03 Junho 2022
Falar com María Martinón-Torres é se contagiar de paixão pelo ser humano, de assombro pelo nosso passado e otimismo sobre o futuro de nossa espécie. É ouvir, aprender, entender... e querer continuar ouvindo, aprendendo, entendendo por horas e horas.
A médica galega, que depois se tornou paleoantropóloga e especialista em evolução humana, também é uma grande divulgadora. É o que demonstra nesta entrevista e em cada página de Homo Imperfectus, seu último livro.
Nele, a cientista que dirige o Centro Nacional de Pesquisa sobre a Evolução Humana [Espanha], percorre a história do Homo Sapiens em uma perspectiva muito diferente daquela a que estamos habituados: a partir de suas imperfeições, suas fragilidades, seus medos...
“É preciso abrir espaço para falar desses lugares mais obscuros do ser humano.” O subtítulo do livro já antecipa tal abordagem: “Por que continuamos adoecendo, apesar da evolução?” Martinón-Torres muda nossa visão sobre as doenças ou o envelhecimento, entre muitas outras coisas. Lendo e ouvindo-a, entendemos como e por que nossos aparentes “defeitos” são cruciais para o êxito adaptativo de nossa espécie.
A entrevista é de Irene Fernández, publicada por NIUS, 30-05-2022. A tradução é do Cepat.
Por que o título Homo Imperfectus? Chama a atenção, em uma sociedade que preconiza o contrário: a busca pelo homem e a mulher “perfeitos”.
Como paleoantropóloga que sempre tentou entender o ser humano, há muito tempo desejava descrever uma visão muito pessoal sobre a natureza humana. Parece que sempre foi contada em chave triunfalista. Sempre buscamos explicar as características que nos permitiram construir um lugar para nós mesmos no mundo à luz da seleção natural.
Somos uma das espécies mais bem adaptadas, tanto que é possível dizer que adaptamos o planeta a nós mesmos. Mas parece que nunca houve espaço para a nossa doença. E o ser humano convive com a doença e a imperfeição. A questão é: até que ponto isso pode ser explicado pela seleção natural? Ou a seleção natural é um fracasso?
É preciso abrir espaço para falar desses lugares mais obscuros da nossa evolução, do ser humano. Porque não refletem apenas um fracasso, mas podem estar apontando questões evolutivas importantes para nossas fortalezas e fragilidades como espécie. Podemos extrair muitas informações sobre nós estudando nossas doenças.
Seria algo como reivindicar a utilidade evolutiva da imperfeição?
Não é que a doença em si seja positiva, mas consiste em saber por que ela surge. E isso se dá sobretudo por dois motivos. Porque há um desajuste entre a biologia e este mundo que criamos. Transformamos radicalmente os estilos de vida e o ambiente em que vivemos, que são radicalmente opostos àqueles para os quais nossa espécie foi criada. A biologia muda, mas de forma muito mais lenta.
Nosso esqueleto permanece o mesmo daquele hominídeo que se originou na África, há 3,5 bilhões de anos. E a vida, então, não tinha nada a ver com a vida agora. Agora, passamos a maior parte do dia sentados ou deitados. Na verdade, muitas das doenças atuais são consequência da civilização. A obesidade, as isquemias, os infartos... demonstram que biologicamente e culturalmente não evoluímos no mesmo ritmo.
A evolução não segue esse ritmo. E a biologia faz o seu caminho em busca de equilíbrios. Muitas das doenças são o preço a pagar por coisas como viver mais anos. As neurodegenerativas, por exemplo, são o preço a pagar pelo êxito em outras coisas.
Outra ideia central do livro é que somos seres sociais, não individuais, que nossa força é grupal. Também vai um pouco contra o mundo atual, tão individualista...
Sim e não. O ser humano vive entre duas tensões, a individual e a grupal. Ser conscientes de nós mesmos e nos encaixar em um grupo, que traz muita variabilidade à espécie. Por um lado, temos consciência de nós mesmos e de nossas singularidades e, por outro, existe a nossa força social, que recebemos pelo fato de pertencer a um grupo. Frágil é quem está só, sente-se rejeitado ou não tem acesso aos recursos.
No livro, explica que quem está só é mais frágil do que quem está doente. A solidão é pior do que a doença?
Estar só ou se sentir só é um dos maiores medos. É o que vimos agora na pandemia, por exemplo. Fomos forçados a desnaturalizar as relações. Embora estivéssemos virtualmente conectados de mil maneiras, muitas pessoas se sentiram sós. E vimos quadros depressivos, mudanças de humor e até automutilações.
