Líbia: faltou democracia

Protestos na Líbia. (Foto: Magharebia | Wikimedia Commons)

29 Julho 2022

 

Entrevista com Farid Adly, escritor e jornalista líbio. É diretor editorial da ANBAMED e colaborador de diversos jornais.

 

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 28-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Farid, o que aconteceu na Líbia desde 2011 - ou seja, desde a queda de Kadafi - até hoje?

 

Antes de entrar no mérito de uma história realmente complicada, em poucas palavras quero dizer que na Líbia faltou daquela solução democrática a que - após 42 anos de ditadura de Muammar Kadafi - o povo líbio aspirava e que este povo poderia ter alcançado, juntamente com os outros povos protagonistas das chamadas "primaveras árabes".

 

Mas depois dos primeiros meses de rebelião pacífica contra o passado - em que as diversas almas da sociedade líbia mostraram que sabem administrar o confronto democrático - tudo caiu no caos da luta armada, até hoje.

 

Considero que a responsabilidade pela situação atual na Líbia se deve em grande parte à fortes interferências externas.

 

Líbia (Foto:JRC | Wikimedia Commons)

 

Depois de Kadafi

 

Você poderia recordar as passagens fundamentais da história da Líbia nos últimos anos?

 

As primeiras eleições ocorreram em 2012, que foram vencidas pelas Forças Nacionais Democráticas fundadas por Mahmud Jibril, presidente do executivo provisório instituído em fevereiro de 2011. Naquelas eleições - dentro do Parlamento de transição - formou-se uma minoria islâmica promovida pelo Irmandade muçulmana; uma minoria capaz de vetar as iniciativas políticas da maioria: apesar de ter obtido 17% dos votos, conseguiu nomear um terço dos ministros.

 

De fato, essa minoria contestou os governos eleitos provocando a queda dos vários primeiros-ministros que se sucederam até 2014, ano em que se realizaram as novas eleições que deveriam ter conduzido a um Parlamento definitivo.

 

Justamente porque os islamistas também perderam as eleições de 2014 - com 11% dos votos - resolveram derrubar deliberadamente a mesa da democracia aumentando a presença de suas milícias armadas nas ruas da cidade: sob o pretexto de oferecer assim a segurança de que o país precisava, impuseram ao governo - e aos vários governos - suas decisões político-financeiras interessadas, até hoje. Por trás da questão da segurança, eles fizeram grandes negócios.

 

As armas sempre garantem um fácil enriquecimento. Tivemos muitos exemplos de enriquecimento fácil na Líbia.

 

Qual foi a interferência externa que você mencionou?

 

Refiro-me em primeiro lugar às armas que chegaram em abundância desde 2011: do Qatar, da Turquia, mas também de países ocidentais como França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Claramente, por trás de cada carregamento de armas e de cada direção militar havia um desenho político diferente.

 

Como as outras forças políticas do país se moveram?

 

É claro que aqueles que chegaram ao poder após 42 anos de ditadura assumiram uma grande responsabilidade. Eram pessoas - líbios - que tinham feito experiência política democrática no exterior, enquanto na Líbia não existia nenhuma experiência anterior de democracia.

 

Não foi nada fácil para tais expoentes afirmarem-se num contexto em que os homens de Muammar Gaddafi – a começar pelos seus filhos e em particular Saif al-Islam – ainda estavam, apesar de tudo, muito presentes. Lembro-me de que Saif fundou em 2006 o movimento da Líbia para o futuro para tentar transferir o poder de seu pai Muammar de forma hereditária, criando grandes divisões dentro da própria família Kadafi. No final, todos os políticos líbios tiveram que acertar as contas com essas fortes influências.

 

A situação atual do país

 

Descreva para nós um pouco sobre a Líbia de hoje...

 

A Líbia é um país de 6 milhões de habitantes muito rico em petróleo, com uma renda média per capita que ocupa o primeiro lugar no continente africano. E, no entanto, os líbios eram e são pobres porque a riqueza é distribuída de forma enormemente desigual.

 

Os líbios que agora vivem no exterior são estimados em cerca de um milhão e meio. Muitos vivem no Egito e na Tunísia. Vários deles recebem seu salário da Líbia, embora não trabalhem: isso se deve à vontade dos governos de garantir uma espécie de paz social aparente, embora efêmera, de caráter claramente nepotista e clientelista. Isso fala muito sobre o desperdício de recursos e de competências no exterior que empobrece ainda mais o meu país.

 

Fronteira Líbia-Egito (Foto: Faris knight | Wikimedia Commons)

 

Fronteira Líbia-Tunísia (Foto: Aquintero82 | Wikimedia Commons)

 

No país do petróleo há grande dificuldade em garantir à população os combustíveis para as atividades indispensáveis. A eletricidade vem e vai durante o dia; às vezes falta na maior parte do dia. Para muitos, viver nessas condições é impossível e, por isso, as cidades estão se enchendo de barracos. Consideremos também que há 10 anos existe na Líbia meio milhão de deslocados internos para os quais quase nada foi feito.

