Uruguai: A esquerda prepara seu retorno

Palácio Legislativo em Montevideo, Uruguai. (Foto: Boris G | Flickr, creative commons)

22 Julho 2022

 

Um projeto para o país. Visitas ao território e diálogo com os movimentos sociais. Centenas de comitês de base. Democracia interna. Presidente da Frente Ampla explica como é possível disputar o Estado sem perder contato com as maiorias.

 

Fernando Pereira Kosec (1966) é professor e preside a Frente Ampla (FA) do Uruguai desde janeiro deste ano. Ele vem de uma família de esquerda e liderou, por seis anos, a principal central sindical do país. Foi um dos principais impulsionadores do referendo para revogar a Lei de Urgente Consideração, considerada pela central sindical PIT-CNT e pela FA contrária aos interesses da classe trabalhadora. A lei foi finalmente promulgada pelo presidente Luis Lacalle Pou, mas sua vitória foi pírrica (50% contra 48,7%), o que demonstrou a enorme força eleitoral de uma Frente Ampla que aspira voltar ao governo em 2024.

 

A entrevista com Fernando Pereira é de Pablo Iglesias, publicado por CTXT e reproduzido por Outras Palavras. A tradução é de Rôney Rodrigues.

 

Eis a entrevista.

 

Em 2024 haverá eleições no Uruguai. A FA já está se preparando para retomar o governo, especialmente depois de ver um resultado no referendo de março que a direita não esperava?

 

Ela se prepara para construir a esquerda de 2050 e isso supõe, por um lado, um nó produtivo, ou seja, para onde vai o Uruguai em termos de matriz produtiva, valor agregado, cadeias de valor. Isso também significa ter um olhar a médio prazo, ou seja, olhar as luzes que podem se acender implica ter um plano de desenvolvimento produtivo, desenvolvimento social, desenvolvimento econômico e cultural, mas, ao mesmo tempo, ser uma opção de governo em 2024. É para isso que estamos todos nos preparando sob todos os pontos de vista.

 

Primeiro, com equipes que de alguma forma acompanhem as principais políticas públicas e que sejam ferramentas para a Frente Ampla apresentar propostas nos próximos meses. Segundo, com uma turnê nacional por dois anos consecutivos. Toda semana a liderança nacional da Frente Ampla visita uma localidade do país e tem 50 reuniões com entidades sociais, produtivas, culturais, artísticas… para, de alguma forma, ter uma radiografia a partir da base social que a Frente Ampla acumula. E terceiro, porque tem um elenco de homens e mulheres capazes de governar.

 

O referendo foi um resultado importante, inclusive porque foi possível juntar 420 mil assinaturas das 800 mil que o movimento popular reuniu em seis meses de pandemia, mas o mais importante é que a Frente Ampla tem atualmente 400 comitês de base abertos em um país de três milhões de habitantes.

 

Os comitês são espaços onde os ativistas territoriais da Frente Ampla se reúnem. Aspiramos ter 500 até 2024. Temos cerca de 15 mil militantes ativos e pretendemos ter comunicação com 65 mil. Isso, em um país de três milhões de habitantes, é decisivo para o desenvolvimento eleitoral de 2024. Mas não estamos apenas nos preparando para as eleições de 2024.

 

A esquerda tem que mudar o rumo de um governo que pratica uma política econômica que acumula riqueza nos setores mais poderosos e deixa de lado a maioria dos homens e mulheres uruguaios. Os comitês de base, nos quais militantes independentes convergem com militantes de setores e partidos que compõem a Frente Ampla, são ferramentas políticas para a ação permanente, uma esfera em que se cultiva a unidade a partir dos de baixo.

 

O atual governo do Uruguai tentou reverter várias conquistas dos governos da FA, mas também aproveitou outras para gerenciar a pandemia. Quais serão as chaves programáticas do próximo projeto da FA para governar o país?

