É urgente um despertar profundo e radical. Entrevista com Fulvio De Giorgi

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17 Novembro 2021

 

Relançamos uma entrevista com o Professor Fulvio De Giorgi, Professor de História da Pedagogia da Universidade de Modena e Reggio Emilia, publicada no site Constituição, Conselho e Cidadania intitulada "A Igreja precisa urgentemente de um despertar profundo e radical", editada por Giandiego Carastro.

 

No site Viandanti aparece uma de suas reflexões que começa com estas palavras: “Tempos de responsabilidade para os católicos italianos. Tempos de metanoia para toda a Igreja da Itália”. A que responsabilidade somos chamados? Que conversão para toda a Igreja? Vamos tentar aprofundar com o prof. De Giorgi essas ideias.

 

A entrevista com Fulvio De Giorgi é de Giandiego Carastro, publicada pelo site Constituição, Conselho e Cidadania, 28-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Fulvio De Giorgi é professor de História da Pedagogia, no Departamento de Educação e Ciências Humanas da Universidade de Modena e Reggio Emilia. Ele é presidente da Sociedade Italiana de Historiadores da Educação e codiretor da revista "Annali di storia dell’educazione e delle istituzioni scolastiche".

 

Seus livros mais recentes são Paolo VI, il Papa del Moderno; La Repubblica grigia. Cattolici, cittadinanza, educazione alla democrazia; Il brutto anatroccolo. Il laicato cattolico italiano; La rivoluzione transpolitica. Il ’68 e il post-’68 in Italia. Pela editora Morcelliana acaba de ser publicado Quale sinodo per la Chiesa italiana? Dieci proposte.

 

Eis a entrevista.

 

Cem anos atrás, a Igreja despertava nas almas, como dizia o teólogo Romano Guardini. Agora, pelo menos na Europa, parece que está pegando no sono... Estamos diante de uma crise... Aqui a metáfora dessa crise é aquela do lento adormecer, na indiferença dos moradores dos bairros e das cidades. Em vez disso, seu colega Andrea Riccardi propõe uma metáfora diferente, aquela do fogo, de uma Igreja em chamas: qual a metáfora mais adequada? Pegar no sono? O fogo que devora? Ou?

 

“Vim trazer fogo à terra e como gostaria que já estivesse aceso”: não foi Jesus quem disse essas palavras? E não é o fogo - nos Atos dos Apóstolos - um sinal do Espírito? Eu realmente espero que o Sínodo faça queimar toda a Igreja! Mas para que isso aconteça é necessário ouvir o que o Espírito diz não só ao coração de cada um para a sua conversão pessoal, mas também ao coração de cada um e de todos para a conversão eclesial. De fato, a conversão pessoal ao Evangelho é sempre necessária e prioritária, mas não é suficiente, a menos que valorizemos a dimensão eclesial como tal.

 

Devemos também ouvir o que o Espírito diz à Igreja - e essa escuta não é óbvia, dada como certa - e depois é preciso não opor resistência ao Espírito. Se eu me disponho a essa atitude espiritual interior (e naturalmente - digo isso de imediato - sem considerar a minha percepção como prioritária em relação às outras: falo em voz baixa), eis que percebo no tempo que estamos vivendo uma gigantesca virada histórica. Não sei se a Igreja está parada ou mudando, vejo uma gigantesca mudança histórica acontecendo rapidamente em torno dela: cultural, psicológica, ideal e até ético-espiritual. Isso necessariamente determinará, gostemos ou não, mudanças também sobre e na Igreja.

 

 

A Igreja Católica, como a conhecemos desde a nossa infância e até agora, está historicamente acabando. Poderia ser um triste ocaso? Uma consunção? Como um pavio fumegante (não um incêndio) que está se apagando, incapaz de iluminar o novo contexto histórico e, portanto, inútil? Pode ser. Mas pode ser também que seja o amanhecer de um horizonte histórico novo e muito diferente.