 

Quem administra a riqueza que vem do petróleo?

 

Os bilhões que vêm de petróleo são controlados por uma pequena elite que se vale das milícias que mencionei.

 

E isso acontece sob o olhar das Nações Unidas e também das comissões internacionais de controle, colocadas como garantia teórica do país, enquanto os interesses conflitantes dos estados visam unicamente os recursos petrolíferos e o dinheiro para a reconstrução da Líbia, certamente não o bem-estar do povo líbio. Egito, Emirados Árabes Unidos, Turquia, Catar, França, Itália, Grã-Bretanha, Estados Unidos e, obviamente, Rússia - todos eles querem colocar as mãos no petróleo e da riqueza.

 

Interesses italianos

 

Que ligações históricas a Rússia tem com a Líbia?

 

A Rússia, como se sabe, mantinha relações com o antigo regime: existe um acordo, ainda em vigor, para o fornecimento de 32 bilhões de armamentos. Além disso, tem objetivos claros de colocar as mãos no petróleo líbio.

 

Que ligações de interesse tem também a Itália?

 

Sabemos que a Itália e a França sempre competiram pelo controle do petróleo líbio através da ENI e da Total. Essa competição mostra a falta de visão que todos os países ocidentais e europeus tiveram e continuam a ter em relação à Líbia.

 

A Itália tem um privilégio único na Líbia. Conseguiu mantê-lo inclusive nos últimos anos: a partir de Kadafi, a ENI detém 49% da sucursal líbia que lida com gás e petróleo. Nenhuma outra subsidiária nacional jamais teve uma participação tão alta. O gás que chega à Europa da Líbia através do gasoduto Milita-Gela, por exemplo, é controlado pela ENI.

 

Infelizmente, a Itália, a meu ver, em vez de valorizar esse privilégio em prol do desenvolvimento da população líbia, pensou sobretudo em conservá-lo e em fazer acordos para travar o fluxo de migrantes que atravessa a Líbia. Responderei com prazer à sua pergunta específica sobre este ponto.

 

Quais são atualmente as forças - inclusive e sobretudo militares - que competem pelo controle do país?

 

Trípoli (Foto: WIkimedia Commons)

Na segunda fase após o levante de 2011, inseriu-se um ex-general de Kadafi, que depois passou à oposição nos Estados Unidos - Khalifa Belqasim Haftar -, promotor do movimento líbio Dignidade, em oposição armada às milícias organizadas pela Irmandade Muçulmana, tanto em Trípoli quanto em Benghazi.

 

Haftar atualmente se opõe ao governo de Trípoli (GNA) apoiado militarmente por milícias islamistas. O confronto é sangrento e já provocou milhares de mortos, tanto de um lado quanto de outro, bem como entre a população civil.

 

O dualismo entre militaristas e islamistas praticamente anulou as energias da sociedade civil líbia - com vocação democrática - que ainda existiam.

 

Mudanças de governo

 

O governo de Dbeibah seguiu o governo de al-Sarraj, um pouco mais conhecido na Itália: como se deu a transição de um para o outro?

 

O governo de Fayez al-Sarraj de alguma forma administrou a situação entre 2015 e 2021: apoiado militarmente pelos islâmicos contra os militaristas de Haftar, com a cobertura benevolente das forças estrangeiras ocidentais, especialmente a Itália.

 

Lembro que a ideia de um governo de unidade nacional na Líbia pode ser atribuída ao general italiano Paolo Serra, consultor militar da missão da ONU. A intenção, com o assentamento de al-Sarraj, era limpar o campo das milícias islamistas. Mas isso não aconteceu: as milícias ocuparam Trípoli e até impediram a realização – em 2021 – de novas eleições, como era previsto.

 

O atual governo de Dbeibah - que sucedeu Al-Sarraj - atendeu, portanto, decisão da ONU, mas de forma muito questionável: é o resultado de uma clara compra e venda de votos dentro do Fórum para o diálogo líbio, escolhido pela ONU.

 

Dbeibah deveria marcar o início de uma nova unidade nacional, mas o que está acontecendo está sob os olhos de todos que querem ver: a corrupção é galopante e três ministros do novo governo estão sendo julgados por roubar milhões de dólares enquanto não há hospitais suficientes para os doentes, que são até enviados para o exterior com tudo pago.

 

Existe agora um segundo - ou "terceiro" - governo?

 

Em 2021 o governo de Dbeibah claramente perdeu - no caos crescente - o objetivo fundamental, estabelecido pela ONU, de novas eleições populares: foi, portanto, demitido do Parlamento, que elegeu outro governo, o de Fathi Bashaga. Mas Dbeibah achou por bem não sair e se manter à tona por qualquer meio, com a ajuda de uma parte substancial das milícias islâmicas.

 

Na Líbia há uma situação paradoxal: o novo governo Bashaga tomou posse em Sirte, mas sem controle sobre o banco central e, portanto, sobre as finanças do Estado, que ainda estão nas mãos de Dbeibah em Trípoli. E isso está ocorrendo essencialmente no meio do silêncio da ONU, em um quadro internacional alterado pelo confronto, entre Ocidente e Oriente, que está ocorrendo na Ucrânia.

