“Mestre, onde moras?” (Jo 1, 38). Um olhar crítico e construtivo sobre a cidade à luz da Economia de Francisco

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

01 Mai 2021

 

“A Economia de Francisco e Clara retoma conexões, ora dispersas, ora enfraquecidas, que, durante décadas e por saberes milenares, potencializam a capacidade do povo de retomar a economia a partir do seu lugar. As cidades possuem um saber coletivo fundamental em períodos de deterioração da vida neste estágio do capitalismo neoliberal: o mutirão. São saberes partilhados, construções coletivas e organização para reflexão e ação”, escrevem Claudia de Andrade Silva, Eduardo BrasileiroKlaus da Silva Raupp, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”. O artigo também foi publicado pela Revista Vida Pastoral, fevereiro de 2021.

 

Claudia de Andrade Silva é arquiteta e urbanista, e mestranda pela FAU-USP, com pesquisa relacionada ao direito à cidade. Atua junto aos movimentos de luta por moradia em ocupações urbanas de São Paulo e junto à pastoral do povo de rua em Guarulhos.

Eduardo Brasileiro, sociólogo do Instituto Cultiva, é jovem selecionado do evento em Assis The Economy Of Francesco e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC)

Klaus da Silva Raupp é graduado em Direito pela UFSC, advogado em Santa Catarina, mestre em teologia pela PUCRS, professor na área teológica, e doutorando em teologia e educação pelo Boston College (Jesuítas), com pesquisa sobre design de currículo de educação religiosa com foco em justiça econômica.

 

Eis o artigo.

 

O Papa Francisco, ao convocar jovens do mundo inteiro – especialistas das universidades e das ruas, empreendedores e agentes de mudança social – para o evento “A Economia de Francisco”, na cidade de Assis, na Itália, pretende lançar redes numa sociedade globalizada pela fome e pela dominação econômica e política, e recolher possibilidades de retomarmos o pacto global por um outro mundo possível, e “realmar” a economia. Realmar, num tempo marcado por uma economia asfixiada pela financeirização e por Estados nitidamente autoritários (cf. DOWBOR, 2017), é tarefa hercúlea que requer um elo vital de esperança, e a articulação de forças ainda não ouvidas. Neste artigo, desenham-se possíveis “arquiteturas” que, em bases cristãs católicas, alicerçam sujeitos dispostos a forjar o novo nas cidades.

 

 

VER – Um olhar crítico sobre a cidade

 

O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer ‘isto é meu’ e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos […] teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém’” (Jean-Jacques Rousseau, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens)

A discussão presente neste texto parte da identificação da raiz econômica das desigualdades socioterritoriais e, nesse sentido, conecta-se à produção do espaço urbano, pois a práxis nos territórios populares revela os limites e contradições de uma sociedade que se organiza a partir de uma lógica capitalista. O urbano tem uma relação muito influenciada pelo sistema econômico, pois a cidade não é somente locus da produção, mas, no modo de produção capitalista, é também mercadoria que se transforma em capital. Assim, a cidade, nesta reflexão, é definida a partir da concepção de Maricato (2001), como produto de interesses em disputa, arbitrados pelo Estado, e dependente da correlação de forças de uma sociedade capitalista periférica. Sendo assim, a produção da moradia precária é entendida como parte integrante da produção da cidade, resultado da precarização gerada pelo capitalismo.

A cidade, enquanto mercadoria, em que o valor de uso de um bem comum como a terra foi dominado pelo valor de troca em lógica capitalista, fez com que houvesse uma disputa de forças pelas localizações, e, portanto, os territórios que não interessam ao mercado imobiliário são os que restam para a população de baixa renda. Foi à margem do que estava se consolidando como uma urbanização legal que a grande parte da classe trabalhadora se instalou, com ocupação irregular e precária nas franjas da margem urbana e em áreas ambientalmente frágeis, como beira de córregos, encostas, áreas de mananciais etc.

A partir de 1960, principalmente, com a crescente migração rural-urbana, a produção da moradia precária foi a solução possível que a população de baixa renda encontrou diante da insuficiência de meios e da exclusão do mercado imobiliário privado. Como aponta Maricato (1996), os trabalhadores são excluídos desse mercado e, sem outra opção, moram em favelas. Nos termos da autora, trata-se do “produtivo excluído”, resultado da industrialização com baixos salários. Foi o autofinanciamento de suas habitações que permitiu o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho e, como conceitua Maricato (2013), de uma urbanização com baixos salários. A autora expressa que

 

a ilegalidade na provisão de grande parte das moradias urbanas (expediente de subsistência e não mercadoria capitalista) é funcional para a manutenção do baixo custo de reprodução da força de trabalho, como também para um mercado imobiliário especulativo (ao qual correspondem relações de trabalho atrasadas na construção), que se sustenta sobre a estrutura fundiária arcaica (MARICATO, 2013, p. 147-148).