 

O atual governo é refundacional. Tudo o que ele podia desarmar em termos de política pública, ele fez. O que acontece é que existem políticas tão poderosas no Uruguai que tocá-las seria desastroso ao governo. Por exemplo, não é possível tocar no plano de um computador, uma criança (Plano Ceibal), é muito difícil tocar nas operações de catarata realizadas pelos hospitais para pessoas carentes. É muito difícil alterar as políticas de transferências públicas de renda para uruguaios em situação crítica.

 

Mas logo eles promoveram iniciativas para enfraquecer as empresas públicas, a empresa de telecomunicações uruguaia, a empresa de combustíveis, a empresa de eletricidade, de tal forma que fica claro que vão nos deixar um país em piores condições do que as que encontraram em 2019. Um país com maior concentração de riqueza, um país que fragilizou suas empresas (que são capazes de distribuir sua produção de forma competente), um país com orçamento menor para a educação e, ao mesmo tempo, uma dolorosa desigualdade social.

 

A Frente Ampla está preparando seu programa – e isso supõe também visitar todo o país e conversar com as principais forças vivas da cidade e do campo, mas também significa discutir com a academia, com a intelectualidade, com a cultura, para que quando qualquer uruguaio veja nossas propostas, tenha clareza sobre o que a Frente Ampla vai fazer em cinco anos.

 

Foi o que aconteceu em 2004. Qualquer uruguaio sabia que a Frente Ampla ia convocar uma negociação coletiva imediata que não era convocada há 12 anos; que ia ser desenvolvido um Sistema de Saúde; que ele ia tentar distribuir [riquezas] de forma melhor por meio da nossa reforma tributária; que geraria melhores condições de qualidade de vida para os setores mais oprimidos, trabalhadores rurais ou trabalhadoras domésticas – e esse plano de governo até superou as expectativas que a Frente Ampla tinha.

 

Essa é a grande aposta do programa Frente Ampla que, sendo superior ao programa de 2004, permite que as pessoas o lerem saibam o que vamos fazer em 2024 quando voltarmos a governar, porque vamos chegar e vamos governar para transformar. Essas transformações têm que ser claras de antemão em cada um dos uruguaios.

 

Já são cinco décadas de história da FA. Quais são as chaves para construir a cultura unitária de um espaço político com tantas correntes e partidos?

 

São cinco décadas de unidade na diversidade e essa é a esquerda vista de seus diferentes perfis. Quando a Frente Ampla foi fundada em 1971, parecia impossível para os democratas-cristãos coexistirem com comunistas, socialistas e anarcossindicalistas na mesma organização. No entanto, isso foi possível porque os objetivos unitários de construir uma alternativa ao modelo autoritário que prevalecia nos anos 1960 eram maiores do que as possíveis diferenças existentes entre os setores.

 

O que se buscava naquela época era uma unidade política em torno de um programa de mudanças e uma unidade de princípios. Então a unidade é construída a partir desses princípios e do programa. Nesse quadro, é possível a coexistência de diferentes identidades, que convergem ao longo da história em uma identidade comum, o frenteamplismo. Essa identidade comum, longe de tentar suprimir as outras, potencializa e naturaliza as identidades das diferentes sensibilidades. A construção do progressismo no Uruguai foi, de alguma forma, alimentada pelos setores dos partidos tradicionais, que na época compunham o Partido Colorado e o Partido Nacional.

 

Hoje poderíamos dizer que boa parte do eleitorado da Frente Ampla surge e é parte – ou fez parte – do Colorado e do Partido Nacional. Assim, a Frente Ampla tornou-se, com identidade própria, a representação política mais importante do Uruguai nos últimos 30 anos. O maior partido em 30 anos – e partindo de uma base que tem 51 anos de existência.

 

Como se constrói a unidade na diversidade? Com muita paciência. Entre as organizações que compõem a Frente Ampla, metade são setoriais e delegados de base que militam a partir do território. Isso envolve tricotar muito antes de tomar uma decisão. Provavelmente, para muitos no exterior, esses processos podem ser vistos como uma perda de tempo, mas longe de ser, são um grande ganho, pois uma vez alcançado um acordo, toda a força política o defende em todos os lugares. Isso gera uma unidade política e também unidade na prática, no território, onde a vida das pessoas é mudada.

