Martha Nussbaum e o cultivo da humanidade: o desafio da educação atual

Sócrates (Fonte: Flickr)

09 Junho 2021

 

Para cultivar a humanidade no mundo atual, Martha Nussbaum estabelece que são necessárias três habilidades: o exame crítico de si mesmo, o ideal de cidadão do mundo e o desenvolvimento da imaginação narrativa.

A reportagem é de Natatxa Mahiques Espasa, publicada por El Salto, 04-06-2021. A tradução é do Cepat.

A filósofa Martha C. Nussbaum defende, em seu livro Cultivating humanity: a classical defense of reform in liberal education [Cultivando a humanidade: uma defesa clássica da reforma na educação liberal], a necessidade de abrir um espaço na educação superior para o desenvolvimento das habilidades que moldam a humanidade.

Ao longo de suas obras, Nussbaum se ocupou de um amplo leque de temas, da reflexão sobre as emoções à análise dos limites da justiça. Em todo caso, podemos encontrar um ponto central que todas as suas obras satisfazem: a vontade de melhorar as condições de vida das pessoas mais desfavorecidas, através da articulação de uma sociedade que seja mais justa. Neste sentido, acreditamos que o marco em que seu pensamento se desenvolve está permeado por seu trabalho referente à teoria das capacidades.

O enfoque das capacidades se apresenta como uma alternativa a partir da qual avaliar a qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs de um país, independente da referência exclusiva ao Produto Interno Bruto. A lei econômica que estabelece que com maior renda e crescimento econômico encontramos maior qualidade de vida, deixa sem atender as desigualdades que podem ocorrer dentro do território, deixando de avaliar, além disso, questões como as condições em que a saúde ou a educação se encontram.

Com o enfoque das capacidades, evita-se as consequências injustas que derivam do cálculo realizado a partir do PIB. Este novo paradigma teórico surge da pergunta sobre o que as pessoas são capazes de fazer e ser. A análise sobre as oportunidades que os indivíduos realmente possuem se torna, assim, o centro da reflexão sobre a qualidade de vida e a justiça social em cada país.

Da mesma forma, a autora afirma que a educação atual também fica submetida aos princípios da razão econômica. Com efeito, é avaliada com os mesmos critérios que a economia e articulada para satisfazê-los. Neste sentido, Nussbaum considera que existe uma crise no âmbito educacional nas sociedades democráticas, pois se desenvolveu um modelo que tem como objetivo o lucro econômico. Por esse motivo, determinados conteúdos que são necessários para a construção de uma cidadania democrática são deixados de lado.

Nussbaum utiliza o termo educação liberal para fazer referência a um modelo educacional cujo objetivo é cultivar o ser humano em sua totalidade, ou seja, um modelo educacional cuja meta seja o de preparar as pessoas para que possam exercer as funções da cidadania e da vida em geral. Esta concepção se liga à tradição que, na linha clássica de Sêneca, reivindica uma educação “adequada para a liberdade”, um ensino que sirva para fazer cidadãos livres não em virtude de sua riqueza ou sua situação social, mas por ser donos de sua própria mente.

Atendendo este objetivo, bem como as características da sociedade atual, Nussbaum se pergunta quais são as capacidades que, na atualidade, um bom cidadão precisa ter. A resposta da filósofa é que, devido ao fato de o mundo atual ser multicultural e multinacional, os problemas que nele surgem requerem uma solução que passe pelo diálogo com pessoas muito diferentes em todos os âmbitos.

Em última instância, consiste em se reconhecer e reconhecer nossos congêneres como seres humanos e agir em consequência. Portanto, trata-se de conhecer e desenvolver aquilo que nos faz humanos, dito de outra forma, praticar o cultivo da humanidade.

Para cultivar a humanidade no mundo atual, Nussbaum estabelece que são necessárias três habilidades: o exame crítico de si mesmo, o ideal de cidadão do mundo e o desenvolvimento da imaginação narrativa.

O exame crítico de si mesmo

Esta habilidade tem sua origem em Sócrates. Nussbaum apresenta a razão socrática como a alternativa à educação tradicional e, além disso, como um instrumento capaz de promover o desenvolvimento de capacidades necessárias para a vida dos cidadãos em um sistema democrático. A autora defende, segundo Sócrates, a democracia como um sistema que permite progredir para o conhecimento do bem comum. Neste sentido, todos os integrantes da sociedade fazem parte deste processo e, por este motivo, é importante sua educação.

