Não há nenhum lugar onde Deus não esteja: o digital como 'locus' teológico

Foto: Pic Sels

01 Novembro 2021

 

Para a samaritana junto ao poço, em meio a discussões sobre o local físico do culto, Jesus diz: “Está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade” (João 4,23). Será que Jesus estava ao lado de um antigo poço vislumbrando o conhecimento divino do nosso futuro digital?

 

A opinião é da reverenda anglicana Caroline Beckett, vigária na Igreja de Todos os Santos, em Brightlingsea, na Inglaterra. O artigo foi publicado em Premier Digital, 27-10-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.

 

Eis o texto.

 

Não há nenhum lugar em que Deus não esteja. Comecemos por aí.

 

Essa é uma das primeiras coisas que dizemos sobre Deus, que Deus está em toda parte – é onipresente.

 

Dito isso, eu estava conversando com alguns amigos sobre lugares “tênues”: que, em certos lugares do mundo, a divisão entre o céu e a terra parece mais tênue do que o normal, ou nos quais se sente Deus mais de perto. Lindisfarne, Iona, Walsingham, lugares onde o avivamento começou, ou apenas lugares de particular beleza, tranquilidade, ferocidade ou drama.

 

Para mim, trata-se de árvores específicas, ou do oceano, ou de uma das praias de Iona, ou do Greenbelt Festival, ou de um pequeno jardim urbano perto do Bart’s Hospital, em Londres, por onde eu caminhei enquanto meu marido estava morrendo e que pode, ainda agora, ser evocado pelo cheiro da chuva em certas ervas.

 

T. S. Eliot, em seu poema “Little Gidding”, escreve sobre tais lugares e a complexidade do ato e da experiência de ir até eles em busca de Deus:

 

“Outros lugares há
Também no fim do mundo, alguns entre as mandíbulas do mar,
Ou sobre um lago em trevas, num deserto ou numa cidade
– Mas este é o mais próximo, no espaço e no tempo,
Agora e na Inglaterra.
Se viesses por aqui,
Tomando qualquer itinerário, partindo do ponto que quisesses,
A qualquer hora em qualquer estação,
O mesmo sempre ocorreria: terias que despir
Sentido e noção. Não estás aqui para averiguar,
Ou te instruíres a ti próprio, ou satisfazer a curiosidade
Ou redigir um informe. Aqui estás para te ajoelhar
Onde eficaz tem sido a oração. E a oração é mais
Que uma simples ordem de palavras, a consciente ocupação
Do espírito que reza, ou o som da voz durante a prece.
E o que não puderam transmitir os mortos, quando os vivos,
Podem eles dizer-te, enquanto morto: a comunicação
Dos mortos se propaga – língua de fogo – além da linguagem dos vivos.
Aqui, a interseção do momento atemporal
É a Inglaterra e parte alguma. Nunca e sempre”
[trad. Ivan Junqueira, “Poesia: Quatro Quartetos”, Ed. Arx, 2004].

 

Como pessoas, gostamos de um resultado previsível, a relação custo-benefício, o experimento científico realizado 100 vezes da mesma forma que produz um padrão que se torna um princípio sobre o qual coisas (incluindo expectativas) podem ser construídas.

 

No entanto, Deus não faz o papel de Deus sendo previsível. A graça de Deus é prodigiosa e pródiga. Justamente quando pensamos que temos o padrão a partir do qual podemos extrapolar uma regra, Deus irrompe e faz algo diferente, extraordinário ou novo.

 

“Não estás aqui para averiguar, ou te instruíres a ti próprio, ou satisfazer a curiosidade ou redigir um informe”, adverte Eliot. “Aqui estás para te ajoelhar onde eficaz tem sido a oração.”

 

Aqui estão alguns aspectos do que é se “ajoelhar” na minha própria jornada espiritual: a aceitação de certas coisas das quais um leitor pode discordar:

 

- Que a oração, como uma realidade repetida em um lugar ao longo do tempo, pode deixar um resíduo – um lento acúmulo ou sedimento de fé, ou um caminho batido entre nós e Deus através do deserto – que muda o lugar de alguma forma.

 

- Que Deus pode irromper de repente, assim como Jacó viu anjos, e Moisés, a sarça ardente, enchendo aquele lugar com os ecos duradouros daquele encontro.

 

- Que Deus não é obrigado a refazer os passos divinos anteriores, mas pode irromper em qualquer lugar.

 

- Que a confluência da nossa intenção, o lugar que escolhemos - porque algo dele nos torna mais abertos - e o desejo de Deus de sermos atendidos muitas vezes resultam em um encontro significativo.

