Questionar a propriedade privada desde o canto dos pássaros. Entrevista com Vinciane Despret

Foto: Unsplash

12 Agosto 2022

 

Filósofa, observadora, narradora; a belga Vinciane Despret presta atenção em seu último livro, tão poético e ao mesmo tempo situado em uma posição de aprendizagem do que observa, ao modo em que os pássaros fazem casa, território, longe dos relatos tradicionais na biologia onde “território” é sinônimo de conflito, de luta pelo controle.

 

A escrita de Vinciane Despret é a exceção à regra. Em nenhum caso esta filósofa belga nascida em 1959, abandona sua voz íntima, pessoal, próxima. Através de um olhar detido em aspectos minúsculos, com contribuições da narrativa e uma forma de indagação poética, sua palavra desestabiliza a ensaística não apenas como busca forma, mas como ampliação dos sentidos possíveis.

 

Ao mesmo tempo, a novidade de seu pensamento reside na atenção que dá ao particular (o canto de um pássaro, sua forma de habitar, todos os verbos possíveis que combinam com a palavra “território”). Seus ensaios vão a contrapelo das convenções acadêmicas, se metem no problema de nomear a singularidade mais que a generalização e abrem espaço para o silêncio humano, onde a natureza propõe outras formas de habitar o mundo.

 

Talvez por isso seus textos despertem um interesse em leitoris curiosis de diversas formações, e seu nome vem se tornando em santo e senha para os que seguem desde a publicação do provocativa. “¿Qué dirían los animales si les hiciéramos las preguntas correctas?” (“O que diriam os animais?”, na versão brasileira, publicada pela editora Ubu), foi seu primeiro livro editado na Argentina, em 2018, pela editora Cactus, assim como nos textos seguintes. Despret, graduada em filosofia e em psicologia pela Universidade de Lieja, interessa-se pelos cruzamentos entre experimentos científicos, antropologia cultural, psicologia animal e epistemologia das ciências.

 

Essas intersecções a situam em uma zona comum com pensadoras como Donna Haraway e Isabelle Stangers, e se sintetizam no campo conhecido como “animal studies”; isso é, estudos animais ou de animalidade. E tudo isso ressoa em seu novo livro. “Habitar como um pájaro: modos de hacer y de pensar los territorios” (“Habitar como um pássaro: modos de fazer e de pensar os territórios”, em tradução livre) é um estudo, porém também uma meditação, uma forma de escrita criativa que questiona a ideia da territorialidade atravessada pela propriedade privada, a construção de Estados, a defesa e a agressão. Assim, diz a autora, é possível abrir a imaginação para todes. Não casualmente, observa Despret, tratam-se de lógicas históricas sustentadas em paradigmas masculinos e antropocêntricos.

 

Sua resposta frente a essa abordagem é, pelo menos, surpreendente. Por meio da observação dos pássaros e do trabalho e ornitólogues e amantes das aves, esta filósofa propõe outros modos de atenção, onde a territorialidade é uma construção mais amável, contingente, coletiva. Sua escrita se distancia do encaixotamento e é possível pensá-la como uma partitura, uma conjunção de sentidos e sons que se integram a uma musicalidade própria e orgânica.


Vinciane Despret. Foto: Sylvère Petit | Página/12

 

Essas decisões, argumenta a autora, não são inocentes, mas sim abordam o desafio de voltar a imagina o mundo que habitamos. E nisso os feminismos têm muito a contribuir para desconstruir modos de pensar naturalizados. É o que afirma Despret nesta entrevista, que respondeu com paciência e amabilidade infinitas.

 

A entrevista é de Ivana Romero, publicada por Página/12, 12-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Você começa o livro com o relato do canto de um melro-preto em sua janela. Na sequência, diz que, seguindo Donna Haraway, esse canto a convidou a prestar atenção, justamente, a esse modo de atenção que o melro exibia. Seu canto se revelou tão importante quanto o silêncio e prestou atenção a este vínculo com outro ser que dá conta do mundo, sim, porém da sua maneira. Foi esse o insight para “Habitar como um pássaro”? De que modo você aborda o sentido de “prestar atenção”?