 

Quer dizer, não acredito que o Espírito tenha deixado de soprar. Mas vejo muita resistência passiva ao Espírito. Como uma sonolência (concordo com você) ou um sono do qual despertar: "Desperta, ó tu que dormes!" (Ef 5,14). A luz avermelhada do Espírito está aí: depende de nós se esse avermelhado será um pôr do sol ou uma aurora. Vamos voltar para nós mesmos, acreditar no Evangelho e nos levantar. O que é necessário é um grande "despertar". Sem um verdadeiro, profundo e radical despertar espiritual (guarde esses três sinais) não há Sínodo: mas o Sínodo pode ser o instrumento bendito para iniciar esse despertar, despertando o entusiasmo evangélico.

 

Podemos dizer que a Igreja está travada porque é pouco trinitária? Ou seja, pouco relacional, pouco capaz de despertar relações vivas dentro de si? Os conselhos pastorais não ajudaram muito nesse sentido... Assim, o clero faz as coisas do clero, o laicato continua com as coisas do laicato, os religiosos cuidam dos seus próprios âmbitos... Pois bem, a Igreja poderia sair da crise, redescobrindo-se como ícone de um Deus vivo, ativo, único mas nunca só, uno mas nunca separado?

 

Assim como na sociedade francesa pré-revolucionária havia três "estados": nobreza, clero e terceiro estado, também há três "estados" na Igreja Católica: clero (somente homens), religiosos, laicato (terceiro estado). Na sociedade do antigo regime não havia igualdade jurídica, mas cada estado tinha suas próprias regras e, claro, os primeiros dois estados tinham os privilégios e o poder.

 

O terceiro estado, que era a maioria, não contava nada. Assim é canonicamente na Igreja: esta é a raiz estrutural do clericalismo, ou seja, da assimetria de dignidade, antes mesmo que de poder, na Igreja. Você sabe o que o Abade Sieyés escrevia em 1789? Ele escrevia: “O que é o terceiro estado? Tudo. O que foi até agora no ordenamento político? Nada. O que pede? Para se tornar algo”. Não poderíamos dizer o mesmo sobre os leigos no ordenamento eclesial? Desde criança ouço dizer "chegou a hora dos leigos". Bem, essa hora chegou e passou e não notamos muitas mudanças. Mas - aqui está o problema - a hora parece, justamente, ter passado (se o Espírito não nos surpreender).

 

Quero dizer: que riscos existem hoje? Que tantos leigos levantem a voz? Que estoure uma contestação e um dissenso como no período pós-conciliar? Que se esteja à mercê de extremismos jacobinos-laicais? Eu não acredito. Antes do início do caminho sinodal, ouvi alarmes na Itália de que algo semelhante ao Sínodo alemão poderia acontecer em nosso país: que nunca aconteça! E assim já temos o rugido da contrarrevolução preventiva antes de ter tido qualquer revolução, por menor que seja...

 

Mas existe esse risco de neocontestação? Tomara! Parece-me que o verdadeiro risco sejam o sono e a indiferença e as igrejas cada vez menos lotadas. Os leigos (geralmente idosos: não vejo muitos jovens) foram cloroformizados há tempo e cochilam resignados ou simplesmente não querem se arriscar a perder tempo em conversas, que - como sempre - não mudam nada. Também eu, confesso, tenho dúvidas: o tempo é um recurso escasso que não deve ser desperdiçado, talvez seja melhor dedicar o meu tempo à oração. E basta.

 

 

Do ponto de vista do historiador, que tipo de Igreja nós somos, no início dos caminhos sinodais? Em particular, no contexto italiano, existem características peculiares de ser Igreja na Itália, que se solidificaram ao longo das décadas?

 

Boa pergunta, mas a resposta como historiador exigiria muito espaço. Tenho que remeter às minhas pesquisas. Só estou dizendo que existe uma situação geral universal, compartilhada pela Igreja italiana, e existem aspectos específicos da realidade eclesial em nosso país. São dois âmbitos logicamente distintas, mas na verdade unidos. Certamente nos iludimos pensando que a nossa ainda fosse uma Igreja-de-povo, ao contrário de outros contextos católicos nacionais na Europa.