 

- Que o encontro ocorre mais facilmente em um lugar que me leva a esperá-lo ou que age sobre mim de uma forma que outros lugares não fazem.

 

- Que o mistério dos lugares “tênues” é profundamente relacional por natureza, porque Deus, à imagem de quem somos, é relacional.

 

- Que, portanto, as outras pessoas presentes também podem fazer uma profunda diferença no encontro que ocorre.

 

Aceitar essas coisas significa que eu tenho que fazer algo a respeito do fato de que, para mim e para muitos de nós, grande parte da nossa busca e oração ocorre online. Os lugares que visitamos e habitamos não são apenas pontos físicos e geográficos em um mapa, mas muitas vezes são gerados no espaço digital. Se eu acredito que Deus está em todo o lugar onde eu estou, então Deus está “lá” e também pode haver lugares “tênues” digitais e peregrinações digitais.

 

Foi enquanto Moisés cuidava das ovelhas que ele se deparou com a sarça ardente. Se aquilo que estamos fazendo existe principalmente no espaço digital, não é inconcebível que seja lá que Deus iluminará o nosso caminho. Se Deus se manifesta em nossos espaços construídos feitos com materiais físicos, como no fato de encher o templo (Isaías 6,1), e se Deus “cocria” e “cocura” esses espaços de encontro conosco, então não é um salto sugerir que Deus se manifesta nos nossos espaços digitais, construídos de uma forma diferente, ou que Deus os “cocria” e os “cocura” também.

 

No entanto, a Igreja que habita um edifício frequentemente tem uma reação instintiva contra o reconhecimento dos espaços digitais nos quais “a oração tem se mostrado válida”, porque apresentam um conjunto diferente de benefícios e desafios.

 

Vejamos algumas críticas.

 

Você não pode tocar o digital, ele é desencarnado

 

Existem muitos lugares sagrados que você pode visitar, mas não encontrar diretamente por meio do tato, apenas por meio da visão e da audição, por meio de uma janela ou à distância, como o túmulo de São Pedro em Roma.

 

Eu não tenho certeza, então, se faz alguma diferença se a janela for digital. De fato, a visão (e a audição) por meio de uma janela digital costuma ser mais nítida. Ainda estou usando meus sentidos corporais, ainda estou encarnada enquanto faço uma experiência digital e ainda estou “pessoalmente” online.

 

Muitos lugares sagrados também têm sites: se você já visitou o lugar geográfico, o site pode evocar essa experiência, estimulá-la novamente, renová-la ou ajudá-lo a relembrá-la, costurando-a novamente, tornando-a real totalmente de novo.

 

No entanto, se você não esteve no local, é possível uma experiência secundária – mediada por aquelas pessoas que estiveram, sim, no local? Afinal, visitar tais lugares pessoalmente é um conceito relativamente moderno: nos tempos antigos, esses lugares eram evocados por meio de contos, desenhos e artefatos de peregrinos.

 

Para a samaritana junto ao poço, em meio a discussões sobre o local físico do culto, Jesus diz: “Está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade” (João 4,23). Será que Jesus estava ao lado de um antigo poço vislumbrando o conhecimento divino do nosso futuro digital? Não podemos saber.

 

O digital é efêmero e transitório

 

Mas uma tenda também é: você pode caminhar até ela, apenas para descobrir que ela se moveu. Sim, você pode seguir um endereço de internet até um beco sem saída, mas, da mesma forma, Deus se move na Arca e no Tabernáculo junto com o povo de Deus durante as suas andanças no Êxodo, deixando para trás apenas um pedaço de solo levemente marcado. As festas litúrgicas como lugares “tênues” são outro exemplo disso.

 

O digital está ancorado em pessoas, não em lugares: não tem existência independente

 

Assim como o novo espaço sagrado do povo de Deus no exílio do seu Templo e da Cidade Santa não tinha. Jesus não tinha onde reclinar a cabeça e disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mateus 18,20). A Igreja primitiva não tinha residência fixa.

 

O digital está fora do espaço e do tempo

 

Deus também, o que talvez torne esses aspectos um aprimoramento e não uma barreira. O digital reúne vozes, pensamentos e percepções da comunhão dos santos – os vivos e os que partiram – de uma forma que remete à Transfiguração, com Jesus, Moisés e Elias.

