26 Mai 2021
A "Capitã Cloroquina" agora puxou a carta das Práticas Integrativas e Complementares que o SUS adota. Estas misturam tratamentos baseados em conhecimento tradicional que podem efetivamente ter eficácia com práticas que não têm evidências de eficácia para além do efeito placebo, como a homeopatia. É uma falsa simetria, óbvio. Mas a gente precisa lidar com isso: pseudociências (a homeopatia se enquadra aqui), mesmo benignas, podem eventualmente ser usadas como muleta por charlatães quando a estes convém.
A Desindustrialização do Brasil
Recentemente, publiquei aqui um texto longo sobre concentração de renda no Brasil. Continua no meu mural, na sequência abaixo deste. Teve 4.900 acessos, o que me estimula a publicar um texto que escrevi na mesma série sobre grandes problemas nacionais: “Desindustrialização: pode o Brasil sobreviver sem um expressivo setor industrial?”. Os dois se completam. Ambos viraram capítulos do meu livro “Ensaios brasileiros”.
Abaixo, um trecho da introdução:
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"Os defensores da industrialização venceram o debate, e sua vitória trazia desdobramentos: industrializar um país periférico era realizar nele uma mutação, em condições de crise cambial permanente (pois a necessidade de importar aumentaria mais rapidamente do que nossa capacidade de exportar) e de tensões inflacionárias (pois sucessivos pontos de estrangulamento apareceriam no caminho). O simples jogo das forças de mercado seria impotente para conduzir o projeto a bom termo. Seriam necessários investimento estatal e planejamento, com uma ação continuada, sustentada no tempo, sem a qual não deixaríamos para trás a condição primário-exportadora. [...]
“Os economistas liberais fizeram duas grandes críticas ao processo de industrialização no Brasil, tal como foi realizado ao longo do século XX: busca excessiva de autossuficiência, com tendência ao isolamento, e tolerância com a ineficiência. Não obstante tenham sido cometidos erros, ambas estão fundamentalmente erradas.
Nesse período, foi imensa a afluência de capital e de populações estrangeiras em direção ao nosso território, bem como o aumento e a diversificação do nosso comércio exterior, pois a industrialização não reduz, mas aumenta, a necessidade de importar. Na medida em que ela avança, o estrangulamento externo é sucessivamente reposto, e mesmo agravado, pela necessidade de comprar no exterior máquinas, equipamentos, peças, insumos etc., exigindo que se aumente, em paralelo, a capacidade de exportar. A corrente de comércio (importações + exportações) se expande. O que se modifica é sua composição.
Esse processo tampouco produz uma tendência à ineficiência sistêmica. Qualquer empreendimento industrial começa a funcionar em escala inferior à sua escala ótima. Isso é ainda mais nítido no ambiente de economias periféricas. Numa primeira fase, cuja duração varia, a mera comparação de custos de bens nacionais com bens importados similares mostra quase sempre resultados desfavoráveis à produção local. Mas o fato de os custos internos serem mais altos que os preços de importação não implica que essa indústria seja antieconômica para o país. Não tem sentido comparar isoladamente custos internos com preços de importação: seguindo esse critério, nenhum país periférico deveria se industrializar. O relevante é comparar o aumento da renda nacional decorrente da expansão industrial com o que teria sido obtido se os mesmos recursos tivessem sido investidos nas atividades exportadoras necessárias para sustentar as importações dos bens que passaram a ser produzidos internamente. É esse critério – o critério econômico por excelência – que mostra a racionalidade do esforço de industrialização e a necessidade de protegê-lo.
Mais do que correta, a opção pela industrialização foi a única possível no século XX.”
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O texto completo está no link.
Abraços,
Cesar Benjamin
Para quem quer entender o Brasil de hoje, o assustador livro do Bruno Paes Manso é uma preciosidade. Além de um conteúdo consistente e rigoroso, é muito bem escrito. Então fica uma mistura de prazer e dor. Prazer pela leitura, que permite compreender melhor a realidade e dor pelo desalento da situação a que chegamos.
Do Twitter de Christian Edward Cyril Lynch
“O cortejo de motocicleta não é só uma paixão bolsonarista. Também era uma paixão fascista. Esse aí embaixo não é Bolsonaro. É Mussolini.
