Dugin e a Russia de Putin

Foto: The Presidential Press and Information Office | Wikimedia Commons

16 Março 2022

 

"Deve-se ter como premissa que a influência das teorias de Dugin na Itália foi e é limitada a círculos bastante restritos e nunca conheceu uma popularidade de massa. No entanto, estamos falando de círculos inclusive muito poderosos, tanto econômica quanto politicamente.". 

 

O artigo é de Germano Monti, publicado por Settimana News, 15-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

A Europa Ocidental é decadente, perde toda a identidade e isso não é consequência de processos naturais, mas ideológicos. As elites liberais querem que a Europa perca sua identidade, com a política da imigração e do gênero. (…) A Europa será cada vez mais contraditória, cada vez mais idiota. Os russos devem salvar a Europa das elites liberais que a estão destruindo (...). Os países vizinhos à Rússia eram construções artificiais após o colapso da União Soviética e não existiam antes do comunismo. Eles são o resultado do colapso comunista. Mas eles eram parte de uma civilização eurasiana e do império russo pré-revolucionário. Não há agressão de Putin, mas a restauração de uma civilização russa que se dissolveu" (Aleksandr Dugin, entrevista concedida a Giulio Meotti, il Foglio - 2 de março de 2017).

 

Esta não é uma guerra com a Ucrânia. É um confronto com o globalismo como um fenômeno planetário integral. É um confronto em todos os níveis, geopolítico e ideológico. A Rússia rejeita tudo no globalismo, unipolarismo, atlantismo, por um lado, e liberalismo, antitradição, tecnocracia, Grande Reset, em uma palavra, do outro. É claro que todos os líderes europeus fazem parte da elite liberal atlantista. E estamos em guerra exatamente com isso” (Aleksandr Dugin, Agenzia Stampa Italia, 4 de março de 2022).

 

As palavras do patriarca de Moscou, Kirill, sobre a "guerra justa contra o lobby gay" despertaram perplexidade apenas naqueles que não estão familiarizados com o background político-ideológico das atuais classes dominantes na Rússia.

 

Aleksandr Gelevic Dugin é um ideólogo russo, conhecido mundialmente como o principal expoente da corrente de pensamento denominada "eurasianismo", segundo a qual existe um espaço geopolítico entre a Europa e a Ásia que representa um unicum, alternativo - cultural e politicamente - ao oeste atlantista e ao Oriente. Um espaço caracterizado por valores historicamente determinados e universais, irredutível às sugestões da modernidade e da mundialização.

 

Pan-eslavismo e colapso da União Soviética

 

Para definir o pensamento de Dugin é bom tomar cuidado com excessivas simplificações. O teórico russo, de fato, é muitas vezes e apressadamente descartado como um nacionalista qualquer, mas essa definição apenas o enquadra apenas parcialmente.

 

Dugin é certamente um epígono do pan-eslavismo russo oitocentista, mas ele o rejeita à luz dos eventos subsequentes, inclusive o colapso da União Soviética. Superada a fase do "nacional-bolchevismo" (que o viu cofundador, junto com Eduard Limonov, do movimento inspirado nos "nazistas de esquerda" Gregor e Otto Strasser), o núcleo central de seu pensamento é o que ele próprio define “revolução conservadora”, algo que o tornou atraente aos olhos da extrema direita europeia, mas suas referências a alguns ícones do pensamento político ultraconservador ocidental estão longe de estar em completa sintonia.

 

Tomemos o caso de Julius Evola, em quem Dugin diz se inspirar: pois bem, Dugin e Evola compartilham a denúncia do catolicismo como elemento de decadência da cultura ocidental e, mais em geral, das culturas "imperiais"; mas enquanto o raciocínio de Julius Evola chega a uma espécie de neopaganismo (é sua a definição do cristianismo como "síncope da tradição romana"), o de Dugin o conduz à espiritualidade do cristianismo ortodoxo.

 

Enquanto na obra de Evola não existe o conceito de "Terceira Roma", identificando a ideia imperial, no máximo, com o Terceiro Reich, para Dugin a Terceira Roma existe e é, depois daquela dos Césares e Constantinopla, Moscou. Em resumo, ambos exaltam a função imperial ou "gibelina", mas a explicitam de maneira radicalmente diferente.