 

Ir além das limitações geográficas é também um princípio bíblico, pois Deus transloca profetas quando necessário, cura à distância e medeia a realidade vivida da Igreja primitiva por meio das cartas de São Paulo (no entanto, estas últimas são também uma advertência – não temos os dois lados dessa conversa, e o contexto é necessário quando se toma o local para aplicá-lo universalmente).

 

O digital não tem história de encontro

 

Deixando de lado o fato de que a história nem sempre tem uma característica de espaço “tênue”, a afirmação acima, de fato, não é mais verdadeira: sites e espaços online interativos já existem há um tempo suficiente para ganhar um caráter, um sabor, uma história construída a partir das interações que ocorrem lá (entre pessoas que vivem no mesmo local, as vidas online e o Deus que elas procuram, e também umas às outras).

 

Posso ver a imagem em um site que inspirou o sermão do meu ministro, ou rastrear o fio que ajudou alguém a fazer perguntas e se aproximar da fé, ou ouvir a música que aliviou a dor de outras pessoas e também a minha. Posso “ir” a um espaço que inspirou outras pessoas e beber do mesmo poço digital.

 

Os espaços online não são mais apenas evocativos da história local nem somente janelas para ela, mas têm uma história espiritual e relacional complexa, vivida, construída e em camadas, propriamente dita.

 

 

O digital é imediato demais: não há nenhum senso de tempo, de deslocamento e de esforço – de peregrinação, em suma

 

A velocidade e a facilidade do digital parecem contrastar com a disciplina, o esforço, a espera e a perseverança que caracterizam os relatos tradicionais dos espaços sagrados ou “tênues”. Os três pontos – velocidade, deslocamento e esforço – são separados.

 

Esforço: esse ponto chega perigosamente perto de dizer que precisamos conquistar o amor de Deus. Se eu moro ao lado do Priorado de Lindisfarne, encontrar Deus lá é menos válido do que se eu for de carro e depois fizer uma caminhada? Há muitas pessoas também que, impossibilitadas de realizar a peregrinação física, fazem-na digitalmente. Elas não são tão diferentes do paralítico carregado em uma esteira por amigos que abriram um buraco no telhado para ele. O digital definitivamente “rompe estruturas” para muitos.

 

Deslocamento: o que o digital faz é derrubar as fronteiras entre os nossos vários mundos, permitindo-me estar na minha sala de estar e em outra cidade. Talvez isso se aproxime daquilo que possibilita comer o pão e o corpo de Cristo, um fisicamente e o outro espiritualmente. Afinal, para onde “vamos” quando rezamos ou temos visões? No corpo ou fora dele – nem mesmo São Paulo sabia. Como cristãos, estamos acostumados a viver em mais de um âmbito. A extensão digital disso faz algum sentido.

 

Velocidade: na era digital, muitas coisas são mais rápidas, mas o cérebro humano e a sua velocidade de processamento são o fator limitante. Já foi dito que espaços online como o Twitter ou o TikTok não podem ser um locus de encontro divino-humano por causa da sua brevidade. Mas não medimos outras coisas dessa maneira. Segundos de injeção de uma vacina são eficazes durante anos. Os votos matrimoniais levam minutos para serem proferidos e uma vida inteira para serem compreendidos e praticados. Por quanto tempo Jacó viu os anjos? Quanto tempo durou a conversa que mudou a vida de Maria Madalena com o Cristo ressuscitado?

 

É um padrão aceito na vida espiritual que um breve momento contenha a injeção concentrada do divino que leva semanas, meses ou até mesmo anos para se desdobrar completamente e agir em nós. Qualquer coisa breve que evoque conceitos maiores pode ser “baixada” no cérebro como um arquivo .zip a ser descompactado nos dias subsequentes ou criar vida como uma bomba de sementes espirituais. A liturgia faz isso, assim como a poesia. Uma frase – por exemplo, “Nós erramos e nos desviamos de Teus caminhos como ovelhas perdidas” – pode nos conectar a muitos outros textos, experiências, realidades e verdades ao mesmo tempo, alguns dos quais brotando imediatamente, outros semeando em nós sementes que só romperão a superfície muito mais tarde.

 

Então, são possíveis “lugares tênues” digitais? Eu acredito que sim. Acredito que os espaços digitais podem agir em grande parte como os espaços localizados podem, e de algumas maneiras não podem. E, para os seus detratores, talvez a própria dificuldade da peregrinação a eles para aqueles que não estão familiarizados com o meio faça parte da luta com Deus que tantas vezes ocorre no encontro divino-humano que raramente ou nunca é inteiramente confortável ou uma experiência completamente familiar.

 

Não há nenhum lugar onde Deus não esteja. Acabemos por aqui.

 

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