De fato, um dos principais problemas que existe hoje é o aumento do suicídio, que já é a principal causa de morte não natural. E em tudo isso, a solidão tem sido crucial. O isolamento é algo contra a natureza. A natureza humana é social, e inclusive hipersocial.
O que quer dizer ser hipersocial?
Significa que somos capazes de nos relacionar mesmo com quem não está, não conhecemos ou nunca vimos, graças à capacidade de abstração. Não precisamos que esteja em nossa frente. E essa capacidade de hiper-relação, inclusive com quem não está, permite estarmos conectados, mas durante a pandemia não tivemos alternativa, foi um momento extremo. E o problema surge quando nos acostumamos com as relações à distância. Porque nossa natureza é diferente. Essa tecnologia nunca poderá substituir a importância do contato real.
O problema, hoje, é que nossa tecnologia nos deu a capacidade de compartilhar informações em um mundo virtual, e nossas relações com os outros e com a natureza se virtualizaram. Corremos o risco de perder a empatia, a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. E justamente graças a ela, somos capazes de reconhecer amigos e inimigos. Quando estamos à distância e perdemos o contato físico, perdemos muito da empatia, compaixão e pertencimento ao grupo.
Contudo, não acredito que tenhamos perdido esse sentido social, continuamos sentindo e segue havendo solidariedade. Existe um risco de que o percamos no dia a dia, porque perdemos contato direto. E o ser humano é um animal que precisa se alimentar do contato físico para desenvolver a principal arma que temos para seguir em frente, que é a empatia. Agora, somos muitos e estamos muito juntos, mas nem sempre estamos muito próximos. E o mesmo acontece com a natureza.
De fato, tudo isso nos faz pensar na crise climática, nas décadas e décadas que estamos tentando mudar as coisas e em como está sendo difícil. Talvez porque o planeta não seja visto como casa comum. Parece que o comum não é de ninguém, em vez de ser de todos.
Aqui, estamos diante de um problema muito complexo. Somos a única espécie, hoje, capaz de se preocupar com conceitos tão abstratos como o futuro do mundo, com problemas que estão fora da nossa escala temporal. E isso é algo positivo. Somos capazes de falar de nossa própria extinção. Isso já é uma singularidade, significa que não é tudo a mesma coisa.
Somos uma espécie capaz de viajar no tempo, rememorar o passado para antecipar o futuro. De fato, ao fazer as duas coisas se ativa as mesmas regiões do cérebro. Mas, aqui, estamos falando de um problema com uma dimensão que não pode ser resolvido com decisões individuais. Precisamos de ações globais porque estamos falando de um problema global.
Na pandemia, vimos que era possível agir assim, com o desenvolvimento das vacinas, por exemplo. Quando todos assumimos que um problema é global, podemos agir. É possível. Mas em muitos casos não se enxerga a urgência. A mudança climática é algo que é visto a longo prazo, não é visto como urgência imediata.
Outro aspecto central do livro é o papel da longevidade. Vivemos mais do que nunca, mas, no entanto, não prolongamos nosso período reprodutivo. Explique-nos por que a seleção natural apostou nisso.
Se analisarmos nosso ciclo de crescimento, veremos que na maior parte de nossa vida somos dependentes. Aumentamos os anos em que dependemos dos outros. Temos a infância, a adolescência, depois um período em que somos autônomos e adultos, mas depois vem uma longuíssima terceira idade.
Nossa vida dura muito mais tempo, agora, depois do período reprodutivo. À primeira vista, pode parecer um contrassenso. Parece que o lógico seria aumentar os anos que vivemos para ter mais filhos, mas não é assim. O que isso quer dizer?
A seleção natural priorizou aumentar esses anos de vida para ter em nossas tribos uma parte de indivíduos que desempenham um papel crucial na criação dos filhos e dos filhos desses filhos. Porque em uma espécie com indivíduos tão dependentes uns dos outros, isso é básico.
A seleção natural aumenta os anos em que nos dedicamos a cuidar dos outros, e isso é importantíssimo em nível biológico. Mas também para o conhecimento. Ter uma avó é um luxo, mais ainda uma bisavó! Compreender isso dá outro significado à dependência humana.
Você fala de “avós”, no feminino. Por quê?
O papel crucial é o das avós, porque uma etapa muito importante na fisiologia feminina foi modificada: a menopausa. Curiosamente, em nossa espécie, essa ruptura na capacidade reprodutiva ocorre muito cedo, bem cedo em relação aos anos que temos para viver depois. O resto dos animais não tem menopausa.