O modelo a seguir é, portanto, o da “vida examinada”, estabelecido por Sócrates e reunido pelos estoicos, pelos quais conseguimos ter informação a respeito de como os princípios da educação socrática foram implementados na Antiguidade. A vida examinada consiste na análise crítica das crenças que fazem parte de nossa concepção da realidade, colocando-as em ordem e notando a sua origem. Dessa maneira, o indivíduo pode assumir as suas crenças, aceitando apenas aquelas que realmente foram analisadas, e não se deixar levar pelo estabelecido com base na convenção e na tradição.

O benefício que o desenvolvimento desta capacidade confere para a cidadania democrática é mais profundo do que pode parecer à primeira vista. A imagem utilizada por Sócrates na Apologia - conforme mostra Platão -, representando a si mesmo como um zangão que incomoda um grande cavalo nobre e preguiçoso, mostra a contribuição mais evidente que a razão socrática oferece à democracia: a reflexão crítica. Consequentemente, quem dela se serve é o zangão que incomoda o grande animal que pasta serenamente.

O questionamento das convenções sempre foi considerado incômodo e visto com receio pelas pessoas que as defendem, de maneira que estimulá-lo comporta o risco de não ser apreciado por elas. Ninguém melhor do que Sócrates para saber o que isso significa.

A imagem utilizada pelo ateniense se completa com um cavalo nobre e preguiçoso que representa a democracia. Caracterizar o cavalo como nobre significa que se trata de algo bom e valioso. Desse modo, as convenções existentes não são necessariamente algo a ser completamente descartado, já que costumam ser bem fundamentadas. O problema do cavalo é a sua preguiça, a preguiça do pensamento que se instala nas e nos cidadãos e faz com que não analisem seus princípios, nem avaliem possíveis alternativas.

Apesar de as crenças convencionais terem como base uma intuição válida, é necessário sua revisão e análise. A reflexão crítica abre perguntas relacionadas a seus princípios e suas limitações que são de vital importância para a vida em sociedade. Exemplo disso são os dilemas com os quais profissionais como médicos, advogados, jornalistas e professores se deparam no exercício de sua profissão. Se estes profissionais nunca realizarem uma reflexão sistemática a respeito do que se entende por justiça, o que é certo e o que pode ser considerado bom, as decisões que tomarem em sua prática diária dificilmente serão coerentes, imparciais e bem fundamentadas.

Com já sabemos, Sócrates induzia seus interlocutores à reflexão por meio do diálogo. Por meio dele, tomavam consciência da fragilidade de suas razões em relação a seu posicionamento e, ao longo da conversa, sua posição ia mudando para uma mais fundamentada. Este modo de proceder nos mostra uma importante intuição que reside no pensamento socrático, a saber, o fato de que é possível progredir em relação à busca da verdade ética.

Progresso que é possível por meio da exigência de razões boas e coerentes, que se tornam o instrumento de validação de qualquer crença e posterior prática. No caso da prática política, o fim a que se dirige é o estabelecimento do bem comum, para o qual é necessário o mesmo elemento em que insistimos: o raciocínio.

O ideal de cidadão do mundo

O cultivo da humanidade exige reconhecer e praticar aquilo que nos faz humanos. Neste sentido, é necessário que cada indivíduo aceite sua pertença a uma totalidade que transcende o grupo particular ou a região a qual pertence. Totalidade na qual os vínculos entre seus membros são articulados pelos laços de reconhecimento e preocupação.

O fenômeno da globalização é contemporâneo e, à primeira vista, seria a causa mais óbvia da necessidade de promover o ideal de cidadão do mundo, baseando-se na importância de gerir com as melhores condições possíveis as dificuldades que afloram em um mundo globalizado. Apesar do reconhecimento deste fato, Nussbaum articula a defesa desse ideal a partir do pensamento da Antiguidade grega, mostrando que as abordagens teóricas próprias das primeiras reflexões filosóficas da cultura ocidental sobre a diversidade cultural continuam sendo válidas na atualidade.

O conceito de cidadão do mundo, kosmopolités, foi utilizado pela primeira vez por Diógenes, que seguiu a esteira de Sócrates no que diz respeito à necessidade de fazer com que seus compatriotas refletissem e dessem boas razões, neste caso, em relação a seus costumes.

