Acre e Rondônia vão imunizar indígenas não-aldeados

Foto: Jovem indígena durante campanha de vacinação do Dsei Alto Purus, nas aldeias (Odair Leal/Secom-AC)

11 Mai 2021

 

Por decisão judicial, os dois estados serão obrigados a incluir no grupo prioritário indígenas que vivem nas cidades.

A reportagem é de Fabio Pontes, publicada por Amazônia Real, 07-05-2021.

As Justiças Federais no Acre e em Rondônia decidiram que os indígenas não-aldeados da Amazônia têm de ser vacinados. Agora, qualquer indígena maior de 18 anos e morador de uma cidade acreana ou rondoniense tem o direito de receber as duas doses da vacina. Duas ações civis públicas movidas pelos Ministérios Público Federal (MPF) foram favoráveis a incluí-los na fase um do grupo prioritário do Plano Nacional de Imunização contra Covid-19, ao contrário das intenções dos governos federal e estadual.

“As famílias que estão na cidade estão em trânsito. Muitos estão estudando, trabalhando ou visitando os parentes que moram nas cidades. E quem está em trânsito fica de fora de qualquer prioridade da saúde indígena, seja da vacinação como qualquer outro atendimento”, explica o líder indígena Ninawa Huni Kuin.

Presidente da Federação do Povo Huni Kuin do Acre, Ninawa comemora a “vitória” conquistada na Justiça, já que isso pode acabar com o jogo de empurra-empurra. “A prefeitura não se responsabiliza porque tem a Sesai e a Sesai só vacina quem está na aldeia. Então, quem está na cidade fica sempre sem assistência”, diz ele, referindo-se à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculado ao Ministério da Saúde.

Desde o início da campanha de vacinação, as autoridades responsáveis pela atenção à saúde indígena têm repetido que somente indígenas que moram em terras demarcadas podem ser incluídos nos grupos prioritários. Os que moram em contexto urbano ou em territórios não reconhecidos pelo governo federal, foram excluídos, mesmo que eles estejam apenas em trânsito nas sedes dos municípios.

Os Kaxinawá (autodenominados Huni Kuin) têm a maior população entre os 16 povos indígenas do Acre. Eles representam quase 16 mil dos 24 mil indígenas do estado e estão em maior número nas cidades, seja no interior ou na capital. Apenas na capital Rio Branco estima-se que vivam 780 Huni Kuin. Agora, com a imunização dos indígenas não-aldeados, eles poderão voltar para as aldeias onde moram ou visitam os parentes, segundo Ninawa Huni Kuin.

Acre (com 10,82% de sua população imunizada) e Rondônia (11,14%) estão entre os estados de menores índices de vacinação do País, ao lado de Roraima (10,81%), o pior no ranking nacional, e do Amapá (10,89%), todos pertencentes à região Norte. A estimativa da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) é vacinar 408.232 indígenas contra a Covid-19. Até o momento, 587 mil doses foram aplicadas, sendo 319 referentes à primeira aplicação do imunizante.

O Ministério da Saúde enviou 24 mil doses da CoronaVac, ainda em janeiro, para imunizar os aldeados do Acre, mas só aplicou cerca de 10 mil doses. O governo do Acre, em vez de destinar essa “sobra” para os indígenas que vivem nos aglomerados urbanos dos 22 municípios, decidiu imunizar os profissionais da segurança pública.

Além das dificuldades de logística para chegar aos locais mais distantes, a baixa vacinação se explica pela disseminação de desinformação sobre eventuais efeitos adversos da vacina e a influência de líderes evangélicos que são contra a vacinação.

A situação se agravou após a morte da liderança Fernando Katukina, cacique-geral do povo Noke Koi (também chamados de Katukina). Ele foi o primeiro indígena do Vale do Juruá a receber a CoronaVac. Dias depois, Fernando morreu vítima de uma parada cardíaca. Uma notícia falsa logo começou a circular, atribuindo a morte à vacina.

 

Vacina foi transferida

O povo Huni Kuin também vive na cidade de Rio Branco e deve ser vacinado (Foto: Katie Maehler/Mídia NINJA-2019)

O governo de Gladson Cameli (PP) sequer se deu ao trabalho de responder ao pedido, em fevereiro, da Defensoria Pública do Estado, que recomendou incluir os indígenas não-aldeados na vacinação. O MPF moveu, então, uma ação civil pública (ACP). Em sua sentença, a juíza federal substituta Francielle Martins Gomes deu prazo de 30 dias para que a União fizesse o levantamento de todos os indígenas moradores de cidades e sua inclusão no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi).

