22 Setembro 2021
"A pior forma de negar a outro a experiência da liberdade não é tanto a de amarrá-lo ou prendê-lo - o que já seria muito grave. Mas é mentir a ele, ou seja, negar-lhe a verdade, negar-lhe a capacidade de ser um “tu” capaz de falar com a pessoa que eu realmente sou", destaca Rémi Brague, em entrevista editada por Costantino Esposito e publicada por Avvenire, 21-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Será realizada em Roma de 23 a 25 de setembro a 76ª conferência de o Centro de Estudos Filosóficos de Gallarate, que terá como tema "Ontologia e ética da pessoa". A que nos referimos quando dizemos 'pessoa'? As definições-padrão talvez estejam pedindo hoje para serem recompreendidas a partir da experiência. De onde partiria Brague para ressignificar este termo?
Talvez pelo simples fato de que as pessoas são primeiramente os nossos interlocutores, pessoas com quem falamos e que falam conosco. Pessoa muitas vezes foi distinguida de indivíduo, porque este último fala de alguém que não é mais divisível e divisível com outros, enquanto a pessoa fala, em sua própria natureza, de relação e abertura a um outro. Um eu que é constitutivamente um nós. Hoje, o problema se repropõe dramaticamente no desafio da pandemia.
O indivíduo é uma noção lógica que não designa necessariamente um ser humano. Um animal, uma planta, são indivíduos de uma espécie animal ou vegetal. Um objeto produzido em série é o exemplar de um modelo específico.
Outra frente em que a experiência da pessoa é posta à prova hoje, são as neurociências e em geral a abordagem cognitivista. O reducionismo fisicalista e biologista, em suas tendências mais extremas, está empenhado em eliminar a lacuna ou a solução de continuidade entre o natural e o consciente, entre o necessário e o livre.
Mas aí aparece, precisamente, o problema sobre o qual você falará no encontro do Centro de Estudos Filosóficos de Gallarate: de que modo hoje é negada à pessoa a experiência da liberdade? Onde o vemos? E que consequências traz?
Uma abordagem cognitivista fala do homem na terceira pessoa, como um ele. A nossa experiência é, por outro lado, aquela de um eu entre pessoas a quem este eu fala tu. Desde o início, é porque os outros (os nossos pais) nos disseram tu, que nós gradualmente aprendemos a dizer eu. Todos esses métodos pressupõem que em algum ponto do raciocínio seja dado um salto arbitrário.
Consideremos, por exemplo, a explicação de Platão sobre a visão: depois de um longo e complicado relato sobre o fogo que está fora de nós e no olho, sobre a luz, sobre a transmissão dos movimentos ao olho, etc., Platão termina com: "e isso produz a sensação que chamamos de ‘ver’" (Timeu, 45d3). E assim, se não se tem uma experiência direta do que é ver, a teoria é inútil...
A pior forma de negar a outro a experiência da liberdade não é tanto a de amarrá-lo ou prendê-lo - o que já seria muito grave. Mas é mentir a ele, ou seja, negar-lhe a verdade, negar-lhe a capacidade de ser um “tu” capaz de falar com a pessoa que eu realmente sou.
Na pessoa, verdade e liberdade estão estreitamente ligadas: se as separarmos, de fato, corremos o risco de perder as duas. Como repensar hoje esse nexo constitutivo?
Partindo da constatação de que o que chamamos de verdade é essencialmente o que nos interessa. Tudo o que é exato não nos diz respeito diretamente. Que a batalha de Marignano tenha sido travada em 1515 ou que a fórmula química da água seja H2O são coisas perfeitamente verdadeiras. Afirmá-las é verdade, e dizer o contrário significaria cometer um erro por ignorância ou mentir intencionalmente. No entanto, hesitamos em chamá-las de verdade porque, no final, elas nos resultam indiferentes, não nos mudam de forma alguma. Pelo contrário, onde quer que haja verdade, podemos dizer: de te fabula narratur.
A experiência da pessoa nunca é algo pré-determinado ou puramente substancial, mas algo histórico. O que em sua opinião pode redespertar essa experiência hoje?
Eu diria simplesmente para prestar atenção à nossa experiência vivida, para além de todas as teorias. O nosso encontro com uma pessoa é sempre um evento. E um evento é essencialmente singular. Podemos contá-lo como um fato histórico, mas nunca como um experimento científico, no qual sistematicamente abstraímos do aqui e do agora.