 

E agora estamos entendendo que, com passos rápidos (acelerados pelo Covid), pode não ser mais assim também para nós. Mas estamos parados, trancados, incapazes de ir além da coação a repetir, a fazer as mesmas coisas novamente de um tempo que não é mais o mesmo. Vamos combinar não com a análise da situação, mas sobre os critérios metodológicos para realizar uma análise séria e verdadeira, para realizar uma verificação verdadeira, profunda e radical (volto a ressaltar esses três atributos). Na minha opinião esses critérios são três:

 

1) compreender os processos históricos gerais, digamos “externos”, nos desafios (mesmo potencialmente destrutivos) que conduzem ao campo religioso;

 

2) avaliar os efeitos específicos dessas mudanças (inclusive positivas) e dos desafios dentro da comunidade eclesial sobre os fiéis;

 

3) fazer um exame honesto sobre as escolhas pastorais mais ou menos recentes, para identificar erros e insuficiências, isto é, onde (do ponto de vista evangélico) há erro de pensamentos, palavras, obras e omissões.

 

Precisamos de um honesto exame de consciência, para confessar as nossas culpas e pedir perdão, como se faz no início da Missa: “forma” de qualquer ato eclesial, mesmo de um Sínodo. Se, por outro lado, queremos dizer que o caminho da Igreja italiana, desde o pós-concílio até hoje, foi todo um caminho triunfal, de glória em glória, só de luzes e sem sombras, sem erros e sem pecados, portanto, sem nenhuma necessidade de tentar identificar erros e culpas, porque não existem, e se alguém sinaliza um problemas, o problema é ele...

 

 

Bem, se essa for a postura sinodal, e se estamos realmente convencidos disso, faltam - a meu ver - os pressupostos metodológicos para um confronto verdadeiro, profundo e radical. E então, obrigado e até logo. Sem polêmicas e sem rancores. Mas também sem perder tempo.

 

 

Devo muito da minha formação como crente ao Movimento Estudantes da Ação Católica, a associação de estudantes de nível médio dentro da AC. Em particular, refiro-me aos anos 1990, quando além do magistério do Papa João Paulo II, aguardávamos as intervenções do card. Martini, do bispo de Molfetta Dom Tonino Bello, do prior de Bose irmão Enzo Bianchi. Nos anos 1980, uma geração anterior à minha, havia as reflexões do Padre Turoldo, de Adriana Zarri, de Carlo Carretto, de Ítalo Mancini, do Padre Balducci ... Será que estão faltando hoje essas testemunhas brilhantes que gerem entusiasmo?

 

Aqui, gostaria de fazer duas considerações, em resposta à pergunta. Primeiro: hoje existem fortes vozes espirituais, mas são ignoradas. Existe um frescor, uma efervescência positiva e uma criatividade espiritual no mundo feminino: teólogas, biblistas, mulheres de pensamento. Mas, em geral, entre os biblistas existem estímulos interessantes. E assim, como no campo ecumênico, também no mundo reformado.

 

E, naturalmente, em primeiro lugar, existe aquela trombeta do Espírito na Igreja universal que é o Papa Francisco. Na Itália, o papa é amado e talvez - creio eu - também se gostaria de segui-lo, mas depois isso não é realmente possível. Podemos dizer que o clima pastoral (vamos deixar os projetos de lado: hoje falar de "projeto" em âmbito pastoral parece um palavrão, talvez porque já não sejamos mais capazes de planejar realmente ...), nos vários âmbitos e contextos da Igreja italiana, como nos passos do Papa Bergoglio? Bem ... vamos deixar para lá.

 

Segundo: aquelas vozes proféticas que você mencionou (e também muitos leigos como Ardigo, Scoppola, Bolgiani, Pedrazzi, Paola Gaiotti e tantos outros e outras) todos tiveram problemas, alguns mais ou menos, outros mais cedo ou mais tarde. Foram em grande parte silenciados. Aqui está um aspecto sobre o qual se deve fazer um sério exame de consciência. Se o fizermos, entenderemos muitas coisas. E também estou falando sobre os bispos. Você lembrou de meu conterrâneo Dom Tonino Bello, que conheci pessoalmente.