 

Refletir sobre a maneira como o pobre conseguiu aderir à vida urbana é uma tentativa de superar a visão estereotipada que este tema carrega, com reconhecimento de que tais territórios não devem ser explicados a partir da carência, da pobreza ou da precariedade, mas pelo entendimento de que a autoconstrução das moradias pela população de baixa renda está atrelada ao modelo brasileiro de desenvolvimento “desigual e combinado”, produto da acumulação capitalista (cf. OLIVEIRA, 1972). O Estado não amparou ou garantiu condições mínimas para a concentração de trabalhadores da indústria nas cidades em formação, o que colaborou para a precarização das condições de vida em moradias e a urbanização de baixo custo. O modelo de desenvolvimento brasileiro, portanto, sempre associou um grau de crescimento econômico a uma desigualdade extrema, confirmada pelo fato de que parte da população está situada abaixo da linha da pobreza. A pobreza e a desigualdade, portanto, são características estruturais que acompanham o desenvolvimento brasileiro e estão associadas a um processo crescente de precarização e informalização das relações de trabalho (cf. CARDOSO, 2007).

As pesquisas iniciadas nos anos 1970 ampliaram o debate sobre a cidade real, demonstrando que, ao invés dos moradores de favela estarem em um processo de ascensão social, estariam em processo de empobrecimento. Estudos pioneiros, como os de Kowarick (1980) e Taschner (1978), foram importantes na medida em que fizeram uma revisão da concepção que se tinha até então do lugar da moradia precária no processo de adaptação de migrantes à cidade. Esses estudos expuseram o papel da

 

massa trabalhadora na economia nacional e de sua integração, mesmo que subordinada. Romperam com a visão dominante até esse momento do morador de favela como migrante rural, que estaria em um processo de ascensão social no meio urbano. Na realidade, “parte significativa dessa população não era composta de migrantes em processo de ascensão social, mas sim de camadas empobrecidas, em processo de mobilidade social descendente” (CARDOSO, 2007, p. 222).

 

A partir desse momento, a favela passa a ser vista como uma forma de produção coletiva do espaço urbano, que revela não somente a condição de exploração do trabalhador, como também sua espoliação cotidiana (cf. KOWARICK, 1980). A defesa aqui, portanto, é de um olhar para os territórios populares não enquanto problema, mas como uma solução possível, em um sistema que não deixa alternativa para quem é excluído da demanda programática do Estado e do mercado imobiliário formal. Parte-se do esforço de reconhecer os territórios populares como a própria cidade. Favela “é o regime de produção do espaço urbano, predominante no chamado sul global nos termos de Gonçalves (2013), é a forma preponderante de moradia dos trabalhadores” (SANTO AMORE; LEITÃO, 2019, p.18).

Assim, parte-se do pressuposto de que, para a superação da produção desigual da cidade, é necessária uma mudança de paradigma econômico, pois a generalização do modo de produção capitalista inexoravelmente produz desigualdades socioeconômicas, diferenciações e assimetrias nas condições de apropriação do espaço urbano (cf. SANTO AMORE; LEITÃO, 2019). Há o reconhecimento de que para alcançar a democratização da cidade é necessária, antes, uma democratização econômica. Uma democratização que não se resuma à distribuição da renda ou ao acesso à moradia, pois é preciso “distribuir cidade”, entendendo que o direito à cidade passa pelo acesso a bens e serviços, como também pela reforma fundiária e imobiliária, bem como tributária.

Lembra-nos Milton Santos (2012) que a urbanização passou a ser um dado fundamental na compreensão da economia, na medida em que a circulação de mercadorias, pessoas e ideias ganhou tal expressão. Inclusive, o geógrafo Roger Lee chegou a afirmar que o “sistema urbano é a economia” (SANTOS, 2012, p.113). Assim, o autor expressa que, para compreender a economia de um país, é necessário dar atenção aos estudos urbanos e buscar a metodologia mais adequada para analisar a cidade, o território e a nação.

