A questão social e a democracia política: mais uma oportunidade

Encontro de Lula e Alckmin | Foto: Ricardo Stuckert

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

17 Fevereiro 2022

 

"As cartas estão na mesa, e de nada servem as especulações sobre uma eventual irrupção de uma terceira via, salvo para impedir a conformação de uma robusta frente política em torno de Lula e Alckmin que se credencie a dar um basta no flagelo a que estamos expostos. No horizonte já se divisa a possibilidade de uma coalizão tão ampla quanto a que soubemos construir nas lutas pelas diretas e que nos promete um caminho de vitória", escreve Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.

 

Segundo ele, "a aliança Lula-Alkmin recupera as melhores inspirações que estiveram presentes nas lutas contra o regime do AI-5, mas por si só, sem se encorpar com as demais forças democráticas e sem conquistar a imaginação social de todos os descontentes com o que aí está, nada lhe afiança o seu sucesso e sua intenção de nos devolver a feliz combinação da questão social com a da democracia política".

 

Eis o artigo.

 

Estamos prestes a recuperar o fio da meada que num momento desastrado deixamos escapar das nossas mãos a partir das tratativas que ora se realizam por iniciativa de importantes lideranças políticas no sentido de forjar uma aliança com vistas à próxima sucessão presidencial em torno das candidaturas de Lula e de Alckmin. Foi da convergência das forças sociais e políticas que ambos representam que se pavimentou o terreno para a derrota do regime militar de 1964 e a democratização cujo melhor fruto foi a promulgação da Carta de 88, a mais efetiva defesa com que contamos a fim de conter a sanha destrutiva do governo Bolsonaro que objetiva instaurar mais um ciclo de autoritarismo político no país.

 

Naquelas infortunadas circunstâncias, por ensaio e erro, descobriu-se o caminho que poderia levar a interrupção do regime autoritário de então pela ação combinada dos vetores sociais animados pelos temas da democracia política, com ênfase nos processos eleitorais, tal como na eleição de 1974 com a vitória da candidatura de Orestes Quércia ao Senado, com aqueles originários da questão social vigorosamente expressos pelo sindicalismo operário, especialmente do ABC em São Paulo e que se espraiou em todo o país.

 

A fórmula vitoriosa tinha como consigna a democracia política aliada à questão social e se fez presente ao longo do tempo em que se elaborou o texto constitucional de 88. O fio da meada começa a escapar do nosso controle quando o PT se recusa a subscrever a Carta, e, mais gravemente ainda, na sucessão presidencial de 1989, quando em um processo autofágico as forças que conduziram a democratização competem entre si e favorecem a vitória de um cavaleiro da fortuna que viria a sofrer um impeachment logo depois.

 

Apartado da questão democrática o tema do social adquire por assim dizer tintas de autonomia, num processo que se extrema no governo Dilma Rousseff, franqueando a via para que elites contrariadas em seus interesses impusessem a ela um processo de impeachment em meio a uma política de caça às bruxas que se difundiu no país a pretexto de combate à corrupção. No curso desse errático movimento desde a sucessão de 1989 se desfizeram, pouco a pouco, os laços   sociais, os sentimentos comuns e a própria memória do que foram as lutas pela democratização do país. No seu lugar, acabaram se impondo vocalizações negadores da política e de suas instituições. Ninguém me representa foi o refrão presente nas manifestações desse que trouxe consigo um processo de desertificação da política.

 

Mais uma vez, abriu-se uma ampla janela de oportunidade para que setores reacionários das elites empalmassem as rédeas do Estado vindo a recorrer ao que havia de mais obscuro na cena parlamentar, assumindo a candidatura de Jair Messias Bolsonaro, personagem nostálgico do regime do AI-5, que assumirá a presidência com o declarado propósito de sepultar a obra e as lembranças dos idos das lutas pela democratização do país, especialmente a Constituição.

 

Para esse fim, com os cuidados de um plano de Estado-maior, cogitou-se desferir um golpe letal na resistência democrática que freava suas iniciativas autoritárias com a conspiração do 7 de setembro, que se frustrou por motivos ainda não de todo explicados. A sorte do regime Bolsonaro seria jogada no cenário imprevisto da sucessão de 2022 e não num golpe de mão. Decorre daí o que não deixa de significar uma vitória das forças democráticas, que o novo terreno em que se travam as lutas contra a reprodução do autoritarismo seria o das instituições e do voto.

 

Nesse novo teatro de operações, tornou-se imperativo para a democracia ser capaz de apresentar uma candidatura competitiva, evitando experiências negativas, como as de 1989, quando ela se deixou fragmentar. A candidatura Lula, a confiar nas pesquisas eleitorais, logo se destacou em que pesem as críticas sobre os longos anos de hegemonia petista por parte da esquerda democrática e de outros setores de igual profissão de fé nas instituições da democracia. Nesse sentido, a opção de Lula por uma aliança com Alckmin, personalidade política com larga experiência de governo e com histórico de vida comprometido com as instituições da democracia, ambos tarimbados na política e fartamente advertidos pelos perigos que rondam o momento presente, significa, na prática, uma atitude autocrítica em relação às suas antigas rejeições às forças que se identificam com as concepções da social-democracia.

 

As cartas estão na mesa, e de nada servem as especulações sobre uma eventual irrupção de uma terceira via, salvo para impedir a conformação de uma robusta frente política em torno de Lula e Alckmin que se credencie a dar um basta no flagelo a que estamos expostos. No horizonte já se divisa a possibilidade de uma coalizão tão ampla quanto a que soubemos construir nas lutas pelas diretas e que nos promete um caminho de vitória.

 

É lição antiga a de quem não aprende com seus próprios erros esteja condenado a repeti-los. A esquerda democrática é herdeira de uma longa história de alianças, a começar por Marx que em 1848 se empenhou em construir uma frente política entre a social-democracia e os liberais em suas lutas pela democratização da Alemanha, e que segue como recurso de sua afirmação em momentos decisivos da sua trajetória, como nos tempos sombrios das lutas contra o nazi-fascismo. Em nosso país temos a experiência vivida, tanto na resistência ao Estado Novo dos anos 1930, como há pouco contra o regime do AI-5, da fertilidade das vias das alianças políticas em favor da democracia, como também conhecemos os desastres a que fomos levados por ignora-las.

 

A aliança Lula-Alkmin recupera as melhores inspirações que estiveram presentes nas lutas contra o regime do AI-5, mas por si só, sem se encorpar com as demais forças democráticas e sem conquistar a imaginação social de todos os descontentes com o que aí está, nada lhe afiança o seu sucesso e sua intenção de nos devolver a feliz combinação da questão social com a da democracia política.

 

É imperativo reconhecer o caminho de pedras que a democracia tem pela frente que se defronta com inimigos que conhecem o terreno e estão dotados de amplos recursos e dispostos a uma luta encarniçada e sem quartel em defesa dos privilégios sobre os quais assentam seus domínios. Nesse combate não podemos dispensar a experiência e o tirocínio de quadros já provados e que se alinham em posições de liderança na luta comum de todos os democratas.

 

Leia mais