Bênção de casais homossexuais e bem comum: as razões de uma antiga sabedoria. Artigo de Andrea Grillo

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28 Junho 2022

 

Para salvar o fenômeno da bênção nupcial, em todas as suas aplicações passadas, presentes e futuras, não é possível fazer dela, ao mesmo tempo, um acessório supérfluo ou uma declaração substancial. A bênção não pode ser um “acidente desnecessário” para o matrimônio heterossexual e uma “substância proibida” para a união homossexual.

 

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado em Come Se Non, 26-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

É legítimo se perguntar se a “comunhão de vida e de amor” pode ser uma vocação que diz respeito também à relação entre sujeitos do mesmo sexo. Se assim fosse, não seria possível abençoar as pessoas e também a sua relação de amor, mesmo que ela não possa estar naturalmente aberta à geração biológica (mas sem excluir uma geração espiritual, pedagógica e relacional)?

 

Esse é um horizonte que hoje podemos considerar de modo novo. Se a fidelidade à relação e a indissolubilidade do vínculo não criam problemas, o caso é diferente em relação à fecundidade, cujo bem só pode se referir a um casal homossexual se sairmos da esfera estritamente reprodutiva e considerarmos, por sua vez, a homoafetividade como uma esfera não alheia à generatividade e à fecundidade pedagógica e social, existencial e relacional.

 

 

Essas considerações gerais, que até podem ser compartilhadas, pouco ajudam a resolver a questão da bênção, sobre cuja “proibição” em relação aos casais homossexuais (mas também aos casais heterossexuais irregulares) a argumentação do recente Responsum [1] é complicada e não parece ser linear:

 

a) Sacramento e sacramental não são idênticos

 

A bênção assimilaria a união homossexual a um sacramento, sendo a semelhança com o sacramento a lógica dos sacramentais. Mas essa censura se baseia em um argumento clássico, que é usado de modo invertido: o sacramental é semelhante a um sacramento, mas não é um sacramento. Por isso, censura-se uma semelhança, imputando-lhe que leva a considerar que aquilo que é semelhante é idêntico ao sacramento. De fato, a semelhança, na sua raiz teológica mais radical, não implica uma identidade, embora imponha uma não estranheza.

 

b) Bênção de coisas e pessoas, não de “valores”

 

Seria possível abençoar o sujeito individual, mas não a união: como a união é considerada um pecado, deduz-se disso que o pecado nunca pode ser abençoado. Também neste caso, porém, se há uma dimensão que não permite falar de matrimônio, mas apenas de “conjúgio” [2] para o casal homossexual, isso não significa que a relação homossexual não seja desprovida de bens a abençoar. A redução da identidade homoafetiva a “desordem”, como estratégia doutrinal que pretende inferir o mal intrínseco da relação homoafetiva, com base na “falta de alteridade constitutiva”, que tornaria a relação uma “não relação”, procede de um pressuposto “a priori” em que se confunde o dado revelado com o preconceito [3].

 

 

Pode-se abençoar não só as pessoas com identidade homoafetiva, mas também as relações homoafetivas na medida em que sejam, contra o preconceito adverso, experiências de alteridade, de comunhão de vida, de fidelidade e de serviço. Uma teoria geral da homoafetividade como “autocomprazimento” – como se deduz do texto da Homosexualitatis Problema (1986) – não pode aspirar a nenhum primado no julgamento da realidade. O magistério deve ser reconhecido como dotado de autoridade não por falar, mas por permanecer a serviço da correlação inexaurível da Palavra de Deus e da experiência dos homens e das mulheres (GS 46).