Com seu modo de vida, Diógenes, o Cínico, demonstra a necessidade de transcender as formas de vida particulares para poder chegar ao que há de universal nos seres humanos. Enfatizando a necessidade de avaliar a origem de nossos juízos, buscando saber se estes têm sua base na convenção ou se podem ser relacionados, mediante um argumento sólido, com o que é bom para os seres humanos.

Sendo assim, o verdadeiro fundamento da associação humana deve ser isto e não aquilo que vem estabelecido pela convenção ou o mero costume. O legado de Diógenes para a filosofia ocidental consiste em mostrar o dever de analisar as convenções e formas de vida locais à luz do geral, que é compartilhado por todos os humanos.

Os filósofos estoicos, por sua parte, reuniram a ideia de kosmou polités e a dotaram de fundamento teórico sólido. A concepção estoica do ser humano o compreende como membro de duas comunidades diferentes: uma acidental e outra necessária. A primeira é aquela que é dada pela peculiaridade do lugar onde nasceu, ao passo que a segunda corresponde àquela que os indivíduos compartilham de maneira universal. A fonte a partir da qual é possível articular uma comunidade moral universal é esta última, já que se trata da expressão da humanidade.

Longe de comportar rejeição às formas de vida particulares, os estoicos reconhecem como um traço universalmente compartilhado o amor ao próximo e consideram o conhecimento do local um elemento necessário para chegar a ser cidadão do mundo.

Segundo os estoicos, o conhecimento das formas de vida locais permite aceitar o lugar que nos corresponde dentro da comunidade em que nascemos e cumprir as obrigações que nos são demandadas a partir dela. Ao mesmo tempo, esta prática possibilita reconhecer que fazemos parte de uma comunidade maior, caracterizada pela razão e a capacidade moral, aceitando assim a existência da dignidade da humanidade em cada pessoa.

A promoção do ideal de cidadão do mundo tem um vínculo muito estreito com o mundo atual. O desenvolvimento deste ideal permite aos cidadãos não só se aceitarem como parte de uma coletividade maior que a local, mas também ser conscientes da pluralidade de formas em que o universal pode se manifestar.

A imaginação narrativa

A imaginação narrativa é a habilidade necessária para poder compreender o outro, entender suas opiniões, seus interesses, seus desejos. Portanto, é um requisito necessário para ser cidadão do mundo. O instrumento fundamental para desenvolvê-la é a literatura.

Assim, Nussbaum nos mostra como por meio dos contos infantis os meninos e as meninas vão adquirindo imaginação narrativa, e é graças a isso que se produz o conhecimento de sentimentos e emoções cada vez mais complexos. Sendo assim, a imaginação narrativa é a habilidade que está na base da interação moral.

A autora expõe a capacidade que as obras literárias possuem em fazer com que o leitor ou o espectador – no caso das tragédias gregas – se identifiquem com personagens que são muito distantes dele em nível social, cultural, étnico ou de gênero. Através delas, é possível captar a humanidade que há neles e que se manifesta apesar de condições e circunstâncias que são completamente diferentes daquelas do leitor.

Por sua vez, esta experiência faz que com se reconheça o que há de diferente no outro. Nesta linha, a autora ressalta a capacidade da literatura e da arte em transmitir a voz dos excluídos e, ao mesmo tempo, de enfrentar aquilo que nos é apresentado como estranho e aterrador. Portanto, existe nela um componente crítico, já que faz com que questionemos nossa própria forma de vida. Em definitivo, Nussbaum considera a literatura uma aprendizagem que abarca o similar e o diferente, ao mesmo tempo. E para a autora esta aprendizagem é o primeiro passo para alcançar a justiça social.

Sendo assim, vemos que o cultivo da humanidade se apresenta para a autora como um desafio que envolve a ética e a política, já que o desenvolvimento das habilidades que integram a humanidade tem o seu fundamento em uma concepção da vida boa em nível individual e coletivo. Além disso, esse processo constitui a ferramenta capaz de evitar que as futuras gerações se tornem máquinas utilitárias, incapazes de ter uma visão crítica sobre as tradições ou de ter empatia e se confraternizar com seus congêneres, assim como de compreender a importância das conquistas e os sofrimentos alheios.

 

Leia mais