 

JULGAR – Entender a cidade à luz da Economia de Francisco

 

Romper as cercas da ignorância, que produz a intolerância, terra é de quem plantar... [e de quem morar... e de quem trabalhar...]” (Pedro Munhoz, em Canção da Terra – e acréscimo dos autores)

O texto bíblico que fundamenta a compreensão cristã do chamado Juízo Final deixa muito claro que o critério deste é tudo aquilo que se faz aos menores dos irmãos de Jesus, o que o próprio Cristo considera como feito a ele mesmo (Mt 25, 40). A nota à passagem respectiva da Bíblia Pastoral (Paulus) em sua versão online esclarece que

Jesus “está identificado com os pobres e oprimidos, marginalizados por uma sociedade baseada na riqueza e no poder; por isso, o julgamento será sobre a realização ou não de uma prática de justiça em favor da libertação dos pobres e oprimidos”. De fato, desde o início de sua missão, Jesus afirma literal e publicamente que os pobres e oprimidos são os destinatários principais da sua boa nova de libertação (Lc 4, 18), e que a pobreza de espírito e a busca da justiça são caminhos largos na direção da bem-aventurança (Mt 5, 1-12). Jesus falava do Reino de Deus – e o tornava presente – como um elemento central de sua existência histórica, identificando-o, de modo especial, e dentre outros valores similares, com a partilha (Lc 9, 10-17). Seria tarefa inglória, portanto, negar que esta é a prática central da fé cristã, e a condição para participar da vida do Reino, tanto que o mesmo Jesus apontava a dificuldade – o caminho estreito – de conhecer o Reino de Deus naqueles que são apegados à riqueza (Mc 10, 23).

Diante do que observamos a partir de um olhar crítico sobre a cidade, cumpre registrar que os pobres como lugar teológico constituem uma questão hermenêutica crucial de nosso tempo (cf. SUSIN, 2007). Em face de um capitalismo que hoje recorre ao fascismo como uma via de sobrevivência, faz-se mais do que atual a cristologia de Jon Sobrino, ainda que recentemente – e injustamente – perseguida. Conforme nos informam as fontes originais da fé cristã, a Igreja dos pobres é a verdadeira Igreja, de modo que a evangelização enquanto sua missão primeira passa por uma ação refletida (práxis) que se deve impulsionar a partir deste lugar teológico (cf. SOBRINO, 1984). É o contexto da pobreza – ainda uma realidade gritante na cidade – que nos impõe, por honestidade em relação a este real, a atualidade de uma cristologia da libertação (cf. SOBRINO, 1991), e a necessidade de agirmos para que os pobres desçam da cruz.

Antes que alguém desavisado imponha aos autores rótulos difamatórios como o de “comunistas” – algo muito comum atualmente por conta, dentre outros, da vasta influência do neopentecostalismo no seio da própria Igreja Católica –, vale registrar: que o Catecismo, de modo similar ao que faz em relação ao comunismo, condena moralmente o capitalismo por suas práticas, as quais atentam contra a justiça social e o bem comum (nn. 2423-2425); que João Paulo II ensina que a Igreja adota uma atitude crítica a ambas ideologias, e que a doutrina social da Igreja é uma categoria que se distingue das duas (Sollicituto rei socialis, nn. 21 e 41); que o Compêndio da Doutrina Social da Igreja assume o bem comum, a destinação universal dos bens e a opção preferencial pelos pobres como seus princípios basilares (cf. capítulo IV); e que Bento XVI reconhece numa das mediações sócio-analíticas usadas pela teologia da libertação – no momento do “ver” – aquilo que ele chama de precisão pontual na descrição das realidades do seu tempo (Spe salvi, n. 20).

Francisco, que bebeu das fontes da chamada teologia do povo (cf. SCANNONE, 2016), uma das quatro vertentes da teologia da libertação latino-americana, confirma este entendimento da Igreja em relação ao capitalismo, e vai além. No capítulo II da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, que muitos consideram como o “programa” de seu pontificado, o Papa faz uma crítica contundente ao atual modo de produção predominante, e convoca os cristãos para quatro “nãos”: “a uma economia da exclusão e da desigualdade social” (nn. 53-54), “à nova idolatria do dinheiro” (nn. 55-56), “a um dinheiro que governa em vez de servir” (nn. 57-58), e “à desigualdade social que gera violência” (nn. 59-60). Ao mesmo tempo, reafirma a dimensão social da evangelização, a partir do próprio Evangelho, do Reino de Deus, e da doutrina social da Igreja (cf. capítulo V). Como afirma Jung Mo Sung, é preciso que nos livremos do capitalismo neoliberal também enquanto mito religioso de nosso tempo, o qual inclui a idolatria do capital, a inquestionabilidade do mercado, a culpa – e a morte – dos pobres, etc. (1989).