A ACP movida pelo Ministério Público foi baseada em uma decisão prévia do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), tinha como objetivo obrigar o governo Bolsonaro a adotar medidas eficazes contra os efeitos da pandemia da Covid-19 nas populações indígenas. E isso inclui assegurar que a Sesai também leve atendimento médico e vacinas a territórios não homologados.

No entendimento de Barroso, os não-aldeados possuem os mesmos direitos dos indígenas nas aldeias. “A mera residência em área urbana não torna o indígena aculturado”, escreveu Barroso. A ADPF foi julgada procedente por Barroso em julho de 2020, depois confirmada no plenário do STF. Em março último, o ministro estendeu os efeitos da ADPF para que os indígenas não-aldeados sejam incluídos como prioritários na campanha de imunização.

No dia 26 de março, em vez de atender à decisão judicial, o governador Cameli anunciou que as doses de CoronaVac não aplicadas nas aldeias seriam aproveitadas para imunizar os profissionais da segurança. A medida atendeu a uma pressão feita por policiais militares. Os profissionais da imprensa também foram incluídos nessa listagem.

“O que eu quero é dar prioridade aos nossos profissionais da área da segurança e da imprensa. Já solicitei o processo legal junto à PGE (Procuradoria Geral do Estado), comuniquei ao PNI e determinei a convocação de todos os secretários municipais para dar celeridade ao processo”, disse Cameli à época, acrescentando que consultou os Ministérios Públicos Federal e Estadual.

Ao ignorar a possibilidade de imunizar os indígenas que moram nas cidades, Cameli fechou os olhos para a proteção de um grupo tido como “invisível” pelo sistema oficial de saúde indígena do governo federal. Quem vive nas cidades, tem de enfrentar as mesmas dificuldades do restante da população para conseguir assistência no Sistema Único de Saúde – isso quando conseguem atendimento.

 

Sem saúde ou educação

Dificuldade no acesso para a vacinação de indígenas pelo Dsei-ARP, da Sesai, nas aldeias (Foto: Odair Leal/Secom-AC)

A grande maioria desses indígenas de contexto urbano vive em bairros periféricos; portanto, à margem das políticas públicas de saúde e educação. É essa invisibilidade social que os deixa expostos a sofrer com os efeitos da pandemia da Covid, conforme apontam estudos realizados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), citados na ACP elaborada pelo MPF no Acre.

Um estudo nacional da Ufpel mapeou a presença de anticorpos na população. Entre as quase 90 mil pessoas testadas, não havia indígenas aldeados. Entre os 1.219 indígenas de contexto urbano testados em todo o país, 66 testaram positivo, o que resulta numa taxa de incidência de 5,4%. Entre aqueles que se definiram como de cor de pele branca a taxa foi de 1,1%.

Já o estudo da Fiocruz apontou que o aumento de indígenas vivendo em municípios com alto risco de contágio por coronavírus, na Amazônia Legal, foi de 59,5%. Ao se fazer comparação entre os que moram em aldeias e cidades, constatou-se que esse último grupo tem maior chance de contaminação: 56% ante 36,9%.

“Os efeitos da Covid-19 geram um impacto desproporcional sobre os povos indígenas, dada sua alta vulnerabilidade a morbidades de causa respiratória”, escreve o procurador Lucas Costa Almeida Dias. “Especificamente quanto aos povos indígenas do Estado do Acre, os dados apontam para uma das regiões com a situação mais crítica em todo o Brasil, ao que se soma um histórico há muito consolidado de desigualdades sociais e problemas estruturais densos.”

Assessor técnico da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Luis Penha Tukano afirma que a situação de extrema vulnerabilidade dos indígenas nas cidades reforça a necessidade da inclusão no grupo prioritário. “A Coiab tem enfatizado a importância da vacina nas áreas urbanas por conta dos indicadores de vulnerabilidade dos indígenas. Eles não estão inseridos num contexto social favorável. Não têm acesso à saúde, residem em áreas periféricas de maior vulnerabilidade”, afirma.

 

Cidades indígenas

Vacinação de indígenas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Purus (Dsei-ARP) nas aldeias (Foto: Odair Leal/Secom-AC)

Dos 22 municípios acreanos, Santa Rosa do Purus tem a maior população indígena proporcional do estado: 53,8%. Nessa cidade, os indígenas representavam, segundo o Censo 2010, 17% dos moradores urbanos. Nas eleições de 2020, três das nove cadeiras da Câmara Municipal ficaram com indígenas: dois Kaxinawa e um Kulina. O vice-prefeito é Valdir Kaxinawa (MDB). Colocar indígena como vice na chapa dos candidatos a prefeito é essencial na cidade para ser bem-sucedido nas urnas.

