A morte de Ivan Ilitch: o ruído da angústia e da purificação

"O Jardim da Morte” (1896), de Hugo Simberg | Foto: Reprodução Artrianon

01 Novembro 2021

 

"É  impossível acompanhar a narrativa da vida de Ivan Ilitch sem fazer um exame de consciência sobre as nossas escolhas, imaginando nós próprios no leito de morte, analisando a vida em retrospectiva, e o percurso que desejaríamos fazer quando nos encontrássemos na situação dele: não diante da certeza da morte, mas da sua iminência".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

Eis o texto. 

 

Considerada por muitos como a novela mais perfeita da literatura mundial, A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, publicada em 1886, marca o retorno do escritor russo à literatura após se dedicar à vida espiritual. O tema não poderia ser mais oportuno: a morte. Certa vez, ao comentar a obra, o tradutor e crítico literário húngaro naturalizado brasileiro Paulo Rónai apontou para dois elementos centrais: "É impossível ler sem um frêmito de angústia e de purificação".

 


Capa do livro A morte de Ivan Ilitch (Foto: Reprodução)

 

Angústia porque é impossível acompanhar a narrativa da vida de Ivan Ilitch sem fazer um exame de consciência sobre as nossas escolhas, imaginando nós próprios no leito de morte, analisando a vida em retrospectiva, e o percurso que desejaríamos fazer quando nos encontrássemos na situação dele: não diante da certeza da morte, mas da sua iminência.

 

Purificação porque, à medida que vamos lendo, ou a nossa própria alma começa a ser limpa e expurgada ou tomamos consciência de que esse processo precisa ser iniciado. O que desencadeia essa percepção no leitor não é propriamente a morte em si e a certeza cristalina de que ela é irrevogável, mas a suspeita de que a vida toda pode ter sido falsa, como ocorre com a personagem. "Ocorreu-lhe, pela primeira vez, o que lhe tinha parecido totalmente impossível antes - que ele não teria vivido como deveria. Veio-lhe à cabeça a ideia de que aquela sua leve inclinação para lutar contra os valores das classes altas, aqueles impulsos de rebeldia que mal se notavam e que ele havia tão bem aplacado talvez fossem a única coisa verdadeira, o resto todo, falso. E suas obrigações profissionais e a retidão de sua vida e sua família e sua vida social tudo falso e sem sentido. Tentou defender essas coisas a seus próprios olhos e subitamente deu-se conta da fragilidade do que estava defendendo. Não havia o que defender".

 

 


Tolstói (Foto: Flickr Octubre CCC Creative Commons)

 

Ivan Ilitch, membro do Tribunal de Justiça russo, era um homem "nem tão frio e formal quanto o irmão mais velho, nem tão rebelde quanto o mais jovem, era um simpático meio-termo entre os dois". Um homem que "cumpria suas obrigações, avançava em sua carreira e ao mesmo tempo levava uma vida social do mais alto padrão". Vivia, como costuma-se dizer, para si mesmo. "A maior satisfação de Ivan Ilitch, no entanto, estava no fato de ter seu próprio gabinete. Todo o seu interesse concentrava-se agora no mundo de suas obrigações profissionais e estas o absorviam totalmente. A sensação de seu próprio poder, o sentimento de ser capaz de destruir quem quisesse e mesmo o status de sua posição que ele saboreava ao fazer sua entrada no Tribunal ou encontrando-se com seus funcionários, o fato de ser bem-sucedido aos olhos de superiores e subordinados e, acima de tudo, sua habilidade na resolução dos casos, da qual tinha plena consciência - tudo isso dava-lhe a satisfação, como podia demonstrar nas conversas com seus colegas, nos jantares e no jogo que preenchiam seu tempo. De modo que, no geral, a vida de Ivan Ilitch continuava a correr como ele achava que tinha de ser - agradável e dentro das conveniências sociais". Seu modo de ver e viver a vida, mais as complicações de um matrimônio descompromissado, repleto de cenas desagradáveis e constrangedoras, contribuíram para a construção de um muro que o isolou completamente da vida familiar, transferindo o centro de gravidade de sua existência da família para o trabalho.

 

 

Apesar de bem viver para si mesmo ou justamente por isso, o diagnóstico final da indagação sobre o sentido de sua vida não pode ser amenizado: "'Mas se é assim', falou para si mesmo, 'e se eu estou deixando essa vida consciente de que perdi tudo que me foi dado e não há como remediar - então, qual o sentido? Ficou deitado e começou a repassar toda sua vida mais uma vez - de manhã, quando viu primeiro o criado, depois sua esposa, sua filha e então o médico, cada movimento que fizeram confirmava para ele a terrível verdade".

 

Uma hora antes da sua morte, Ivan Ilitch "caiu dentro do buraco e encontrou a luz e lhe foi revelado que sua vida não fora o que deveria ter sido, mas que ainda era possível dar um jeito". Sentiu pena dos familiares que o cercavam e procurou pelo medo da morte que até então o aterrorizava, mas não o encontrou. "Não havia medo porque também não havia morte. Em seu lugar havia luz. 'Bem, então é isso!', exclamou em voz alta. 'Que bom!' (...) 'A morte esta acabada', disse para si mesmo. 'Não existe mais'".

 

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