As artes e a cultura contra a censura

“Censura é qualquer ação organizada para interromper o livre fluxo de informação protegido pelo direito à liberdade de expressão feita, geralmente - mas não exclusivamente -, pelo Estado”, define o MOBILE.

Arte: Luana Ely Quintana | Beta Redação

19 Mai 2022

 

Diversos artistas foram reprimidos ao longo da história brasileira, desde a Ditadura Militar até os dias atuais.

 

A reportagem é de Luana Ely Quintana, estudante de Jornalismo e História da Unisinos, publicada por Beta Redação, 13-05-2021.

 

No contexto político brasileiro, a cultura passou a ser alvo de constantes ataques e restrições por parte do Estado. Este cenário se agravou nos últimos anos, em especial a partir de 2019. Até fevereiro de 2022, foram registrados 195 novos casos de censura e ataques à cultura no Brasil, segundo o Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE) — coalizão de organizações não governamentais criada com o objetivo de monitorar e agir em casos do gênero. Os números dizem respeito a censura, desmonte institucional da cultura e autoritarismo contra o setor artístico.

 

Uma sequência de fechamentos de exposições, cancelamentos de shows e ordens judiciais de censura prévia a festivais, além de ameaças a artistas, entre diversos outros episódios, vêm demarcando a posição de grupos contrários à liberdade de expressão artística e cultural brasileira. Exemplo disso foi quando o ex-presidente Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, e o ex-secretário da Cultura, Mário Frias, criticaram o diretor Wagner Moura pelo filme Marighella e o consideraram racista. Ou o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) pedir a retirada do filme sobre o artista Chico Buarque do 8º Festival de Cinema do Brasil, pois possuía afeto declarado ao ex-presidente Lula. Ou, ainda, quando a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) criticou a diretora Petra Costa, pelo documentário Democracia em Vertigem, indicado ao Oscar, considerando-a uma ‘militante anti-Brasil’.

 

 

Censura, liberdade de expressão artística e o direito

 

Ainda de acordo com o MOBILE, a definição de censura é “qualquer ação organizada para interromper o livre fluxo de informação protegido pelo direito à liberdade de expressão feita geralmente, mas não exclusivamente, pelo Estado”. A censura ultrapassa o conteúdo das obras e alcança os seus vetores e veículos de expressão. Por exemplo, pode-se censurar uma exposição de artes visuais inteira mesmo que as obras não tenham passado por processo de censura.

O professor André Luiz Olivier da Silva, coordenador do curso de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) — possui experiência nas áreas de Filosofia e Direito, centrando-se na relação entre Moral, Política e Direito — explica que a censura é a proibição de circulação da informação ou de publicação de obra de arte ou intelectual. “Cabe destacar que, conforme a Constituição de 1988, não é possível a censura prévia, isto é, a censura realizada à liberdade de expressão antes mesmo de alguém se manifestar publicamente”, diz. Conforme a Constituição, aquele que se sentir ofendido pela manifestação da liberdade de expressão poderá requerer o direito de resposta ou mesmo indenização pecuniária — ou seja, penas cumpridas em liberdade, dando um retorno social em contrapartida ao delito — junto ao Poder Judiciário, “mas isso só poderá ser feito após a manifestação da liberdade de expressão ocorrer”, explica o professor.

 

 

“Toda liberdade (como, por exemplo, o direito de ir e vir ou a liberdade de expressão) possui limites legais. No caso da liberdade de expressão, cabe mencionar que ninguém está autorizado pela lei a ofender a honra de alguém e nem mesmo ameaçar uma pessoa por meio de palavras. Nestes casos, o abuso da liberdade de expressão pode ser caracterizado como crime contra a honra (calúnia, injúria, difamação) ou como crime de ameaça, estes previstos nos ordenamentos jurídicos das democracias ocidentais”, conclui o professor.

Aos cidadãos, é garantido o direito de criar e difundir livremente sua manifestação artística e cultural e através desta expor suas ideias e sentimentos. A liberdade de expressão artística e cultural está no rol dos direitos humanos, previstos em tratados internacionais importantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, através do Artigo 19. Ela também é um direito fundamental, garantido pela Constituição Federal em seu artigo 5º, o artigo que estabelece os direitos básicos para que todas as pessoas tenham dignidade, liberdade e cidadania.