 

Cito sempre um dos seus pensamentos de 1985 (depois do Congresso de Loreto), no qual exprimia o seu ideal pastoral: “Uma Igreja pobre, simples e mansa. Que experimenta a tribulação humaníssima da perplexidade. Que compartilha com os simples mortais o mais doloroso de seus sofrimentos: o da insegurança. Uma Igreja certa apenas de seu Senhor e, quanto ao resto, frágil. Mas não por tática, mas por programa, por escolha, por vocação. Não uma Igreja arrogante, que reagrupa as pessoas, que quer revanches, que aguarda a vez para suas vinganças temporais, que faz ostentações musculares com carrancas de fisiculturistas. Mas uma Igreja desarmada, que se torna "companheira" do mundo. Quem come o pão amargo do mundo. Que nas ruas do mundo não pede espaços próprios para poder se colocar. Não pede áreas para a sua visibilidade compacta e ameaçadora [...] uma Igreja que compartilha a história do mundo. Que sabe conviver com a complexidade. Que lava os pés do mundo sem pedir nada em troca, nem mesmo o preço de crer em Deus, ou o pedágio de ir à missa ao domingo, ou a cota, a ser paga sem descontos e sem parcelamento, de uma vida moral menos indigna e mais conforme com o evangelho”.

 

Aqui, justamente daquele momento, a Igreja italiana adotou, durante muito tempo, uma linha exatamente oposta - ponto a ponto - em relação à indicada na época por D. Bello. Não faltaram vozes que indicaram os limites, carências e erros daquela linha oposta, dirigista e clericocêntrica, mas foram marginalizadas. O dano foi enorme. Houve um gigantesco fracasso pastoral: hoje, até mesmo alguns críticos mais alarmados e apocalípticos passam por cima disso, contornam, olham para o outro lado. Eu me perguntaria: onde vocês estavam? Em outro planeta? Mas não quero fazer essas perguntas, porque não estou interessado em culpabilizar ninguém ou apontar o dedo. Não, pelo contrário.

 

Precisamente aqueles que no passado foram vítimas de marginalização não nutrem, creio eu, intenções de vingança. Porém, para o bem da Igreja, é necessário um olhar claro: amoroso, mas também franco e, portanto, credível. Constatar que houve um gigantesco fracasso pastoral (que corre o risco de interromper a transmissão da fé às novas gerações) é só fazer honestamente uma obra de verdade: pura e simples.

 

E quanto à capacidade de tomar decisões na Igreja no final do processo sinodal? Podemos sempre escapar dizendo que "a Igreja não é uma democracia"? Que novidades os caminhos sinodais poderiam possibilitar?

 

Um Sínodo é inútil se não identifica escolhas prioritárias. Tudo deve ser seguido e nenhum problema, situação ou âmbito pastoral deve ser esquecido: mas para isso existem as formas - sérias e exigentes - de pastoral ordinária. O Sínodo deve identificar os poucos pontos essenciais e fundamentais sobre os quais se alavancar para remover os bloqueios antievangélicos, curar as feridas da Igreja, iniciar uma mudança verdadeira e radical.

 

É necessário um processo circular: uma escuta ampla do povo de Deus para identificar esses poucos pontos essenciais e depois outra escuta sobre o mérito dos pontos identificados. Quando digo escuta, quero dizer uma atenção a todos e de várias formas. Todos os fiéis devem estar verdadeiramente envolvidos nas formas espirituais apropriadas. Mas por que excluir outras formas, menos eclesiais e mais seculares (mas não falsas, dentro dos seus limites) para conhecer as opiniões? Não seria possível ter assim dados sobre os quais refletir e exercer um discernimento em lugares eclesiais apropriados e nas formas espirituais plenas?

 

 

Vou lhe dar um exemplo. Eu faria um levantamento por ambientes: não crentes, crentes de outras religiões presentes na Itália, cristãos de outras confissões, católicos que se afastaram, batizados pouco praticantes, fiéis convictos. A todos apresentaria a pergunta (justamente com as técnicas metodologicamente rigorosas da pesquisa de opinião): você seria a favor da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial? É apenas um exemplo, mas para dizer que não excluiria, a priori, nenhuma forma de conhecer as opiniões. Quanto à democracia, muitas coisas paradoxais são ditas. No entanto, "democracia" não é um palavrão, mas é a forma de governo civil hoje mais em consonância com o ensinamento social da Igreja, se combinada com as liberdades civis e a igualdade jurídica. E na Igreja? Não queremos uma Igreja "democrática" e tudo bem.

