20 Abril 2022
"Tento explicar que a escolha do celibato é uma questão pessoal, inquestionável, que a pessoa mantém firme até o dia em que mudar de ideia. Uma escolha de consciência é uma questão entre você e Deus, se é que existe. O importante é que o coração seja mutma'inn, tranquilo, uma categoria da vida interior que sei que tem um valor discriminatório para meus interlocutores muçulmanos", escreve Ignazio De Francesco, monge dossettiano da Pequena Família da Anunciação, patrologista e islamologista, em artigo publicado por Settimana News, 15-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Então, você não vai se casar?”. Os olhares se fixam em mim, sentado na parte de trás da minivan lotada, no trânsito frenético para o Ramallah antes de terminar o jejum.
Até duas moças cobertas de véus dos pés à cabeça sentadas atrás do motorista sentem a necessidade de se virar para acompanhar a discussão, iniciada pelo meu jovem vizinho, em meio a um misto de curiosidade, compaixão e reprovação.
O Islã, como se sabe, incentiva vigorosamente o casamento, como forma de castidade perfeita (através da satisfação dos impulsos sexuais) e a ampliação da Ummah.
Em primeiro lugar, tento explicar que a escolha do celibato é uma questão pessoal, inquestionável, que a pessoa mantém firme até o dia em que mudar de ideia. Uma escolha de consciência é uma questão entre você e Deus, se é que existe.
O importante é que o coração seja mutma'inn, tranquilo, uma categoria da vida interior que sei que tem um valor discriminatório para meus interlocutores muçulmanos.
Mas depois eu jogo uma pedra na lagoa: até a vossa tradição contém germes de monaquismo, escondidos no poderoso sentido do absoluto de Deus que vocês carregam dentro de si. Assim, diz-se que, na primeira geração de muçulmanos, alguém tenha sido tentado até ao recurso da castração, como forma de garantir uma dedicação sem flexões à causa de Deus.
Rabiʿa al-'Adawiyya (Basra, 713/717 - Basra, 801) foi uma mística árabe muçulmana, considerada a mulher sufi mais famosa e reverenciada.
Estou pensando em duas figuras luminosas na história da espiritualidade islâmica: 'Uthman b. Ma'zun (m. 625) e Rabi'a al-'Adawiyya (m. 801). A segunda é a grande mística de Basra, que assim respondeu a um figurão da cidade que a pedira em casamento: "Você, passional, vá procurar uma passional como você!"
Do primeiro, narra-se que sua esposa foi reclamar diretamente ao Profeta do Islã: "Não temos nada dele: durante o dia ele jejua, à noite ele fica acordado para rezar". Segundo a tradição, Maomé o teria advertido assim: "‛Uthmān, Deus não nos prescreveu o monaquismo!" E em outra narração: “'Uthman, o bendito Deus superior não nos prescreveu o monaquismo. O monaquismo da minha nação é o jihad pela causa de Deus”.
Segundo o grande orientalista Massignon, seriam narrativas construídas a posteriori, para conter uma perigosa tendência celibatária, numa época em que o Islã precisava de filhos e combatentes. Mas são suposições que - eu bem sei - não é possível discutir com os muçulmanos, que geralmente são alheios a uma abordagem histórico-crítica de suas fontes. Que pena!
Permanece o forte sentido do absoluto de Deus no Islã, que se manifesta aqui e ali na forma de renúncia ao casamento.
Em 2014 Islamweb, um site do Catar de ortodoxia comprovada, tranquilizava um muçulmano embaraçado pelo caso dos "celibatários do Islã", citando os casos marcantes do historiador al-Tabari (m. 923), do especialista em hadith al-Nawawi (m. 1277), e do pai do islamismo salafita Ibn Taymiyya (m. 1328).
A sua escolha - lê-se no site gerido pelo Ministério dos Assuntos Religiosos do Qatar - "era motivada pelo desejo de se dedicarem mais livremente à ciência legal e de se dedicarem mais profundamente ao culto divino" [1].
Nada de errado se os outros seguirem seu exemplo hoje, desde que tenham a força da coerência. É o caso de uma parente materna de uma querida amiga síria, a quem apelidei de khalatuki al-qiddisa (sua santa tia): ela morava no cômodo mais interno da casa, comendo frugalmente e rezando sem parar. Muito linda, segundo a descrição que me foi dada, e cheia de bom humor e doçura, mas indisponível para uma vida diferente daquela em que ela perseverou até a morte.
"Allah ya'tik al-'afye", grita para o motorista o garoto sentado ao meu lado: "Que Deus te dê saúde" é a frase usada para avisar que você quer descer (Deus aqui tem a ver também com as paradas de ônibus). Ele sorri para mim e eu sorrio para ele: "E você, você é casado?" "Lissa ba'd", ainda não. “Bem, pense nisso então. O casamento é algo belíssimo, mas também se pode viver sem ele, sem cair no haram, e gastando todas as energias para o bem da comunidade e para a glória de Deus, se é que existe”.
[1] Disponível aqui.