 

A liberdade de expressão artística e cultural que está prevista tanto na Constituição como na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Arte: Luana Ely Quintana | Beta Redação)

 

Tentativa de censura no festival Lollapalooza

 

O festival de música alternativa Lollapalooza aconteceu entre os dias 25 e 27 de março, em São Paulo. Durante o evento, uma polêmica chamou a atenção do público que acompanhava os shows: o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Raul Araújo, censurou manifestações políticas de artistas que se apresentaram no festival, o que gerou grande repercussão.

 

Logo no primeiro dia do festival, as artistas Pabllo Vittar e Marina Sena utilizaram do palco para criticar o presidente Jair Bolsonaro (PL) durante suas apresentações. A decisão do ministro Raul Araújo acolheu um pedido do próprio partido do mandatário que acionou o TSE no segundo dia do “Lulapalooza”, como passou a, ironicamente, ser chamado — a partir das manifestações a favor do ex-presidente do Brasil, Lula (PT). O ministro estipulou, então, multa de R$ 50 mil para o festival toda vez que a determinação fosse desobedecida.

 

Para a professora porto-alegrense Amanda Quadros, 33 anos, que esteve no festival, as manifestações foram muito naturais e ela sentiu esperança de um Brasil melhor. “Deu pra ver a galera muito unida. O tempo inteiro a plateia ficava falando e gritando ‘fora Bolsonaro’ ou xingando ele. Além de artistas nacionais e internacionais que também participaram desses atos”, diz

 

 

Um exemplo disso foi o artista Lucas Silveira, vocalista da banda de rock brasileira Fresno, que soltou um “fora, Bolsonaro!” no microfone do terceiro dia do Lollapalooza, mesmo após a decisão do TSE. Durante a canção “Fudeu!!!”, do disco mais recente da Fresno, o telão do show também exibiu o lema pedindo a saída do presidente do poder.

 

 

O presidente do TSE, Edson Fachin, avisou que levaria o caso ao plenário do tribunal — o que poderia estabelecer regras para situações parecidas no futuro. Mas, por fim, a ação que havia sido apresentada contra o festival foi retirada.

 

O caso do Lollapalooza 2022 é visto por muitos como uma tentativa de censura. O professor André Luiz Olivier comenta ainda que, “em nome de uma suposta liberdade de expressão ilimitada, apoiadores do atual governo atacam o trabalho realizado por diversas pessoas. A violência contra a liberdade de expressão está explícita em campanhas difamatórias com a elaboração de fake news contra a liberdade de expressão de jornalistas, artistas, intelectuais e políticos da oposição”, comenta.

 

A Lei das Eleições nº 9.504, de setembro de 1997, dentro do trecho destinado à propaganda eleitoral, elenca no artigo 36-A uma série de práticas que “não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não envolvam pedido explícito de voto”. Dentre elas, incluem “a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos” e atos que vão da participação em programas jornalísticos à realização de eventos partidários, como, também, “ a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais”.

 

Em um Brasil não tão distante…

 

Em maio de 1969, militares invadiram o Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, em busca de elementos considerados subversivos. O alvo da operação era justamente a arte da exposição VI Bienal de Jovens em Paris, que estava prestes a ser aberta ao público.

 

A mostra reunia obras de artistas brasileiros que, nos anos seguintes, foram perseguidos e censurados. Decretado pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, ou AI-5, foi um dos 17 atos institucionais decretados a partir de 1964 pelo regime militar que autorizava o presidente da República a fechar o Congresso por tempo indeterminado, cassar mandatos parlamentares e suspender direitos políticos de qualquer cidadão.

 

O ato suspendeu o habeas corpus para presos políticos e legalizou a repressão estatal e a censura. Dessa forma, se originou um dos períodos mais violentos da ditadura militar (1964–1985), impondo uma forte violação da liberdade de expressão sobre a produções culturais cinematográficas, musicais, teatrais e das artes visuais.