 

Mas certamente não queremos uma "antidemocrática" ou totalitária. E o fato de todos os fiéis serem agora "democráticos" no plano civil, possuírem uma mentalidade antitotalitária e reivindicarem, no plano social, liberdade de expressão e igualdade de direitos, não tem efeitos implícitos na vida interna da comunidade eclesial? A falta de verdadeira liberdade de expressão, desigualdades de dignidade batismal, estruturas de poder centradas no clero e no masculino podem ser toleradas dentro da Igreja?

 

 

O que os caminhos sinodais podem fazer pelas mulheres? E o que as mulheres podem fazer pelos caminhos sinodais? Por exemplo, há alguns anos fala-se sobre a introdução do diaconato feminino: uma batalha impossível ou um pedido do Espírito Santo?

 

Você toca em uma das áreas-chave, talvez o nó principal, o bloco antievangélico mais forte. O Sínodo alemão colocou o diaconato feminino na ordem do dia. Eu propus que na Itália se pensasse em uma expansão das funções dos ministérios agora abertas às mulheres pelo Papa Francisco.

 

Certamente, um Sínodo não pode pedir a admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial, talvez para isso seria necessário um Concílio. Mas um Sínodo nacional pode propor à Igreja universal, ao Papa e a todos que pensem a respeito, que coloquem a questão na ordem do dia. Pessoalmente, estou entre aqueles (muitos e há bastante tempo) que não veem no Evangelho nenhum obstáculo ao presbiterado feminino: Jesus chamou apenas homens entre os Doze? E então? Eles também eram todos judeus e circuncidados ... os presbíteros deveriam ser homens, judeus e circuncidados? Mas em nossa autoconsciência evangélica de hoje, a exclusão das mulheres não nos pareceria mais justificável e, aliás, incompreensível?

 

Pode-se dizer: mas as igrejas cristãs que têm pastoras não parecem ter resolvido todos os problemas. Então? Ninguém disse que tal escolha resolverá todos os problemas. Somente que, se não for tomada - em um prazo razoável - os problemas se agravarão.

 

Aqui está: em vez de uma aurora, um pôr do sol. O cerne do que o Espírito pede à Igreja hoje - na minha modesta opinião de batizado de base - é um repensamento geral do “ministério” na Igreja, com uma transformação estrutural, inclusive institucional. Com essa expressão, quero dizer que a dimensão canônico-jurídica mesmo que necessária não deve mais ser assegurada por um Código de tipo napoleônico, como foi o do Códex de 1917 até hoje. A regra de vida da Igreja, a única lex fundamentalis é o Evangelho, as aproximações jurídicas derivadas e secundárias não devem ter a forma absoluta, engessadora e totalitária que o Codex tem hoje. Muitas mudanças necessárias não são negadas pelo Evangelho, mas pelo Código de Direito Canônico.

 

Vamos pensar na ordenação dos viri probati que deveria ser há tempo a norma em todos os lugares. Por favor! Mais Evangelho, mais Evangelho, mais Evangelho! E, só depois, uma estrutura jurídica ágil e flexível. Isso não resolverá todos os problemas, não trará massas imensas às igrejas. Mas nos tornará mais credíveis para nós mesmos, diminuindo a porcentagem de "sepultamentos caiados". E se a Igreja encontrar oposição e tropeçar, será daqueles que rejeitam o Evangelho, não porque somos nós que somos pouco evangélicos.

 

 

Há alguns anos, você definiu o laicato católico como "um patinho feio". A que ponto estamos em nossa transformação em cisne? Hoje usaria outras citações de fábulas?

 

Acho que já o sugeri implicitamente: a Bela Adormecida. Mas, na realidade, o horizonte que gostaria de buscar é justamente a superação do binômio clero-leigo, na verdade, a superação da estrutura do antigo regime com os três estados distintos. Eu veria no coração da vida eclesial as duas vocações fundamentais: ao casamento (para homens e mulheres) e à virgindade consagrada (para homens e mulheres).