 

Proporcionalmente e levando em conta a população e o tamanho do Uruguai, a FA tem muito mais militância do que a maioria da esquerda na América Latina e na Europa. Como tantas pessoas podem participar das decisões e da vida da FA e de suas organizações?

 

Temos uma eleição interna, organizada pela força política, com adesão simultânea à Frente Ampla na qual participaram 136 mil pessoas e que elege o presidente nacional e os presidentes departamentais, a representação dos setores e os delegados de base no Plenário Nacional e na Mesa Política e em cada uma das alas departamentais.

 

Isso por si só mostra o grau de militância e a importância dos comitês de base para a estruturação política dentro dos territórios. Cada companheiro e companheira que é membro da Frente Ampla milita onde mora, e se milita onde mora, conhece seu bairro, seus vizinhos, as organizações sociais.

 

Tem um vínculo com o pequeno comerciante, com o pequeno produtor, com o pequeno industrial. Tem vínculos com o sindicato, com organizações sociais ligadas ao cooperativismo. Isso gera uma militância e um tamanho surpreendente de militância, principalmente depois de 50 anos.

 

Agora a Frente Ampla convoca a si mesma, ou seja, é importante que as pessoas sintam que a transformação do país ou que as mudanças positivas para um país, mudanças progressivas, só são possíveis com a Frente Ampla e que os apelos de alguma forma levem as pessoas a participar.

 

As lideranças carismáticas foram cruciais para a esquerda latino-americana nos últimos anos, mas também geraram enormes dependências. No Uruguai, no entanto, o fato de Pepe Mujica ser um líder mundial não impediu que a marca FA trabalhasse para si eleitoralmente. Qual é a chave para entender essa força coletiva além dos líderes?

 

Os fundadores da Frente Ampla deixaram uma marca indelével, mas nenhuma pessoa, nenhum homem ou mulher, por mais importante que fosse para a Frente Ampla – na época Seregni, Arismendi, José Pedro Cardoso, Juan Pablo Terra, Zelmar Michelini, Alba Roballo e tantos outros – poderiam ser mais importantes do que o coletivo que se formava naquele momento. Naturalmente haveria lideranças poderosas em algum momento, mas essas lideranças não poderiam substituir o protagonismo popular, ou seja, o protagonismo das pessoas.

 

A Frente Ampla é o seu povo. Se há protagonismo popular há a Frente Ampla, se há uma liderança que se baseia exclusivamente no resultado de uma eleição ou si mesmo, então a Frente Ampla torna-se parte subsidiária de uma personalidade engajada, mas aqueles que acreditamos nas profundas transformações da esquerda, também acreditamos que essas transformações são coletivas. Assim, nenhum homem ou mulher, por mais importante que tenha sido para a esquerda, pode ser mais importante que a força política.

 

A Frente Ampla teve líderes do porte de Mujica, Tabaré Vázquez, Danilo Astori, Mariano Arana e isso não foi impedimento para que a Frente Ampla, sem esses candidatos centrais, chegasse a 40% do eleitorado no primeiro turno em 2019, em uma má votação, mas que ainda sim fez com que 40% dos uruguaios apoiassem a Frente Ampla. Neste tempo que estamos nos fortalecendo, em todas as pesquisas de opinião a Frente Ampla aparece como a primeira força política no Uruguai ratificando a lógica de que estamos a caminho de obter o governo.

 

Mas não é para obter o governo que a Frente Ampla está nesse processo, mas porque ela move toda a sua estrutura organizacional no sentido de mudar a história do Uruguai, que passa claramente por um momento regressivo. Neste momento, pensar que o poder executivo entrega nossos portos por 50 anos, sem nem mesmo um relatório jurídico ou econômico, que entrega a conexão de internet a empresas privadas de cabo que operam no Uruguai sem uma contrapartida clara e sem relatórios, faz parte das políticas que a Frente Ampla pretende corrigir.