Nos encontros mundiais dos movimentos populares, realizados em Roma (2014), na Bolívia (2015), e novamente em Roma (2016), o Papa conclama para uma economia que sirva aos povos, e, já no primeiro deles, afirma que solidariedade

 

é também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais; é fazer face aos efeitos destruidores do império do dinheiro: as deslocações forçadas, as emigrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas aquelas realidades que muitos de vós suportam e que todos estamos chamados a transformar; a solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem (FRANCISCO, 2014).

 

São os já conhecidos três “T”s de Francisco (terra, teto, e trabalho), ele que trata como estranho, inclusive, quando o acusam até mesmo de “comunista” por falar disso, e quando não se compreende que o amor aos pobres está no coração do Evangelho. Em verdade, são direitos humanos básicos, nos quais se inclui a moradia. Terra é de quem plantar, morar, e trabalhar, e não de quem diz que é sua. E àqueles que seguem a Jesus Cristo em discipulado missionário impõe-se a rebeldia amorosa da fé (cf. FREIRE, 1997), a qual se expressa autenticamente na luta por esta terra enquanto dom da criação cujo cuidado o próprio Deus confiou a toda a comunidade humana. Em outras palavras, e completando uma perspectiva também trinitária, apreciar retamente todas as coisas, segundo o Espírito Santo, e no contexto da cidade, pede de nós essa luta pela garantia da moradia do próprio Mestre, Jesus, o Cristo.

Na Encíclica Laudato si', Francisco se apoia no princípio fundamental de que tudo está interligado (ecologia integral), e propõe uma economia igualmente integral, o que requer um esforço mais enérgico de prestar atenção na economia real (n. 189), e, por conseguinte, nos problemas reais da cidade. Diz o Papa que esta abordagem integral pressupõe a necessária inclusão da justiça nos debates e nas práticas afins, para que se ouça os clamores tanto da terra como dos pobres (n. 49). É nesta direção, portanto, e de forma processual, que devem caminhar os que desejam participar da Economia de Francisco, sendo fiéis ao chamado feito pelo sucessor de Pedro: “promover[mos] juntos, através de um ‘pacto’ comum, um processo de mudança global que veja em comunhão de intenções [...] todas as pessoas de boa vontade [...] unidas por um ideal de fraternidade atento acima de tudo aos pobres e aos excluídos” (FRANCISCO, 2019).

 

AGIR – Um olhar construtivo sobre a cidade

 

E fez o criador a natureza, fez os campos e florestas, fez os bichos, fez o mar. Fez, por fim, então, a rebeldia que nos dá a garantia, que nos leva a lutar pela terra...” (Pedro Munhoz, em Canção da Terra)

Ao se remeter a uma região periférica de uma cidade, dirige-se como ao fundão, e, neste, ao amontoado de gente prejudicada pela atual economia capitalista neoliberal, que promove tanto a precarização do trabalho, como a despossessão da terra e do poder político. Neste cenário, pergunta-se: quais são as possibilidades reais de romper essa lógica? O Papa Francisco traz uma provocação fundamental nessa direção: a cultura do encontro. É assim que o faz em seu pontificado, e é como provoca a humanidade: encontrar as possibilidades que já existem – mas ainda não percebidas – e notar os caminhos convergentes que são latentes – mas que foram descartados.

Realmar a economia é reivindicar a centralidade da vida, e esta percorre o chão das cidades, desde a juventude que questiona as lógicas autoritárias até as comunidades que se reúnem e rezam a partilha do pão, mesmo numa sociedade que produz a lógica individualizante. É lançar uma semente que cresce aos poucos e ocupa espaço pela resistência.

No Brasil, houve uma convergência entre ativistas das economias, intelectuais decoloniais e movimentos do campo e da cidade para pensarem juntos novas “arquiteturas” para a sociedade brasileira, especialmente em face do apartheid urbano. Neste contexto, surgiu a Carta de Francisco e Clara, apresentando Clara de Assis como uma figura a reivindicar que as novas economias se irromperão no tecido da cidade se mulheres compuserem o tear das novas narrativas:

 

Economias no plural. Economias solidárias e populares, criativas e colaborativas. A economia circular e ecológica. As economias da dádiva, a festa comunitária, a comunhão. A economia feminista, das mulheres. As economias camponesas e tradicionais. A economia da cultura. O mundo do trabalho, enfim. As economias vivas. Do coletivo, do comum (ABEFC, 2020).

 

Portanto, a Economia de Francisco e Clara – nome adaptado pela articulação brasileira para o evento citado – retoma conexões, ora dispersas, ora enfraquecidas, que, durante décadas e por saberes milenares, potencializam a capacidade do povo de retomar a economia a partir do seu lugar. As cidades possuem um saber coletivo fundamental em períodos de deterioração da vida neste estágio do capitalismo neoliberal: o mutirão. São saberes partilhados, construções coletivas e organização para reflexão e ação.