 

O canto do melro não foi, estritamente falando, um gatilho para um livro em particular. Aconteceu muito antes de eu pensar em trabalhar em territórios de pássaros. Mas quando o ouvi, assumi o compromisso de um dia fazer algo com a experiência que me foi dada, sem saber no que se tornaria. O que eu sabia era que havia sido tocado por um animal de uma forma muito intensa, e sentia que essa experiência tinha que me acompanhar, que algo tinha que mudar na minha forma de escrever, de contar, que era necessário que isso me forçar a deixar ainda mais o mundo, quadro de convenções acadêmicas.

 

E, de fato, quando comecei a escrever “Habitar como um pássaro”, essa experiência de alguma forma encontrou seu lugar: o território. Essa, que é uma questão bastante teórica para os pesquisadores, ia se tornar outra questão para mim, o que me obrigou a guardar com muito cuidado não só a experiência da beleza, mas também a sensação de que os pássaros que cantam tem seus territórios em regimes de atenção extraordinários. Para um pássaro, cantar um território é entrar em um grande jogo de intensificação de atenção, aquelas que são reivindicadas, aquelas que são concedidas. Baptiste Morizot recentemente me apontou que nós, primatas humanos modernos, tendemos a nos concentrar na questão das intenções dos outros.

 

Agora, parece que para muitos animais, embora essa questão seja importante, talvez ainda mais importante seja a questão da atenção: quem presta atenção a quem? Acho que foi isso que comecei a sentir ao ouvir o canto do melro, e o que pude prolongar ao pesquisar a questão dos territórios.

 

Você faz uma genealogia do conceito de território na perspectiva de uma série de ornitólogos homens no início do século XX. E questiona o conceito de “território” como “propriedade exclusiva que se apreende”. Ao longo do livro ele também mencionará outras questões sobre esse conceito. Por exemplo, o território como zona estanque de competição e agressão, a supremacia da ave mais forte e, sobretudo, a propriedade que se obtém de uma vez por todas. Como você desarmou essas ideias estabelecidas?

 

Na verdade, essas ideias estabelecidas não são todas estabelecidas da mesma maneira. Poucos ornitólogos consideram seriamente o território como propriedade exclusiva, poucos têm essa concepção “burguesa” de propriedade. Eu vou encontrar essas ideias mais nos disseminadores. Por exemplo, em O imperativo territorial de Robert Ardrey, ou quando o filósofo Michel Serres busca a origem do sentimento de propriedade no mundo animal. É verdade que enfatizo que os cientistas formados em biologia muitas vezes (nem sempre) consideram que o regime “padrão” seria de intensa competição por recursos, evidentemente acompanhado de agressão, e que o altruísmo ou a cooperação deveriam então ser explicados como algum tipo de anomalia. Mas, no que dizia respeito aos ornitólogos, não precisei desmantelar essas ideias estabelecidas porque alguns cientistas já o haviam feito: Warder Clyde Allee e seus colegas ecologistas em Chicago, por exemplo, que estarão muito interessados em relações protocooperativas. Ou também alguns etólogos que pensarão que a competição é frequentemente sobredeterminada pelas condições de pesquisa, ou mais frequentemente por condições de pesquisa em cativeiro; ou os ornitólogos que apontam que as lutas não são lutas reais, e assim por diante.

 

Por que você indica que essas ideias não são inocentes?

 

Essas ideias de competição, assim como de propriedade privada, não são inocentes, pois nos levam a pensar que o mundo é “naturalmente” assim, sem nos preocuparmos com o fato de que não é um mundo qualquer que é descrito dessa maneira , e que estranhamente se assemelha ao mundo da economia liberal e do capitalismo triunfante. O que é severamente amputado então é nossa capacidade de imaginar o mundo de outra maneira.