 

Valorizamos muito o que Mujica é para os uruguaios e também o que é para o Uruguai, um enclave no mundo. Valorizamos muito o que Tabaré Vázquez fez, a ação do companheiro Danilo Astori em dar força econômica ao Uruguai e Mariano Arana como líder da esquerda de Montevidéu, mas também sabemos que essas lideranças precisam ser renovadas, e que essas lideranças ainda estão lá e que essas renovações estão ocorrendo sem dor porque os próprios líderes carismáticos da esquerda as promoveram.

 

Eles trouxeram a renovação. De tal forma que a Frente Ampla seja mais importante do que qualquer homem ou mulher que a conforma, essa é a chave para não depender apenas de uma referência pessoal. Porque aí os projetos políticos se enfraquecem quando um líder perde peso ou quando um líder simplesmente deixa de estar presente.

 

Boric venceu no Chile, Petro e Francia Márquez acabam de vencer na Colômbia. Estes são dois países onde a esquerda parecia impossível de vencer. Espera-se a vitória de Lula no Brasil. O que está mudando na América Latina?

 

A direita foi cruel, não respondeu aos setores populares. A direita falhou na distribuição [das riquezas], nos processos de paz, na geração de igualdade social, em dar ferramentas mínimas aos pobres, aquilo que pertence a esses pobres, os “descartáveis”, como os chamou o Papa Francisco.

 

Também estão resistindo a imposição de que a única maneira de viver é na miséria, na exclusão, na pobreza e há também uma classe média que percebe que esses governos só trabalham para os mais poderosos e que também aqueles que estão nas faixas medianas também estão, de alguma forma, em desvantagem. De certa forma, trata-se de construir uma lógica que permita alternativas progressivas a um modelo fracassado que se concentra em países que simplesmente crescem economicamente e na suposição de que haverá um transbordamento que contribuirá para melhorar a qualidade de vida das maiorias.

 

Este é um fracasso total e completo em toda a América Latina. Foi no Chile, país que durante anos foi vendido como bem-sucedidos e aqui no Uruguai, elogiado pelo crescimento do produto interno bruto. Mas quando se vê que a desigualdade é terrível, o modelo educacional é terrível, quando a Constituição é muito negativa, as pessoas buscam mudanças.

 

Na Colômbia já vimos o que foram os governos de Uribe e os sucessivos governos de direita. O que significaram a violência política e o movimento paramilitar. O povo decidiu por uma mudança profunda e quando ninguém esperava, quando se acreditava que o eleitorado de direita ia apoiar Hernández e que a vitória de Petro era praticamente impossível, viu-se que há um grupo de colombianos que se rebelam contra a injustiça social diante da ausência de políticas públicas e das tragédias.

 

Isso não significa que não devemos olhar ou acompanhar os processos que estão ocorrendo na América Latina, como o crescimento da direita e da extrema direita, que têm um corte empresarial com pouca ideologia, baseado no ódio e nos disparates políticos. Seria preciso muita atenção para analisar esses fatores a partir da academia, mas também da política. O processo de Bolsonaro no Brasil, a chegada de Lasso ao governo do Equador, o voto que teve Hernández que, mesmo perdendo a eleição, teve uma votação muito alta para alguém que não vem do mundo da política. Também o próprio governo Trump, que continua mantendo grande apoio nos Estados Unidos.

 

Parece-me que nós, latino-americanos, deveríamos ter uma visão coletiva para que, se chegarmos, como parece, a governar juntos, a integração internacional, o regionalismo e o fortalecimento dos blocos regionais também se desenvolvam. Implica situar-se no mundo de uma forma diferente da que os países latino-americanos se posicionaram no processo progressista anterior. De tal forma que haja um desafio que esperamos estar à altura de alcançar.

 

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