Localizada às margens do rio Purus, Santa Rosa ocupa as últimas posições em termos de oferta de serviços públicos de qualidade. Entre os 22 municípios acreanos, ocupa a 20º posição no Índice de Desenvolvimento Humano do IBGE: 0,517. Já no país, está na 5.473º colocação. O município tem uma população indígena predominante de Huni Kuin e Madijá (Kulina). A maioria dos indígenas urbanos vive em bairros e vilas separados dos “brancos”, geralmente às margens do rio, em condições mais pobres do que o restante da população.

Até o fim de 2020, Nego Kaxinawa ocupava a vice-prefeitura de Santa Rosa do Purus. Ele acompanhou de perto o avanço da pandemia entre as comunidades indígenas. O coronavírus teria entrado nas aldeias por meio de uma agente de saúde indígena que foi a campo sem fazer testes, tampouco cumprir quarentena. No município, quatro indígenas morreram por suspeita de Covid.

De acordo com Nego Kaxinawa, apenas os indígenas aldeados receberam a primeira e a segunda doses da CoronaVac. Entre os que moram no perímetro urbano, foram imunizados aqueles que se encaixam na fase um do grupo prioritário, que são os maiores de 60 anos. Os demais continuam desprotegidos.

“Enfrentamos essa dificuldade em meio à pandemia, sem vacina para todos. Nós que não fazemos parte do grupo de risco estamos ainda aguardando. Diferente de muitas aldeias que tiveram resistência [à vacina], nós, moradores da cidade, ao contrário, temos incentivado os parentes a se vacinarem. A vacina é hoje o único meio de salvar vidas”, afirma.

 

As mortes por Covid-19

Ninawa Huni Kuin (Foto: Reprodução Facebook)

De acordo com dados do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Purus, responsável pelas aldeias Huni Kuin e Madijá de Santa Rosa, sete indígenas morreram por Covid-19 dentro de sua área de atuação – que ainda abrange os municípios de Manoel Urbano, Sena Madureira e Assis Brasil, mais Boca do Acre e Pauini, no Amazonas, além do extremo oeste de Porto Velho, onde vive o povo Kaxarari. O número de infectados é de 643. A população atendida pelo Dsei é de 12.746.

Já no Dsei Alto Rio Juruá, região onde se concentra a maior população indígena acreana, foram registradas 11 mortes e 897 contaminações, para 18.176 aldeados. Os números oficiais do governo federal levam em consideração apenas os casos ocorridos dentro das terras indígenas, desconsiderando os urbanos.

Levantamento feito pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) mostram que a quantidade de indígenas diagnosticados com Covid-19 é de 2.537 e 32 óbitos. Em Rondônia, são 2.606 infectados com 53 mortos. Em toda a Amazônia Legal, segundo a Coiab, são 918 indígenas que perderam a vida neste um ano de pandemia, e 38.234 diagnosticados.

De acordo com dados oficiais da Sesai, dos 15.157 indígenas dos Dseis Alto Purus e Alto Juruá aptos a serem imunizados, apenas 7.603 receberam a primeira dose. Já a segunda dose foi aplicada em um número bem menor de pessoas: 5.417 (36%). Entre os dois Dseis, o do Purus é o que apresenta a melhor cobertura vacinal: 68% e 49%.

Em Rondônia, a situação é bem melhor. O Dsei Vilhena está na terceira posição entre os distritos que mais vacinaram. Na primeira dose, 95% de seu público-alvo foram vacinados, enquanto na segunda 88%. Dos 5.661 indígenas sob responsabilidade do Dsei Porto Velho, 84% (4.783) receberam a primeira aplicação e 73% estão imunizados com as duas doses.

A estimativa nacional da Sesai é vacinar 408.232 indígenas. Até o momento, 587 mil doses foram aplicadas, sendo 319 mil referentes à primeira aplicação do imunizante.

A reportagem da Amazônia Real procurou a Sesai para comentar a decisão da Justiça Federal, mas nenhuma resposta foi enviada. O mesmo se deu com a Secretaria Estadual de Saúde e o governo do Acre.

Vacinação de indígenas pelo Dsei-ARP nas aldeias (Foto: Odair Leal/Secom-AC)

Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”,

 

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