“Fratelli Tutti” coisa nenhuma. “Memorando” exorta que antes do conclave os cardeais releiam “Dominus Iesus”

Imagem: Paul Haring | CNS

16 Mai 2022

 

Há alguns meses circula entre os cardeais uma nova revista, criada inteiramente para eles, com a finalidade declarada de ajudá-los a “se reconhecerem para tomar as decisões corretas nos momentos importantes da vida da Igreja”. Em outras palavras: em vista do futuro conclave.

 

A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 12-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

A revista tem o título em latim “Cardinalis”, é enviada a todos os membros do sacro colégio de cardeais e pode ser lida em quatro idiomas, inclusive online. É publicada em Versalhes (França). Está escrita por uma “equipe de vaticanistas de diferentes países e de diversas tendências”. O primeiro número saiu em novembro de 2021 com o cardeal iraquiano Louis Raphaël Sako, Patriarca da Babilônia dos Caldeus, na capa, e o segundo em abril deste ano com o cardeal Camillo Ruini na capa.

De fato, a entrevista que abre este último número é com este culto cardeal de 91 anos que desempenhou um papel importante nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI.

Recentemente este blog, Settimo Cielo, publicou duas reflexões de Ruini, uma sobre Deus (disponível neste link, em inglês) e outra sobre o homem (disponível neste link, em inglês), isso é, sobre as questões-chave para a missão da Igreja no mundo. E novamente nesta entrevista em “Cardinalis” – realizada pela vaticanista estadunidense Diane Montagna – ele insiste em quais são as verdades “centrais e decisivas” do cristianismo sobre as quais a Igreja ganha ou perde tudo:

 

O primeiro ponto, e o mais importante, é aquele em que Bento XVI tem insistido muito: a fé e a confiança em Deus, a primazia de Deus em nossa vida. O segundo ponto, inseparável do primeiro, é a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus e nosso único salvador. O terceiro é o homem, criado à imagem de Deus e convertido em seu filho adotivo em Cristo, o homem chamado à vida eterna, o homem que já hoje busca viver como filho de Deus”.

 

Em particular, destaca Ruini, não se deve obscurecer a verdade de Jesus Cristo, único salvador de todos, afirmada pelo Novo Testamento e reafirmada pela declaração do ano 2000 “Dominus Iesus”, um “documento fundamental” contra o relativismo presente na Igreja.

Ruini não diz, porém, o fato de que esta verdade capital deve voltar a estar no centro de atenção dos cardeais chamados a eleger o próximo Papa está destacado com força nas páginas seguintes da revista, em um texto que tem o inequívoco título de “Memorando para um futuro conclave”.

Assinado pelo professor Pietro De Marco, porém fruto de uma equipe de reflexão mais ampla, o “Memorando” adverte do perigo de equiparar a revelação cristã com outras religiões e de despojar a morte de Jesus na cruz de todo valor redentor, reduzindo-a a uma mensagem ética de transformação dos corações e da sociedade:

 

A afirmação do caráter único e universal da mediação salvífica de Cristo é, por outro lado, parte central da boa nova que a Igreja vem anunciado ininterruptamente desde a era apostólica. ‘Jesus é a pedra que vocês, construtores, rejeitaram, que se tornou a pedra angular. Não existe salvação em nenhum outro, pois debaixo do céu não existe outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos’ (Atos 4, 11-12)”.

 

Se esta verdade primordial é obscurecida “acontece, como infelizmente ocorre, a dissolução do sujeito cristão”. Por isso, o “Memorando” adverte que, inclusive em um conclave, a “fidelidade da tarefa de Pedro de confirmar [na fé] os irmãos” deve voltar ao centro da reflexão sobre esta pedra angular do Credo cristão. Independentemente desses recortes que são produtos de certas leituras irenistas e banalizantes de uma encíclica como a “Fratelli Tutti” do Papa Francisco.

 

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Surpreendentemente, porém não para os bem informados, também às vésperas do conclave de 2005, no qual o Papa Joseph Ratzinger fora eleito, houve um cardeal que chamou energicamente seus irmãos a colocar na base da reflexão a verdade de Jesus Cristo, o único salvador de todos.