 

c) Bênção e “substância” do vínculo

 

Surge uma curiosa contradição: por um lado, a bênção nupcial não faria parte da “substância” do sacramento do matrimônio, fundamentado no vínculo que brota do consentimento dos sujeitos legítimos, mas, em vez disso, pode ser utilizada “positivamente”, para excluir uma leitura eclesial da união homossexual. Como uma bênção de um casal que não gera filhos, mas que gera amizade, acolhida, alegria, esperança e eventualmente adoção pode ser excluída da lógica do abençoar eclesial? Se ele vive a comunhão de vida e de amor, a fidelidade e o vínculo estável, como pode não ser reconhecido um bem não só possível, mas já real? Por qual aliança singular entre preconceito e hipocrisia pode-se desvalorizar a bênção até a irrelevância, na administração eclesial ordinária, apenas para depois fazer com que ela se torne uma “soberana epifania sacramental” quando se trata de negá-la, para não oferecer precedentes escandalosos (escandalizados pelo preconceito) em vista do reconhecimento da realidade?

 

O recurso, exclusivo para os casais homossexuais, à possibilidade de “abençoar as pessoas individuais”, mas também a exclusão da bênção do vínculo entre as pessoas põem um véu de censura sobre a longa tradição que abençoou apenas o anel da noiva após o consentimento e apenas a noiva na união. Essa tradição abençoa apenas “uma pessoa” como futura mãe e esposa. A bênção impossível é hoje o reflexo indireto da geração impossível. E é a forma mais implícita, mas mais pesada, de identificação da união legítima única e exclusivamente com a união que gera. No entanto, a decadência objetiva e salutar de uma teologia do matrimônio totalmente concentrada no “bonum prolis”, sem desmerecer o valor comunitário e pessoal da geração, possibilita valorizar a hipótese de uma bênção das “pessoas homossexuais”, consideradas no seu vínculo de fidelidade, de comunidade de vida e de estabilidade de relação, que não pode ser negligenciado nem como bem pessoal nem como bem comunitário.

 

 

As pessoas que se vinculam estavelmente, na sua concretude, são o bem a ser abençoado. O fato de também haver em uma união homossexual um bem comum que a Igreja pode/deve reconhecer permite inverter o argumento clássico da teologia dos últimos 50 anos: é pelo bem comum que podemos abençoar as uniões homossexuais, não só pelo bem dos indivíduos. Uma noção de “lei” que não identifique o bem público com a sociedade fechada surge como um crescimento de tom e de lucidez, hoje disponível à atenção da linguagem eclesial. Por outro lado, a normativa civil já mudou o rito do casamento, transformando o anel da noiva em “troca de alianças”, e a bênção da noiva em bênção dos noivos. Por que deveríamos nos surpreender que a normativa sobre as uniões homossexuais afete o modo eclesial de abençoar?

 

Uma reflexão radical sobre o objeto da bênção nupcial permite purificar o olhar e refinar o tato, tornar o ouvido mais sensível e o nariz menos exigente. Para salvar o fenômeno da bênção nupcial, em todas as suas aplicações passadas, presentes e futuras, não é possível fazer dela, ao mesmo tempo, um acessório supérfluo ou uma declaração substancial. A bênção não pode ser um “acidente desnecessário” para o matrimônio heterossexual e uma “substância proibida” para o conjúgio homossexual.

 

Se a teologia brinca com as palavras, mesmo com as melhores intenções, zomba da tradição, distorce-a, instrumentaliza-a e a trai, reduzindo-a a um pequeno ou grande martelo, com o qual pode atingir o inimigo de plantão. Mas a tradição não é um martelo, mas sim uma lâmpada, que também pode iluminar também o nosso presente e o futuro comum.

 

Notas

 

1. Cf. Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé a um dubium sobre a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo, de 15-03-2021, que pode ser lido em português aqui.

2. Cf. C. Scordato, “Chiesa cattolica e ‘coniugio omosessuale’: realtà e possibilità”, in A. Grillo – C. Scordato, “Può una madre non benedire i propri figli? Unioni omoaffettive e fede cattolica”, Assis: Cittadella, 2021, pp. 57-84.

3. Para uma consideração teológica da questão, cf. A. Grillo, “Cattolicesimo e (omo)sessualità. Sapienza teologica e benedizione rituale”, Bréscia: Morcelliana, 2022.

 

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