Falar de Deus segundo a verdade

Foto: Cristian Gutiérrez | Cathopic

21 Outubro 2021

 

"As palavras de fé são, ao mesmo tempo, pregos que ancoram na Rocha e aguilhões que estimulam a ir além. Hoje, os dois perderam suas pontas. Começamos a nos perguntar como será possível afiá-los novamente", escreve Angelo Reginato, pastor batista italiano, em artigo publicado na revista Riforma, publicação semanal das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense italianas, 22-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Em nosso habitar a terra vivendo de fé, enfrentamos desafios variados. Nas diferentes épocas da nossa vida, enfrentamos o caso sério da fé medindo-nos em algumas questões específicas. Quando penso na minha experiência atual, posso dizer que me sinto, em certo sentido, companheiro de . Não estou me referindo à experiência de uma dor injusta, que leva a gritar: "Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado?" (7, 20); o que eu fiz de errado para merecer isso? Nem penso na questão do quanto seja autêntica a fé do homem de Uz, algo que, no prólogo do livro, Satanás questiona: “Então respondeu Satanás ao Senhor, e disse: Porventura teme a Deus debalde? Porventura tu não cercaste de sebe, a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste e o seu gado se tem aumentado na terra. Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face” (1, 9-11).

 

Junto com o caso sério da de quem é atingido pelo sofrimento e de quem se descobre verificando se sua confiança em Deus não seja motivada por segundas intenções ou por condições favoráveis, o livro de Jó lhe dá um outro aspecto. Expresso de forma exemplar por um autor contemporâneo: “Quando discutia a verdade que lhe vinha dos pais e dos amigos, descobria, como uma nudez, a inutilidade de uma tradição que permanece um saber: vocês me falam verdades, que são gerais; mas que relação elas têm com a minha situação? Elas decepcionam a minha expectativa porque a ignoram; as verdades são inúteis e vãs para mim, não me fazem viver. Mesmo que sejam reconhecidas como válidas em si mesmas, e talvez irrecusáveis em si mesmas (e nem sempre é o caso), as palavras dos sábios e dos estudiosos decepcionam, visto que não são proporcionais à questão" (M. De Certeau, La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, Milão 2020, p. 46).

 


Capa do Livro La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, de De Certeau (Foto: Reprodução)

 

- como lemos no texto bíblico - não está sozinho em sua dor. Ele tem amigos que, ao saber da desgraça, vão até ele e compartilham em silêncio aquela situação para a qual não há palavras. Eles ficam em silêncio por uma semana inteira; mas então desfraldam toda a sua sabedoria teológica para oferecer uma explicação do que está experimentando. Esses amigos são os portadores de um saber tradicional que Jó sente inútil e vão. Até mesmo Deus, no final do relato, usará palavras muito duras para com eles: "Não falastes de mim segundo a verdade, como fez meu servo " (42: 7).

 

Frase surpreendente, visto que aqueles amigos nada fizeram além de reiterar a sabedoria tradicional de Israel. Embora os exegetas tenham tentado desencavar alguns pontos discutíveis de sua argumentação, as palavras de Elifaz, Bildade, Zofar e Eliu expressam a ortodoxia bíblica. No entanto, rejeita esse conhecimento. E não o faz por falta de modéstia - sentia-se justo - nem porque engendrou um mecanismo de defesa, fazendo de tudo para se justificar. Nós, como os amigos de , pensamos que se a Palavra não fala, é por culpa da preguiça ou, em qualquer caso, de um comportamento culpado.

 

Em vez disso, o livro de Jó narra de uma contestação das grandes palavras de fé que o próprio Deus aprova, julgando-as como um falar "segundo a verdade". Se as palavras não conseguem mais interceptar a vivência, não há necessidade de defesa padronizadas, é preciso repensá-las.

 

Parece-me que padeço, juntamente com outras pessoas, desta mesma situação. Eu também, como os amigos de , prego todos os domingos, relembrando as grandes palavras de fé. Mas se coloco aquelas palavras na balança de , parece-me ouvi-las como verdades gerais que têm dificuldade para falar concretamente sobre a existência daqueles que as ouvemO desafio enfrentado por é o mesmo de muitos de nós, em um tempo semelhante ao seu, onde a Palavra é "dita", mas não "significa" ou o faz apenas em determinados ambientes e condições.

 

está em busca de palavras novas, que possam reescrever as palavras da tradição para que possam soar significativas em contextos onde o mundo de ontem foi virado de cabeça para baixo.

 

Todas as Escrituras nos exortam a repensar e reescrever as grandes palavras de fé. Mas nós - eu - temos a coragem de assumir esta tarefa? Sabemos como assumir o desafio tipicamente espiritual de nos deixarmos guiar pelo Espírito que se lembra tudo o que Jesus disse (João 14, 26) e anunciará o que está por vir (João 16, 13)? Ou seja, sabemos arriscar novas palavras para sermos fiéis à Palavra? De Certeau observou que para a linguagem do Espírito "o tempo é o elemento-chave". Permite a gratidão mútua, “se deixarmos ao passado o direito de resistir-nos (porque é outro e dele dependemos) e se tivermos força para resistir-lhe (porque ainda somos capazes de criar)”.

 

Como diz o Eclesiastes ou Qoheleth, as palavras de fé são, ao mesmo tempo, pregos que ancoram na Rocha e aguilhões que estimulam a ir além.

 

Hoje, os dois perderam suas pontas.

 

Começamos a nos perguntar como será possível afiá-los novamente.

 

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