 

Que a imaginação é dinâmica, não se cristaliza em uma única imagem, mas coloca a questão de universos particulares, únicos em cada caso, certo?

 

Acho que, seguindo cientistas que fazem coisas interessantes, aprendemos que as generalizações costumam ser rápidas demais, e que o que é rápido demais costuma ser empobrecedor e de mau gosto. Existe uma estética do conhecimento onde algumas coisas são de bom gosto e outras não te tocam se não for para te irritar. A atenção ao detalhe, a atenção ao que conta para este ou aquele ser que se quer conhecer, produz um conhecimento tão interessante, um conhecimento que nos toca ou nos surpreende tanto, que a questão das generalizações sempre parece prematura.

 

Você aprendeu isso junto com as pesquisadoras feministas?

 

Sim, também com eles. Acredito que as ambições de generalização são muitas vezes a consequência de uma vontade de teorizar tudo, de obter uma explicação bem unificada e, finalmente, não estão tão longe da vontade de controlar – e as feministas me ensinaram a desconfiar disso. Não rejeito generalizações em nome de um princípio (que seria necessariamente geral, que não seria sem ironia), mas porque o que acontece na experiência de conhecer antes do estágio de generalização é tão excitante, tão importante, porque temos a sensação de que ainda há tantas coisas que exigem atenção precisa e sustentada, que na maioria das vezes fico apenas tentando descrever da melhor maneira possível.

 

Inclusive se permite divagações de beleza impressionante, como uma citação de Ursula K. Le Guin que questiona as formas canônicas de escrever ficção. Qual a importância da digressiva em seu trabalho?

 

Acho que você não se surpreenderá quando eu lhe disser que não há digressão no meu trabalho. São simplesmente caminhos que me parecem mais interessantes de seguir e, uma vez que os enveredo, impõem-se a mim. Daí a minha sensação de que nunca saio realmente do assunto. Em vez disso, o uso de contrapontos me permite sair do caminho que estou seguindo para fornecer outra iluminação, explicar ou fazer ferramentas que precisarei para o que se segue.

 

Você afirma que se o que se trata é pensar em novas formas de habitar a Terra e novos vínculos com seus seres, pensar nas aves como pequenos burgueses interessados na propriedade privada é um mau começo. Confesso que comecei a rir quando li isso. Nunca pensei que o capitalismo pudesse ser questionado a partir de uma presença tão pequena quanto a de um pássaro. Como é possível questionar ideias profundamente enraizadas de existências particulares e provisórias?

 

Para mim, a urgência é cultivar a imaginação. Aprendi com os antropólogos que o que nos parece óbvio, o que parece não pode ser diferente do que é, pode ser questionado pelo encontro com seres muito diferentes. É um dos temas da boa ficção científica, já que você menciona Ursula K. Le Guin: nos desfamiliarizar com as evidências. No início eu não achava que a etologia pudesse desempenhar esse papel, porque sentia que muitas vezes, em vez de buscar maximizar as diferenças, buscavam-se sim semelhanças (como quando pesquisadores buscam teimosamente a hierarquia em grupos sociais animais, ou quando sociobiólogos querem encontrar determinantes comuns a todos os comportamentos e todos os seres vivos). Ora, encontrei em certos ornitólogos um verdadeiro antídoto para essa busca de semelhanças, muitos são extremamente atentos à singularidade dos seres que estudam.

 

Bom, mas daí para repensar a questão do território por meio dos pássaros há um trecho muito ousado…

 

A questão do território, que pode se tornar a questão política mais estúpida se nos contentarmos em colar nossos esquemas nas formas como os pássaros se organizam, apareceu ao contrário como uma questão que exibia a enorme inventividade para organizar, fazer “em casa”, para entrar em relação com os outros… Em suma, uma verdadeira experimentação das nossas formas de imaginar a partir destas questões.

