Cacciari e Agamben numa ladeira desastrosa. Artigo de Donatella Di Cesare

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09 Dezembro 2021

 

"Quem tem uma cultura de esquerda sabe o quanto as fronteiras são fluidas, quanto uma política ambígua do medo, uma certa fobocracia possa ter sucesso em situações de emergência. Mas denunciar mecanicamente o biopoder transformando-o em emblema do mal, apontando a pandemia como pretexto para um controle antidemocrático, acaba por se tornar grotesco", escreve a filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora de Filosofia Teórica na Universidade “La Sapienza”, de Roma, em artigo publicado por La Stampa, 08-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

A pandemia não é uma invenção do governo italiano, nem dos governos europeus, muito menos das forças ocultas da nova ordem mundial. É um evento trágico, que marcou o início de uma época inquietante, e é uma calamidade planetária sem precedentes, contra a qual, quando muito, teriam sido necessárias medidas mais imediatas e rigorosas. Por isso, olho com desaprovação, tristeza e um certo desconforto a iniciativa tomada por Giorgio Agamben e Massimo Cacciari que, juntamente com Mattei e Freccero, marcaram um encontro no International University College of Turin para constituir uma "Comissão da dúvida e da precaução". Eu esperava que eles parassem, que depois das primeiras graves declarações, que datam do ano passado, eles dessem um passo para trás, ou pelo menos para o lado.

 

Não está acontecendo isso. Eles continuam escorregando por uma ladeira desastrosa, onde suas posições se fundem com as da extrema direita, onde suas vozes filosóficas agem como megafone dos negacionistas mais toscos, dos conspiradores mais truculentos. Com eles, aqueles grupos de no vax e no green pass que obscenamente usam a estrela amarela dos judeus mortos com gás nos campos de concentração para indicar sua própria imaginária discriminação.

 

Os erros de Agamben e Cacciari são, ao mesmo tempo, de análise política e de juízo filosófico. E digo isso com ainda mais pesar pela estima que sempre tive por ambos. Mas como confundir o estado de emergência com o estado de exceção? A emergência é um terremoto, uma inundação, um tsunami, um acontecimento inesperado que se impõe em sua necessidade e deve ser enfrentado. O estado de exceção é ditado pela decisão de uma vontade soberana. Mesmo quem não leu os textos clássicos sobre esses temas sabe perfeitamente distinguir entre uma pandemia e um golpe de estado. O que está ocorrendo nos últimos anos é, no máximo, o fenômeno novo de um poder que anda em círculos, impotente diante dos desastres ecológicos, incapaz de combater os efeitos perversos do mundo doente.

 

Quem tem uma cultura de esquerda sabe o quanto as fronteiras são fluidas, quanto uma política ambígua do medo, uma certa fobocracia possa ter sucesso em situações de emergência. Mas denunciar mecanicamente o biopoder transformando-o em emblema do mal, apontando a pandemia como pretexto para um controle antidemocrático, acaba por se tornar grotesco. Outra coisa é o justo alarme e a legítima preocupação por um estado de emergência institucionalizado que mudaria o ordenamento jurídico.

 

Mas que sentido pode ter a batalha contra o passaporte verde? Onde estaria a discriminação? Sempre fui favorável ao passaporte verde, uma medida necessária que, para proteger a maioria de quem escolheu a vacina, restringe a liberdade de uns poucos, aqueles privilegiados que, ao recusarem a vacinação gratuita, pagam por sua escolha. A política está originalmente ligada com a força, a justiça com a violência. Existe uma tragicidade nas escolhas políticas inevitáveis, como as que vivemos nestes dois anos, a partir do lockdown, uma tragicidade que o próprio Cacciari nos ajudou a considerar no nexo entre política e ciência. Por que agora essa sua visão quase apolítica?

 

Desconfio daqueles que pregam a confiança e recomendam a gentileza. Os conflitos são conflitos. A democracia não poderia existir sem o exercício da suspeita. E a filosofia ensina a dúvida e o questionamento. Mas o ceticismo por princípios é uma atitude análoga à credulidade simplória. Fechado em sua própria dúvida insuspeitável, o espírito crítico acaba por se transformar em profeta oculto.

 

Posto isto, acrescento que a democracia é também escutar quem pensa diferente. As teses defendidas por Agamben e Cacciari, embora enganosas e desconcertantes, devem ser contestadas e rejeitadas quanto ao mérito. Não me agradam os ataques ressentidos e discordo abissalmente daqueles que, em nome de um cientificismo dogmático, aproveitam a oportunidade para lançar uma polêmica vazia e cheia de pretextos contra a filosofia ou a cultura humanística. Nestes últimos tempos, a ciência muitas vezes se revelou incapaz de assumir suas responsabilidades e até de falar no espaço público com as palavras certas: dúvidas deletérias foram expressas a despropósito por quem só mostrou rigidez. Se a Itália respondeu muito melhor do que outros à pandemia, é graças à tradição humanística e ao seu legado de humanidade.

 

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