 

Em 1968 foi decretado o Ato Institucional nº 5 que deu início ao período mais restritivo e duro do regime militar. (Arte: Luana Ely Quintana | Beta Redação)

 

Festivais da Canção marcaram o início da MPB

 

Mesmo sendo um momento da história no qual a repressão e a censura atingiram todos os níveis da sociedade brasileira (e, principalmente, a classe artística), foi durante a Ditadura Militar que a Música Popular Brasileira (MPB) foi criada e teve sua ascensão. A atuação mais marcante de músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Chico Buarque se deu nos Festivais da Canção, realizados na TV Excelsior, TV Record e TV Globo.

 

A primeira edição foi em 1965 e teve como vencedora a canção Arrastão, composta por Edu Lobo e Vinicius de Moraes e interpretada por Elis Regina que, na época, iniciava a carreira. No entanto, as edições mais marcantes para a história da MPB foram de 1967 e 1968.

 

Em 1967, mesmo com a música Ponteio, de Edu Lobo, tendo sido eleita a canção vencedora, o que ficou para a história foram as apresentações de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no Parque, de Gilberto Gil com a banda Os Mutantes, que são consideradas o marco inicial do movimento da Tropicália.

 

Já em 1968, no Festival Internacional da Canção, realizado no Maracanãzinho, a música favorita do público e emblemática dos movimentos contra a ditadura, Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, ficou em terceiro lugar na disputa, o que gerou a revolta do público.

 

 

A partir do AI-5, os principais artistas desta geração, que combatiam a ditadura em suas músicas, acabaram por ser exilados, presos ou torturados. E, com isso, os Festivais da Canção foram perdendo audiência e apelo, até acabarem por completo em 1972.

 

Jardim de Guerra

 

O filme Jardim de Guerra teve um total de 48 cortes. (Foto: Reprodução/Memórias da Ditadura)

 

Jardim de Guerra, do diretor Neville d’Almeida, lançado em 1972, foi o filme mais censurado do cinema brasileiro, com um total de 48 cortes. Em entrevista para a revista eletrônica Arte Capital, d’Almeida conta que, dois meses após o filme ficar pronto, em novembro de 1968, é editado o Ato Institucional nº 5, que cortava todos os direitos e liberdades civis.

 

Para o realizador audiovisual e mestrando em Cinema e Artes do Vídeo Frederico Franco, o filme, que foi produzido nos anos de chumbo — com o general Médici no poder — , tem, esteticamente falando, uma forma muito agressiva, uma narrativa marcante, na qual envolve o amor, mas, também, tortura e guerrilha urbana. “O mais importante é que ele [o filme] fala em um momento de fazer filmes. Narra um jovem que decide ser diretor de cinema e acaba sendo acusado de terrorismo”, explica. “O filme é uma chamada política para toda a juventude — a juventude deles, do próprio Neville d’Almeida — à luta. Lutar contra a ditadura, confrontar aquilo que ele percebia estar errado, do ponto de vista da vanguarda artística.”

 

 

Somente anos mais tarde foi encontrada uma versão não adulterada do filme na Europa. A cópia havia sido enviada para a Quinzena dos Diretores do Festival de Cannes e, hoje, está guardada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “Nós podemos ver, nesse achado, a luta que era fazer filmes no período da ditadura militar. Esse filme é uma obra de arte que foi censurada por ser perigosa demais. Foi um período onde todo o setor cultural foi destruído e reprimido”, finaliza.

 

Imensuráveis outros filmes foram censurados durante o período da ditadura, mesmo aqueles que não faziam uma crítica direta ao governo brasileiro. Incluindo alguns internacionais, como Laranja Mecânica, de 1971, que foi banido por sua extrema violência e por exibir “conteúdo promiscuo” e “obscenidade”. Uma versão com bolinhas pretas cobrindo os genitais dos personagens em cenas de nudez foi disponibilizada em 1978. O Massacre da Serra Elétrica, de 1974, foi banido por cenas de extrema violência e sanguinolência, considerado pela Censura Federal como um “atentado contra a moral e os bons costumes”. Foi liberado em 1980.

 

Laranja Mecânica (à esquerda) foi banido por sua extrema violência, já O Massacre da Serra Elétrica (à direita) foi considerado um atentado contra a moral e os bons costumes. (Fotos: Internet Movie Database — IMDb/Edição: Luana Ely Quintana))

 

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