 

Dugin e a nomenclatura russa

 

Dugin é considerado por muitos o inspirador das escolhas de Vladimir Putin, tanto que ganhou a fama do novo Rasputin. Não estão disponíveis informações certas sobre todas as suas relações diretas com o presidente russo, de quem teria sido conselheiro pelo menos até 2015, mas é certo que Dugin foi conselheiro de Sergey Naryshkin, presidente da Duma de Estado (a Parlamento russo) de 2011 a 2016 e, posteriormente, chefe do SVR, o serviço de inteligência internacional russo.

 

Naryshkin tornou-se recentemente famoso em todo o mundo pelo vídeo da reunião em que é tratado como um mero estudante por Putin, um episódio a respeito do qual a mídia ocidental provavelmente deu uma interpretação superficial e equivocada. Os comentários ao vídeo, de fato, falaram de uma tímida tentativa de Naryshkin de dissuadir Putin da intenção de reconhecer imediatamente as repúblicas separatistas de Donbass, o que teria provocado a reação de desprezo do autocrata, até o humilhante auto da fé do chefe da inteligência.

 

Na realidade, a interpretação do episódio poderia ser muito diferente. Pressionado por Putin, Naryshkin finalmente se diz a favor da anexação das repúblicas separatistas ucranianas à Federação Russa, ganhando a ironia do presidente, que lhe recorda que o objeto da discussão não era aquele, mas o reconhecimento de sua independência.

 

Agora, é difícil acreditar que o homem por muitos anos à frente do serviço secreto internacional de uma grande potência, companheiro do próprio Putin na KGB soviética, cometa um erro tão flagrante em uma ocasião desse nível.

 

Outra interpretação parece plausível: de acordo com Francesca Salvatore, que escreve em "Inside over", Naryshkin - como seu mentor Dugin - é obcecado pela Ucrânia e é por sua ordem que "o SVR administra há tempo espiões e agentes duplos na Ucrânia e em todo o mundo, enquanto supervisiona as operações de desinformação global”.

 

É concebível, portanto, que Naryshkin não estivesse de forma alguma errado quando falou da anexação do Donbass, mas estivesse expressando o seu pensamento real, aliás coerente com aquele de seu antigo conselheiro. Ainda de acordo com as informações de "Inside over", muitos "rumores" indicam justamente Naryshkin como o substituto de Sergey Lavrov no Ministério das Relações Exteriores de Moscou.

 

O patriarca e o ideólogo

 

As palavras do patriarca Kirill sobre a guerra em curso refletem perfeitamente a atitude de Dugin. O novo czar do Kremlin encontra, portanto, em Dugin o estrategista e em Kirill um flautista útil, bom para encantar os habitantes da imensa "Rússia profunda", mas bem menos para convencer os jovens metropolitanos de Moscou e São Petersburgo, os intelectuais e artistas, que em número crescente estão deixando a Rússia.

 

O corpus ideológico de Dugin - assim como muitos artigos e entrevistas - é amplamente ilustrado em seu texto mais importante e orgânico, o ensaio "A quarta teoria política", um pesado tomo de mais de 450 páginas em que o ideólogo desdobra sua visão do mundo, uma alternativa às três principais ideologias da modernidade - liberalismo, comunismo e fascismo - defendendo a necessidade de superá-las em nome da necessária oposição ao liberalismo hegemônico no Ocidente capitalista e decadente.

 

Por um lado, o Dugin-pensamento parece - e é - orgânico e funcional para a propaganda de guerra do Kremlin, e isso é apenas uma constatação óbvia (além do mais, Dugin foi declarado uma "pessoa não grata" por vários estados, incluindo Grécia e Canadá, bem como - naturalmente – a Ucrânia).

 

Menos óbvio é o interesse e o sucesso discreto no Ocidente e, em particular, na Itália, onde seus livros são publicados por editoras como a NovaEuropa, que se autodefine "a primeira editora comunitária europeia" ou a Aspis, que faz parte do um network editorial que inclui Altaforte e Il Primato Nazionale, editora e revista vinculada à CasaPound.

 

Dugin, a Lega e Salvini

 

Deve-se ter como premissa que a influência das teorias de Dugin na Itália foi e é limitada a círculos bastante restritos e nunca conheceu uma popularidade de massa. No entanto, estamos falando de círculos inclusive muito poderosos, tanto econômica quanto politicamente.

 

Se para se referir abertamente ao ideólogo russo no pensamento e na ação, além do chamado "filósofo" Diego Fusaro, são apenas pequenos grupos de extrema direita, ativos tanto na web quanto na editoria, não deve ser ignorado o papel desempenhado por Dugin nas relações entre a Rússia e um importante partido político, inclusive ainda no governo do país: a Liga de Matteo Salvini.