Em nosso caso, o fim da fertilidade chega muito rápido, quando ainda temos condições físicas e mentais boas ou muito boas. O que se favoreceu é que, nessas mulheres, a menopausa não seja uma deterioração associada à idade, mas, ao contrário, a fecundidade é interrompida como uma estratégia reprodutiva de sucesso.
Favoreceu-se que a fertilidade termine antes para que essas mulheres possam se dedicar a essas tarefas fundamentais, é nelas que a seleção natural incidiu. Porque essas mulheres já tinham um papel fundamental na criação dos filhos e em liberar as mães dessa dependência do filho. E, além disso, as avós são reservas vivas de experiência e conhecimento. As avós ensinavam os netos a colher, a se defender, a avançar.
Isso implica uma visão completamente diferente da menopausa. Não como algo negativo, um sinal de envelhecimento, mas como algo com claros benefícios para o êxito coletivo, como espécie.
Claro. Não se trata de ver isso como uma deterioração, como parte do envelhecimento. O término da fertilidade vem antes do tempo, mas como algo benéfico para o grupo, o benefício é fundamental para o êxito do grupo. Um chimpanzé, por exemplo, aos 35 anos, quando encerra sua capacidade reprodutiva, já está em condições decrépitas. Não é o nosso caso.
Um indivíduo tem muito a contribuir para além de nossa capacidade reprodutiva, e isso diz muito sobre nossa espécie. Todos desempenhamos um papel fundamental na vida dos outros, desde muito cedo e até muito tarde, para o crescimento e o amparo das pessoas que estão ao nosso redor. Somos uma espécie muito dependente.
Na própria dedicatória do livro, você valoriza o papel dos avós. Inclusive, cita seus pais como tais, dando-lhes esse papel: “Aos meus avós e aos avós de meus filhos”...
Sim, eu tive a sorte de meus filhos terem avós e bisavós. Isso é um luxo. E valorizo muito esse papel. Sim, a dedicatória foi uma valorização da figura de meus pais como avós.
Antes de encerrar, gostaria de falar sobre outra epígrafe do livro: “A maldição de ser inteligente”. O que isto significa?
Um de nossos órgãos mais proeminentes é o cérebro. A inteligência é a capacidade de adaptação e de resolver problemas, a capacidade de antecipar o futuro. Mas também de ver perigos, onde existem e inclusive onde não existem. Um cérebro que pensa pode chegar a pensar muito e ver problemas onde não existem. Em algumas pessoas, em determinados momentos, esse cérebro passa por revoluções e, então, nós nos preocupamos muito e ficamos angustiados.
Já se observou que pessoas com capacidades intelectuais muito altas têm maior risco de sofrer certos transtornos, como alergias, asmas, doenças autoimunes... Isso seria um pouco a maldição de ser inteligente. Porque sabemos que se o sistema de alerta é acionado de forma crônica ou exagerada, isso por sua vez está acionando outros sistemas, que também se acendem.
Esses alertas acionados também acionam o desgaste em outros tecidos e isso, por exemplo, pode acabar deteriorando o sistema imune. Essas seriam as consequências muito negativas de cérebros com altas capacidades, que podem nos tornar mais propensos a certos transtornos mentais.
Mas a natureza joga com equilíbrios. Falamos de alterações para o indivíduo, mas que, globalmente, são consequência de características que a evolução favoreceu. É bom para o grupo ter alguém assim, porque nos protege diante do possa vir. Mas, claro, é um tormento para uma pessoa ser capaz de ver perigos onde existem e onde não existem.
“Homo Imperfectus” se apresenta como uma “crônica da luta de nossa espécie para sobreviver em um mundo em mudança”. E o mundo, agora, muda mais do que nunca, ou ao menos muda mais rápido do que nunca. Sobreviveremos?
Eu, em geral, sou otimista. Somos uma espécie capaz de criar grandes problemas, mas que também é muito boa resolvendo-os. Temos uma enorme capacidade transformadora, mas penso que é necessário que façamos uma reflexão sobre para onde queremos ir. Porque somos uma espécie que, inclusive, pode dirigir o futuro.
Agora, temos uma tremenda capacidade para escrever nosso futuro. O problema é que não estamos decidindo para onde queremos ir. Talvez tenhamos que sentar e pensá-lo um pouco.
Neste momento, a tecnologia nos permite, as ferramentas estão aí, mas, às vezes, ficam grandes demais para nós. Permitem que façamos muitas coisas, mas não sabemos muito bem para que queremos utilizá-las.