Esse cardeal foi Giacomo Biffi (1928-2015), destacado teólogo e arcebispo de Bolonha desde 1984 até 2003, quem, ao falar em 15 de abril de 2005 em uma das reuniões a portas fechadas que precederam esse conclave, dirigiu-se aos assistentes da seguinte maneira:

 

Há alguns dias escutei na televisão uma religiosa idosa e devota que respondia assim ao entrevistador: ‘Este Papa, que morreu, foi grande sobretudo porque nos ensinos que todas as religiões são iguais’. Não sei se João Paulo II gostaria de receber um elogia como esse”.

 

Continuou:

 

Quero destacar ao novo Papa o caso da ‘Dominus Iesus’: um documento explicitamente de acordo e publicamente aprovado por João Paulo II; um documento pelo qual gosto de expressar ao cardeal Ratzinger minha vibrante gratidão. Que Jesus é o único Salvador necessário de todos é uma verdade que em vinte séculos – a partir do discurso de Pedro depois de Pentecostes – nunca se havia escutado a necessidade de reivindicar. Esta verdade é, por assim dizer, o grau mínimo da fé; é a certeza primordial, é o entre os crentes o dado simples e mais essencial. Em dois mil anos não foi jamais posto em dúvida, nem sequer durante a crise ariana e nem sequer com a Reforma Protestante. O dever de recordá-la em nossos dias nos dá a medida da gravidade da situação hodierna. Não obstante, este documento, que reivindica a certeza primordial, mais simples, mais essencial, foi contestado. Foi contestado em todos os níveis: em todos os níveis da ação pastoral, do ensino teológico, da hierarquia”.


Concluiu Giacomo Boffi no pré-conclave de 2005:

 

Contaram-me de um bom católico que propôs a seu pároco fazer uma apresentação da ‘Dominus Iesus’ à comunidade paroquial. O pároco (um padre excelente e bem-intencionado) lhe respondeu: ‘Esqueça-o. Esse é um documento que divide’. ‘Um documento que divide’. Grande descobrimento! Jesus mesmo disse: ‘Eu vim para trazer a divisão’ (Lucas 12, 51). Porém, muitas palavras de Jesus são hoje censuradas pela cristandade; ao menos pela cristandade em suas partes mais loquentes”.

 

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De fato, a declaração “Dominus Iesus”, publicada em 6 de agosto de 2000 com a assinatura do então cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) Joseph Ratzinger, foi objeto de fortes críticas não só de fora da Igreja Católica, mas também de membros de alto escalão da hierarquia como o cardeal Edward Cassidy, na época presidente do Pontifício Conselho para a Unidade Cristã, e seu sucessor Walter Kasper.

Para diminuir sua autoridade, os opositores costumavam atribuir a paternidade de “Dominus Iesus” apenas ao prefeito da CDF, sem a aprovação real do papa.

Mas não foi exatamente assim. Em uma contribuição a um livro em memória de João Paulo II, escrito em 2014 após sua renúncia ao papado, Ratzinger reiterou a total harmonia entre ele e o papa na publicação desse documento. Nestas exatas palavras:

 

Entre os documentos sobre vários aspectos do ecumenismo, o que provocou maior reação foi a declaração ‘Dominus Iesus’ de 2000, que resume os elementos indispensáveis da fé católica. [...] Diante da tempestade que se formou em torno da ‘Dominus Iesus’, João Paulo II me disse que pretendia defender inequivocamente o documento no Angelus. Ele me convidou para escrever um texto para o Angelus que fosse, por assim dizer, hermético e não sujeito a nenhuma interpretação diferente. Tinha que ser completamente inconfundível que ele aprovou o documento incondicionalmente”.

 

O já papa emérito Bento XVI então relata sobre o discurso:

 

Então preparei um breve discurso: não pretendia, no entanto, ser muito brusco, e por isso tentei me expressar com clareza, mas sem aspereza. Depois de lê-lo, o papa me perguntou mais uma vez: ‘É realmente claro o suficiente?’. Eu respondi que era. Aqueles que conhecem os teólogos não ficarão surpresos que, apesar disso, houvesse depois alguns que sustentaram que o papa prudentemente se distanciou desse texto”.

 

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Também em outro de seus escritos, alguns meses depois, em forma de mensagem à Pontifícia Universidade Urbaniana, o papa emérito Bento XVI reiterou a importância vital da verdade contida na “Dominus Iesus”, embora sem mencioná-la explicitamente.

A Urbaniana é a universidade missionária por excelência, em conjunto com a Congregação para a Evangelização dos Povos.

