aquisição de créditos de carbono do mercado voluntário gerados em projetos aplicados no Brasil “que gerem redução de emissão e/ou remoção comprovada e adicional de gases de efeito estufa”, com investimento total de 10 milhões de reais. O BNDES também esteve na COP27 e lá apresentou um documento intitulado “Clima e desenvolvimento A contribuição do BNDES para uma transição justa”, no qual se compromete a estimular seus clientes a zerar suas emissões até 2050.

O Brasil já aderiu a um dispositivo lançado durante a COP19, que ocorreu em Varsóvia, na Polônia, em 2013, que é o REED+. A sigla significa Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Ambiental para conservação dos estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal.

O REED+ foi desenvolvido pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Unfccc) e funciona como incentivo de compensação financeira a países em desenvolvimento que preservam suas florestas. Mas o mecanismo não foi capaz de frear o retorno do desmatamento no Brasil. Desde 2013, ano da criação do REED+, até 2021, somente na Amazônia Legal, foram registrados cerca de 86.438 quilômetros quadrados de áreas desmatadas, segundo dados da plataforma Terra Brasilis, do Inpe. Em números absolutos a área desmatada equivale a quase 57 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Entre 2019 e 2021, ao longo do governo Bolsonaro (PL), foram registradas as maiores taxas de desmatamento na Amazônia da última década, respectivamente 10.100, 10.900, e 13.000 quilômetros quadrados.

Soberania dos territórios

“A gente não acredita nesse sistema que chega, mais uma vez, como uma imposição dos mercados e do capitalismo para nós, populações tradicionais. Eles não estão preocupados com o meio ambiente. O que eles querem é bater metas e ganhar mais dinheiro”, explica Célia Regina Nunes das Neves, pescadora e importante liderança na Reserva Extrativista Mãe Grande Curuçá, no nordeste paraense.

Indígenas kanamari na Terra Indígena Vale do Javari. (Foto: Bruno Kelly | Amazonia Real)

Conhecida nacionalmente por sua luta na proteção dos manguezais, Célia teme pelas restrições, pelo “controle”, que os contratos podem trazer aos modos de vida das populações tradicionais, colocando limites em práticas milenares de subsistência e reprodução de culturas para essas populações.

“Eles falam em bioeconomia, mas precisam falar em socio-bioeconomia. O crédito de carbono como mercadoria, deixa as pessoas que realmente preservam a natureza de fora. É também uma ameaça às nossas formas de vida e nossa soberania alimentar”, atesta Célia. “O mercado insiste em apagar a nossa existência.”
Para a advogada quilombola Flávia Santos, as comunidades estão sob forte “insegurança jurídica”. “A comunidade passa a ser restrita de fazer o uso e o manejo que sempre fez de seu território porque tem que proteger. E não é que as comunidades não protejam, existe o uso e o manejo sustentável de recursos naturais dentro das comunidades tradicionais. “Esses esquemas que a gente conhece por mercado voluntário de carbono, que são privados, colocam bastante em risco os direitos à terra e ao território dessas populações”, aponta Letícia Tura.

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