Toda semelhança com fatos reais é mera coincidência, ok?”
O nazismo assusta a CPI
Hoje é o dia de Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, na CPI do Genocídio.
Renan Calheiros começou sua intervenção falando do julgamento de Nuremberg. Foi uma boa provocação.
A turma de Bolsonaro acusou o golpe por achar que Renan está fazendo conexão do nazismo com o bolsonarismo na pandemia.
A reação do bolsonarismo foi forte. E Renan esclareceu: a pandemia não é o genocídio do holocausto.
Mas há, diz ele, uma semelhança assustadora.
Foi um Deus nos acuda. Flavio Bolsonaro e Fernando Bezerra comandam a gritaria.
O que Renan disse e não precisa ser traduzido é o óbvio. A maioria dos julgados em Nuremberg comportava-se com indiferença diante dos crimes que haviam cometido.
Os bolsonaristas que sabotam o controle da pandemia e apoiam os sabotadores foram carimbados por Renan.
Um detalhe sutil na queda da prima dona do veio da Havan é ela ter sido varada no abdômen por um poste da CEEE privatizada por Leitinho, como que anunciando a maldição daqueles que a privatizaram. É Leitinho, aqui se faz e aqui se paga.
Tive um dia muito produtivo. Trabalhando desde muito cedo e até agora, consegui liberar a revisão de “A filosofia da física”, do americano Lawrence Sklar, e me debrucei em “A era de Juliano: paganismo e cristianismo no Império Romano”, do italiano Gaetano Negri, até terminar. Serão os nosso dois próximos livros, muito diferentes entre si, mas com a qualidade que procuro.
Negri tem um texto quase poético. No capítulo final, discute extensamente as relações do imperador Juliano com o cristianismo. Sua descrição do modo como esta religião evoluiu me lembrou a trajetória da esquerda.
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“Os escritos cristãos anteriores à segunda metade do século II mostram a completa ausência de qualquer aparato doutrinário no cristianismo primitivo, que não era, no fundo, mais que uma norma de conduta apoiada em algumas verdades e sobretudo em algumas promessas reveladas por Cristo. Estes cristãos primitivos viviam sua fé com toda a alma e não sentiam nenhuma necessidade de representá-la com um complexo de doutrinas determinadas. [...]
“No mundo helênico, porém, o cristianismo não poderia permanecer neste estado de simplicidade dogmática. A mente grega estava impregnada de especulação metafísica. [...] O cristianismo transformou-se numa dogmática luxuriante e, como o mundo, foi arrastado por um vendaval de disputas metafísicas, na qual o interesse religioso se exauria completamente. Tal transformação da religião em filosofia fez com que o requisito exigido para ser cristão não fosse mais o reconhecimento de uma determinada norma de conduta moral e a inefável aspiração à união com Deus pai, revelado por Cristo, mas, antes, o reconhecimento da verdade de um determinado complexo de dogmas filosóficos, o fato de estar inscrito num determinado sistema doutrinário e escolástico. Esta curiosa e essencial transformação trouxe consigo o empobrecimento moral do cristianismo. [...]
“Nas lutas teológicas que dilaceraram a Igreja durante três séculos, tanto de um lado, quanto do outro só se observava, no cristão, a sua confissão doutrinária. O programa do Sermão da Montanha cedeu lugar às fórmulas dogmáticas que os Concílios lançavam uns contra os outros e que eram recolhidas pelos adeptos das doutrinas em guerra. [...]
“A eficácia redentora de tal cristianismo [...] só podia se apagar totalmente. Transformou-se numa religião formalista e, o que é pior, uma religião que não colocava a salvação na renovação interior do homem, como queria Paulo, mas no reconhecimento de exterioridades, tanto doutrinais, quanto rituais, que, daquela luminosa aspiração ao ideal afirmada em sua origem, a transformavam numa complicada superstição.”
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Agora, vou escrever os textos de apresentação dos dois livros e retornar ao fascinante “O preço do monoteísmo”, do alemão Jan Assmann.
Abraços,
Cesar Benjamin
"O Homo sapiens é o único bicho que quer se eternizar, quer se mumificar, quer essa monocultura de comer o mundo. Então que se dane esse Homo sapiens, entendeu?"
Ailton Krenak