 

Também questiona a ideia de que todo comportamento deve ser útil. Mais uma vez, defende a particularidade de uma pena, de alguns passos esculpidos no chão, de um canto peculiar. Por que você foca seu interesse nisso?

 

Devolvo a pergunta, porque os grandes postulados me parecem impressionantes. E a questão da utilidade empobreceu muito a forma como pensamos os animais. Aqui William James nos diria: qual é o valor de uma teoria que empobrece o que afirma compreender e descrever?

 

Essa mesma pergunta aprofunda seu diálogo com a poesia como forma do contingente, do excepcional, do provisório. Ou seja, como um ato de imaginação.

 

Acredito que a força da poesia consiste em captar e tornar excepcional tudo o que percebemos como banal. É todo o tempo da ordem do acontecimento, como pequenos milagres inscritos no corpo do mundo. Portanto, não é por acaso que, quando ouço muitos dos cientistas de que gosto, tenho a impressão de que falam em poesia. Por exemplo, quando o ornitólogo Thierry Aubien me conta que levou dez anos de pesquisa para entender que o que importava no canto das cotovias era o silêncio. E se você lê a história do melro no romance “Palomar”, de Italo Calvino, entende que uma escuta muito atenta aos seres do mundo, quando reinventam momentos de beleza, transforma tanto um escritor quanto um ornitólogo em poeta.

 

Ao longo desta entrevista apareceu o nome de Baptiste Morizot. Sabemos que ele é um filósofo que também se propõe a reinventar nossa relação com os vivos, mas gostaria de saber quem ele é para vocês.

 

Morizot foi e ainda é um amigo que me ensinou muito e com o qual aprendo em cada encontro. Sua inventividade, seu poder conceitual, são extremamente importantes para mim. Eu mudei por estar em contato com ele, e “Habitar como um pássaro” traduz essa mudança. Nos meus livros anteriores sobre animais, eu não imaginava que eu mesmo pudesse fazer hipóteses teóricas, segui o que os pesquisadores diziam e teorizava sobre eles. Morizot me deu o gosto, o desejo e a coragem de me envolver mais, de ouvir o que eu sentia e de escrever sobre isso, de falar melhor – espero que sim – dos animais, de descrevê-los melhor, fazer sentir melhor o que são suas maneiras singulares, inesquecíveis, maravilhosas de estar no mundo.

 

Valoriza também o trabalho de mulheres que deram grande contribuição histórica, como a ornitóloga Margaret Nice.

 

Interessa-me particularmente porque ela soube colocar a sua sensibilidade, o seu amor pelos pássaros, a sua capacidade de escuta, ao serviço de um projeto de conhecimento mais interessante. Muitas coisas são aprendidas. Ela parece atenta a detalhes que ninguém notou. Ela também é vista procurando os melhores dispositivos de pesquisa para tornar esses detalhes perceptíveis (será assim a primeira a anilhar os pássaros) e aprender que justamente, para os pássaros, não se trata de “detalhes”. Quanto a outros pesquisadores que mencionei que pedem que se interesse pela questão das fêmeas de babuínos, obviamente me interessa porque a história da primatologia me ensinou que quando as primatologistas começaram a se interessar por fêmeas de babuínos, isso perturbou completamente tudo o que se pensava ser possível sobre os machos nesses mesmos babuínos.

 

Este livro pode ser pensado a partir de uma perspectiva feminista?

 

Acho que tudo o que precede poderia dar razão a essa intuição. Ou porque este livro me obrigou a borrar continuamente as fronteiras disciplinares, porque me mantém em guarda contra as generalidades, porque não sente lealdade às grandes histórias, porque responde a um certo cultivo da atenção como cultivo do cuidado, cuidado daqueles a quem você quero saber e também cuidar do pensamento, porque honra o saber que é colocado a serviço de quem estuda, porque a sensibilidade das pesquisadoras foi uma dimensão crucial para mim, então acho que tudo o que aprendi com as feministas orientou em certo modo um estilo de escrita e um estilo de investigação.

 

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