“Meritocracia? Uma armadilha para os pobres, mas também para as elites que parecem se beneficiar dela”

Foto: Pixnio

28 Mai 2021

 

O jurista de Yale desmonta um mito fundador da sociedade estadunidense: a aristocracia do talento está na origem de uma injusta hierarquia. A conexão patológica entre meritocracia, desigualdades e democracia estadunidense perpassa a conversa com Daniel Markovits. Nascido em 1969, titular da cadeira de direito privado em homenagem a Guido Calabresi (fundador da escola econômica de direito, teórico das "escolhas trágicas" e agora juiz federal em Nova York) em Yale, a mais prestigiada Law School dos EUA), Markovits se impôs no debate público estadunidense com o livro The Meritocracy Trap (A armadilha da meritocracia, em tradução livre, Penguin Press), definido como "ambicioso e perturbador" pela New York Times Book Review. Na conferência anual de Turim do "Common Core of European Private Law", um projeto internacional de estudo organizado há mais de 25 anos pelo International University College envolvendo centenas de juristas, com mais de 15 livros já publicados para a editora Cambridge University Press, Markovits proferiu uma palestra intitulada “Enough! The Good Life after the Age of Growth” (Chega! A vida feliz após a era do crescimento)”.

 

A entrevista com Daniel Markovits é editada por Giuseppe Salvaggiulo e publicada por La Stampa, 27-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Por que a meritocracia é uma armadilha?

 

Porque refaz a vida como uma competição sem fim que garante os ricos e exclui os outros, incentivando o desenvolvimento do ‘capitalismo humano’, regime econômico em que a formação e as competências dos trabalhadores são a maior fonte de riqueza da sociedade.

 

Com quais consequências?

 

Esse desenvolvimento leva as elites a investirem nas escolas para seus filhos, para que a educação se concentre nas famílias abastadas. Ao mesmo tempo, reestrutura o trabalho dobrando a inovação tecnológica para favorecer justamente aquelas profissões que apenas a educação de elite oferece. Essas transformações impedem que a maioria das pessoas - pobres e classe média - tenha acesso significativo às vantagens sociais e econômicas”.

 

Uma armadilha para os pobres.

 

Não só, porque ao mesmo tempo as elites que parecem se beneficiar dela devem dedicar suas vidas e a de seus filhos a uma escola e a um trabalho alienantes.

 

Em que sentido a meritocracia é o mito fundador da sociedade estadunidense?

 

Quando os pais fundadores dos Estados Unidos se livraram da aristocracia hereditária europeia, conscientemente abraçaram aquela que Thomas Jefferson chamava de aristocracia do talento. Muitas pessoas foram excluídas, principalmente escravos de origem africana, indígenas e mulheres. Mas entre os incluídos, o mérito - entendido como talento mais esforço – tinha que substituir a linhagem como legitimação das hierarquias sociais. E com o tempo, segundo o mito, uma sociedade cada vez mais esclarecida gradualmente removeria as exclusões, reinando a igualdade das oportunidades.

 

Não é assim?

 

Esse é um mito não só porque as exclusões baseadas em raça e sexo não foram totalmente superadas, mas também porque a própria meritocracia se tornou uma forma de excluir a todos, exceto os ricos, tornando-se um obstáculo à igualdade de oportunidades.

 

 

Como é vista a questão nas universidades estadunidenses de elite, como a sua?

 

Minha sensação é que tanto os acadêmicos quanto os estudantes se aproximaram da ideia de que a meritocracia é a causa da injusta hierarquia, mais que a solução. Os vértices das universidades de elite continuam mais céticos. As universidades se encontram diante de uma escolha difícil entre igualdade e elitismo. Eu defendo que deveriam escolher a igualdade. Mas fazer isso exigiria o abandono do modelo de negócios da educação de elite estadunidense.

 

E no debate político?

 

O mundo político também começou a abraçar a ideia de que uma desigualdade meritocrática continua sendo uma forma de hierarquia e que a meritocracia se tornou aristocracia com outros meios e com um novo nome. Esse reconhecimento ultrapassa as linhas partidárias. O partidarismo nos Estados Unidos é muito poderoso, mas é baseado tanto no tribalismo quanto na ideologia.

 

 

A pandemia está mudando a abordagem da opinião pública estadunidense em relação à questão das desigualdades?

 

Expôs desigualdades que antes eram mascaradas. As pessoas agora chamadas de ‘trabalhadores essenciais’, que salvaram o país e suportaram o peso da doença, eram anteriormente definidas como ‘não qualificadas’. Isso levou mais pessoas a reconhecer que os salários pagos pelo mercado não são uma boa medida da contribuição do trabalhador para a sociedade. Além disso, os estadunidenses estão mais dispostos a aceitar, e até mesmo abraçar, o governo como fonte de sustento social. Finalmente, os estadunidenses estão começando a se tornar mais favoráveis não apenas aos gastos progressivos, mas também à tributação redistributiva. Os impostos sobre a riqueza, por exemplo, estão na agenda política como nunca antes.

 

A vitória de Biden é uma virada?

 

É muito cedo para dizer, por dois motivos. Primeiro: o Partido Republicano - tanto suas elites quanto seus eleitores - é atualmente hostil à democracia. Isso ameaça uma ruptura catastrófica na ordem política estadunidense. Ao mesmo tempo, a maioria dos estadunidenses rejeita essas manobras e permanece fiel à democracia. Portanto, prospecta-se uma batalha. A segunda razão diz respeito às estruturas econômicas e sociais subjacentes. O governo Biden está aumentando maciçamente os gastos sociais e está trabalhando - com uma seriedade de propósito que não se via há mais de meio século - para desmantelar as desigualdades que afligem a vida estadunidense. Sua ideia é que o sucesso nessa frente também salvará a democracia.

 

 

Por que você intitulou "Basta!" sua conferência em Turim?

 

Pensamos no crescimento como um valor universal: se um pouco é bom, mais deve ser melhor. E o ideal de crescimento organiza a vida social e individual em torno da acumulação. Mas esse ideal é uma invenção histórica recente: antes de 1800, o crescimento desempenhava um papel muito limitado na existência humana em qualquer parte do planeta. A palestra defende que o crescimento nasceu em resposta a um especifico conjunto de problemas históricos e agora representa uma ameaça existencial para nossa civilização e nossas vidas individuais. Nosso ambiente simplesmente não pode acomodar muito mais crescimento, e a busca para acumular riqueza está tirando o significado de nossa vida pessoal. Precisamos substituir o crescimento por um novo princípio de organização, e proponho algumas possibilidades. Também defendo que, felizmente, o crescimento resolveu os problemas para os quais foi desenvolvido, de modo que agora podemos ir além.

 

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