 

Então, como os apoios internacionais estão posicionados?

 

Países árabes como Egito e Emirados Árabes Unidos não querem governos islamistas na Líbia e, portanto, estão com Haftar (candidato à presidência das próximas – eventuais – eleições), também apoiado militarmente pela Rússia.

 

Emirados Árabes Unidos (Foto: NuclearVacuum | Wikimedia Commons)

 

 

Cerca de 2.000 mercenários russos do “Wagner” operam na Líbia. Enquanto outros países orientais, como Qatar e Turquia, apoiam abertamente os islamistas e pressionam por um governo leal a eles. Há cerca de 1.000 soldados turcos com 8.000 milicianos sírios (alistados entre as milícias anti-Assad) a favor das milícias de Trípoli e, portanto, de Dbeiba.

 

Deve-se acrescentar que na Líbia existem cerca de 500 militares italianos que atualmente não se entende que papel desempenhem.

 

Qual é a posição da Itália? De que lado está?

 

A Itália apoiou - embora com alguma hesitação - o governo de Sarraj, assim como agora apoia o governo de Dbeibah. Mas agora deve considerar que Haftar já controla três quartos do território líbio.

 

Para entrar em uma negociação significativa, deveria conceder-lhe um reconhecimento que não existiu até agora.

 

Migrações

 

Como poderá evoluir a situação complexa que você descreveu?

 

Tobruk (Foto: Wikimedia COmmons)

A situação é muito tensa. Bandos de milicianos estão ocupando as praças da capital com metralhadoras em defesa dos poderes de Dbeibah. No centro do drama está a população líbia, esgotada. Os protestos e agitação do último período falam por si. Em Tobruk houve manifestações e o incêndio da sede do Parlamento.

 

A resolução do exército de Haftar era bloquear as exportações de petróleo dos portos para induzir os governos ocidentais a tirar todo aval ao governo de Dbeibah. De fato, a sociedade líbia NOC anunciou à ENI a inevitável redução de 25% no fornecimento de gás: neste momento, o gás resulta um instrumento de pressão formidável.

 

Por que tantos migrantes - há anos - atravessam a Líbia e tentam desembarcar na Itália para a Europa?

 

A Líbia não tem controle sobre grande parte de suas fronteiras. As fronteiras com o Egito a leste e a Tunísia a noroeste funcionam, mas o restante das fronteiras é uma rede de malhas muito grandes pelas quais passam caravanas inteiras de traficantes de seres humanos e suas vítimas. Obviamente, também transitam mercadorias ilícitas (incluindo derivados de petróleo exportados clandestinamente, mas em sentido inverso).

 

O tráfico de pessoas é particularmente lucrativo e é controlado por milícias extranacionais que fazem negócios com as milícias líbias. Estes têm ramificações em todos os campos de refugiados, inclusive em outros estados.

 

Todas - ou quase todas - as rotas de emigração levam à Líbia. Aqui, como se sabe, as pessoas são entregues a contrabandistas que, por cifras absurdas, as transportam para o meio do mar, à mercê das ondas, na esperança de que algum navio das ONGs venha resgatá-las ou que a guarda costeira líbia as traga de volta.

 

O negócio é enorme: calculamos de 1.000 a 3.000 dólares per capita apenas para a travessia do mar Mediterrâneo. Esses valores atraem, tanto as organizações criminosas como as milícias que teriam a tarefa de garantir a segurança do país.

 

Nenhum governo de "unidade nacional" em Trípoli conseguiu deter esse tráfico, simplesmente porque as milícias envolvidas no tráfico são as mesmas que garantiram a "segurança" aos governos.

 

Quais são as responsabilidades da Europa e em particular da Itália por esse aspecto do drama líbio?

 

Acredito que as responsabilidades da União Europeia sejam enormes. O número de migrantes que passam da Líbia para a Europa é de fato limitado.

 

Faria sentido, na minha opinião, criar escritórios da UE nos países de origem dos migrantes para receber e avaliar os pedidos de asilo dos que têm direito, depois criar corredores humanitários efetivos - não apenas simbólicos - através dos quais introduzir os migrantes na Europa. Pelo menos esse negócio criminoso poderia ter sido desmantelado e muitas vidas salvas.

 

O custo em termos de vidas humanas é realmente muito alto. Não podem ser ignoradas as pessoas que morrem antes de chegar ao mar, no deserto. Pode ter ficado conhecido nos últimos dias o caso de 20 migrantes do Chade e do Sudão em um caminhão que se perdeu no deserto: ficaram sem água e comida por vários dias e todos morreram. Só quero acrescentar que situações desse tipo ocorrem todo dia.

 

Para a Ucrânia, foi acertadamente decidido acolher milhões de refugiados da noite para o dia: é evidente que aos refugiados negros das guerras africanas nem mesmo parte da mesma atenção é dada.

 

Leia mais