 

Entre os grupos de extrema-direita que mantêm relações estreitas com Alexander Dugin, destaca-se a CasaPound, que a 22 de junho de 2018, no prédio que ocupa em Roma, realizou um debate com o cientista político russo, o escritor Maurizio Murelli (condenado a 18 anos de prisão por ajuda moral no assassinato do agente de polícia Antonio Marino, atingido no peito por uma granada de mão em 12 de abril de 1973) e do jornalista Giulietto Chiesa, falecido em 2020, correspondente por muito tempo de Moscou para a Unità, jornal do PCI e, posteriormente, titular dos direitos exclusivos para a Itália, das imagens da rede Russia Today e de sua subsidiária Ruptly. O diretor da CasaPound também era Mauro Antonini, fundador e presidente da associação Lazio-Rússia, “gêmea” de associações similares em outras regiões italianas.

 

Quanto ao Movimento 5 Estrelas, não há notícias de contatos diretos com Dugin, mas o atual subsecretário de Relações Exteriores, Manlio Di Stefano, no não muito distante 28 de junho de 2016 se gabava no Blog delle Stelle de ter representado - o único italiano - o M5S no congresso do partido de Putin, Rússia Unida.

 

Compreensíveis, portanto, as ironias reservadas a Di Stefano nas últimas semanas devido à sua súbita conversão atlantista, pois o Di Stefano que hoje se alinha sem "se" nem "mas" à firme condenação da comunidade internacional pela decisão de Vladimir Putin de reconhecer as repúblicas separatistas de Donetsk e Luganks e de invadir a Ucrânia é a mesma pessoa que definiu a Ucrânia como um "estado fantoche da OTAN (EUA e UE)", como lembrado, entre outros, por Luciano Capone no "Il Foglio" de fevereiro passado 23.

 

As exibições de Matteo Salvini vestindo uma camiseta com a imagem de Putin estampada, contra o fundo do Kremlin ou no Parlamento Europeu, bem como suas tiradas ("Dou dois Mattarella em troca de meio Putin!"), são apenas a representação folclorista de algo muito mais sólido. É bem conhecida a situação da investigação conhecida como "Russiagate", que começou após os artigos publicados na Itália pelo "L'Espresso" e, no exterior, pelas agências de jornalismo investigativo BuzzFeed e Bellingcat no verão europeu de 2019. A investigação da magistratura ainda está em curso.

 

Moscou, Hotel Metropol

 

Em 18 de outubro de 2018 - governo Liga-M5S com Salvini vice-primeiro-ministro e Ministro do Interior - alguns homens se encontram no hotel Metropol de Moscou. São três italianos e três russos e falam de política, mas também de negócios.

 

O italiano mais importante é Gianluca Savoini, colaborador próximo de Matteo Salvini (antes dele, também de Umberto Bossi e Roberto Maroni), fundador e presidente da Associação Lombardia-Rússia, anteriormente membro do grupo de extrema-direita "Orion", reunido em torno do já mencionado Maurizio Murelli e do qual também fazia parte o que se tornará outro importante expoente da Liga, Mario Borghezio.

 

Um dos russos presentes no encontro no hotel de Moscou é Ilya Yakunin, considerado muito próximo a Vladimir Putin.

 

De acordo com as acusações, Savoini e os outros teriam estabelecido negociações para obter, como parte de um acordo comercial entre Itália e Rússia para a compra de combustível, um financiamento oculto de algumas dezenas de milhões de euros à Liga. Em uma foto tirada em frente ao hotel Metropol no dia anterior ao encontro, Aleksandr Dugin aparece ao lado de Savoini, que, aliás, na época era presidente honorário da associação Piemonte-Rússia, gêmea daquelas dirigidas pelo mesmo Savoini e pelo "fascista do Terceiro Milênio" Antonini.

 

Poucas semanas antes das revelações do “L'Espresso” e do início da investigação judicial, Aleksandr Dugin é o principal orador em uma conferência do movimento juvenil da Liga realizada no castelo de Monteruzzo em Castiglione Olona, em área de Varese. Justamente Gianluca Savoini organiza o encontro entre Dugin e o movimento juvenil do Carroccio. Naquela ocasião, Dugin declarou: “Conheço Salvini pessoalmente, acredito que ele é o melhor líder da nova Europa, é o homem do futuro”.

 

Embora, com toda a probabilidade, a grande maioria dos cidadãos italianos nem mesmo está ciente de sua existência, a influência de Aleksandr Dugin foi e está longe de ser irrelevante.

 

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