 

E de ambas as vocações vir - com uma identificação de baixo, isto é, das próprias comunidades – os candidatos e as candidatas ao sacerdócio ministerial e aos vários ministérios eclesiais. O sacramento do matrimônio é um grande dom não só para os fiéis chamados a ele, mas também para a comunidade eclesial como tal. Mas se suas potencialidades não forem desenvolvidas, em um contexto no qual fariam sentido e que as convoca em voz alta, elas se atrofiam aos poucos.

 

Vamos deixar o sacramento do matrimônio morrer? Não é ele, e só ele, o sacramento da união da Igreja como noiva com Cristo, seu noivo? Os presbíteros não são eles a Noiva, mas os amigos do Noivo. Façamos florescer o sacramento do matrimônio na vida da Igreja de todas as formas possíveis, atribuamos-lhe a centralidade vital que merece e traremos à Igreja um verdadeiro clima de família, não paternalista (no melhor dos casos). Não vejo uma forma mais eficaz de erradicar o clericalismo. Se o clericalismo corrói o Evangelho, e corrói, se o clericalismo por sua vez gera tantos males, e os gera, então o que estamos esperando?

 

Você descobriu o filão da escola italiana de espiritualidade que vai de Antonio Rosmini a Dom Milani, passando por Dom Bosco e Maria Montessori. Então, o que a escola italiana de espiritualidade teria que doar para os caminhos sinodais?

 

A forma fundamental da escola italiana de espiritualidade é a da Reforma Católica: isto é, uma espiritualidade que forma para um perene exame de consciência - pessoal e comunitário - para identificar os traços a serem mudados por serem contraditórios em relação ao Evangelho. Uma reforma constante da Igreja a partir de dentro e em comunhão com os pastores, não contra eles ou com uma polêmica externa.

 

Uma Ecclesia sempre reformanda. Mas não em palavras, mas em atos e em verdade. Duas virtudes são necessárias: a coragem de falar com clareza, sabendo que será possível incomodar quem não quer ser incomodado, e a serenidade para aceitar consequências mesmo humanamente dolorosas. Coragem e serenidade. Não é isso que São Francisco chamava de "perfeita felicidade"?

 

 

Podemos indicar critérios para avaliar juntos o caminho sinodal, como fato social e histórico da Igreja? Do seu ponto de vista, quais seriam alguns desses critérios? Por exemplo, a escuta das pessoas que estão às margens ... etc.

 

O critério evangélico para o Sínodo é a escuta recíproca, sentindo-se todos filhos de Deus, irmãos e irmãs de Jesus, templos do Espírito. Mas não uma escuta genérica e indiferenciada. Esperaríamos uma escolha preferencial para os últimos, os pequenos, os marginalizados. A começar pelos que estão dentro da Igreja. Certamente a Igreja deve colocar no centro aqueles que a sociedade, com suas lógicas excludentes, marginaliza, oprime, rejeita: os pobres, os idosos, os doentes, as crianças. Mas, para um Sínodo, é necessário colocar no centro aqueles que a própria Igreja marginalizou dentro dela: sobre as mulheres já falei, este é o grande tema.

 

Mas vamos pensar também nas pessoas de orientação homossexual. E pensemos nos presbíteros que deixaram o sacerdócio ministerial. Pensemos nas comunidades de base e nos cristãos do dissenso, ou no que resta deles. Pensemos nos âmbitos - também associados - do catolicismo conciliar crítico (diria: os herdeiros ideais daquela perspectiva pastoral evocada na citação de dom Tonino Bello). É possível que a exacerbação dos marginalização injusta do passado torne esses âmbitos desconfiados além da medida e, às vezes, amargamente polêmicos, sempre e em qualquer caso. Não importa, a eles deve ser oferecido um local de encontro acolhedor e de escuta sincera e interessada. Em geral, o Sínodo deve dar o primeiro lugar a todos aqueles a quem o Espírito dá o dom da profecia, que significa saber ver as feridas da Igreja e ser capaz de imaginar novos caminhos que curem essas feridas.

 

 

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