E Ratzinger aproveitou precisamente disso para reagir às dúvidas que ameaçam a própria ideia da missão “ad gentes, que muitos gostariam de substituir por um diálogo igualitário entre as religiões, em vista de “uma força comum para a paz”.

Sem perceber que ao fazer isso – escreveu Ratzinger – se deixa de lado “a verdade que moveu os primeiros cristãos” a pregar o Evangelho até os confins da terra:

 

Supõe-se que a verdade autêntica sobre Deus, em última instância, é inatingível e que no máximo o inefável pode se fazer presente com uma variedade de símbolos. Esta renúncia à verdade parece realista e útil para a paz entre as religiões do mundo. E, no entanto, isso é letal para a fé. De fato, a fé perde seu caráter vinculante e sua seriedade se tudo for reduzido a símbolos que são, em última análise, intercambiáveis, capazes de apontar apenas de longe para o mistério inacessível do divino”.

 

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Não apenas isso. Além da assinatura do cardeal Ratzinger, na parte inferior da declaração “Dominus Iesus” havia também a do secretário da Congregação para a Doutrina da Fé da época, Tarcisio Bertone.

Numa subsequente entrevista em livro, Bertone revelou mais do que se passou nos bastidores tanto da gênese da “Dominus Iesus” como do acordo completo entre João Paulo II e Ratzinger:

 

Um elemento típico da firmeza doutrinal de João Paulo II diz respeito à sua paixão por uma cristologia verdadeira e autêntica. Ele mesmo estava pedindo pessoalmente a declaração dogmática sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, ‘Dominus Iesus’, apesar dos rumores que atribuem a uma ‘fixação’ do cardeal Ratzinger ou da Congregação para a Doutrina da Fé o fato de ter querido esta famosa declaração, rumores que também se espalharam no campo católico. Sim, foi o próprio João Paulo II que pediu pessoalmente a declaração, porque ficou impressionado com as reações críticas à sua encíclica sobre o espírito missionário, ‘Redemptoris Missio’, com a qual ele queria animar os missionários a anunciar Cristo mesmo em contextos onde outras religiões estão presentes, para não reduzir a figura de Jesus à de qualquer fundador de um movimento religioso. As reações foram negativas, especialmente na Ásia, e o papa ficou muito decepcionado. Assim, no Ano Santo de 2000 – o ano cristológico por excelência – ele disse: ‘Por favor, prepare uma declaração dogmática’. Assim surgiu a ‘Dominus Iesus’, densa, enxuta e em linguagem dogmática. Permanece bastante importante no clima atual da Igreja porque, a partir da análise de uma situação preocupante em escala global, oferece aos cristãos os contornos de uma doutrina fundada na revelação que deve orientar um comportamento consistente e fiel ao Senhor Jesus, o único e salvador universal”.

 

Ao entrevistador que lhe perguntou como o Vaticano reagiu às críticas, Bertone respondeu:

 

Não apenas no campo secular, mas também no campo católico, houve quem se aliasse a essas críticas. O papa ficou duplamente amargurado. Houve uma sessão de reflexão justamente sobre essas reações, especialmente dos católicos. No final do encontro, o papa nos disse com força: ‘Quero defender a Dominus Iesus, e quero falar sobre isso no domingo, 1º de outubro, durante a oração do Angelus’ – eu, o cardeal Ratzinger e o cardeal Re estávamos presentes – ‘e eu gostaria de dizer isso e aquilo’. Tomamos nota de suas ideias e redigimos o texto que o papa aprovou e depois pronunciou. Era o domingo em que os mártires chineses foram canonizados. A coincidência fez com que alguns sugerissem certa prudência: ‘Não é apropriado’, lhe sugeriram, ‘que se fale de Dominus Iesus naquele mesmo dia, seria melhor fazê-lo em outro contexto. É melhor que o adie, poderia torná-lo público em 08 de outubro, o domingo do jubileu dos bispos, na presença de centenas de prelados’. Mas o papa respondeu a tais objeções: ‘O quê? Agora tenho que adiar? Absolutamente não! Decidi em 1º de outubro, decidi neste domingo e no domingo farei isso!’”.

 

De fato, no Angelus de 1º de outubro de 2000, João Paulo II apresentou a “Dominus Iesus” como “aprovada por mim de forma especial”. E concluiu: “Espero que esta declaração que me é muito querida, depois de tantas interpretações erradas, possa finalmente cumprir sua função de esclarecimento”.

Uma função hoje mais relevante do que nunca.

 

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