Cabe realmar a economia através da organização de um movimento social que reúne práticas e se assenta em territórios e comunidades. É assim que os bancos de desenvolvimento territorial (bancos comunitários) e a economia solidária, por exemplo, questionam o lucro e a ganância dos bancos, e desenham uma dissociação da economia dos mercados. Também a agroecologia e as ecovilas assim o fazem ao trazerem uma relação de produção alimentar verdadeiramente sustentável, e apontando, sobretudo, para a soberania alimentar pelo paradigma da economia da suficiência.

Essas ações criam movimentos que superem o modelo de “des-envolvimento”, rompendo a lógica extrativista e produtivista, e investindo em recursos produtivos locais com o centramento dos padrões de consumo em nossas pequenas vilas e bairros. Assim, a espiritualidade de Francisco de Assis de “simplicissimamente nós viveremos daqui pra frente” remete a um exercício auto gestionário local de romper a lógica da educação para consumir, competir e acumular para um bairro inteiro desenhar o seu bem viver.

Sintonizados a essas práticas territoriais, novas vozes e reflexões vão preparando o caminho para o encontro em Assis com o Papa. O encontro não se inicia nem se encerra em Assis, mas lá encontra sua mística e pedagogia. As vilas serão espaços onde jovens do mundo inteiro se encontrarão e partilharão. A contribuição latino-americana para o encontro em Assis sustenta-se em três eixos, a saber: nas redes de solidariedade popular que a América Latina forjou em suas resistências a partir do campo e da cidade; na filosofia do bem viver, que traz o frescor de pensamentos alicerçados na vida dos povos marginalizados da cidade e do campo; e nos saberes nascidos deste lugar de práxis, como, por exemplo, a teologia da libertação e a pedagogia do oprimido.

A trama das vilas será permeada pelas seguintes ideias-forças e respectivos focos: a) Gestão e Dom: abordagens para a gestão sustentável; b) Finanças e Humanidades: centrada nos desafios do capitalismo financeirizado por meio de novas formas de partilha e do compromissos em remanejar as grandes fortunas globais para a superação das misérias; c) Trabalho e Cuidado: pensar o trabalho na era da revolução 4.0, com incidência da visão da “ecologia integral” (Laudato si, 156), a qual almeja a superação da lógica de competição e acumulação e remete ao equilíbrio da vida e do trabalho, longe de toda cadeia de exploração e escravidão que vive boa parte das pessoas no mundo; d) Energia e Pobreza: realmar a economia com novo sistema energético que vise as capacidades locais de geração de riqueza, afastando-se dos monopólios corporativos; e) Agricultura e Justiça: somente com a reforma agrária se prepondera um rompimento com a cadeia produtiva global, concretamente mirando a soberania alimentar; f) Negócios e Paz: costurando possibilidades de responsabilização das grandes corporações nos conflitos regionais em torno do planeta, e sua superação pela lógica de economias que visem negócios a partir da cultura colaborativa não extrativista; g) Mulheres para a Economia: só ocorrerá uma transição quando as vozes silenciadas, sobretudo as das mulheres, forem envolvidas no novo processo econômico; h) CO2 da Desigualdade: superar o desequilíbrio da visão única de progressos sustentada em desmatamento e destruição de territórios e pessoas; i) Lucro e vocação: entendendo a necessidade de superação dessa lógica atual do capital acima do trabalho, focando no desenvolvimento de uma superação do sujeito empresarial (DARDOT; LAVAL, 2016), e revisitando toda a sua cadeia subjetiva para seres humanos a caminho da liberdade; j) Negócios em transição: uma relação que privilegie as potencialidades e descobertas humanas e que faça irromper, no lugar de competição e acumulação, a cooperação e o compartilhamento; k) Vida e estilo de vida: compreendendo o desafio de uma nova cultura diante do esmagamento do consumismo e da cultura do bem-estar que cria uma lógica de ganância e se afasta da economia para o suficiente; e l) Políticas para a Felicidade: propondo uma nova “arquitetura” das relações humanas onde a felicidade esteja acima da moral do capital, e fazendo emergir necessidades e desejos voltados para a comunidades e cidades inteligentes.

A Economia de Francisco e Clara é filha da reivindicação presente nas ruas da cidade, que não se calam diante do genocídio de um povo por meio da economia da morte, mas que ateiam o fogo da esperança em mentes, corações e mãos capazes de dizer e realizar o novo, pois o ato de dizer possui a capacidade de encarnar, como Cristo o fez (Jo 1, 14) resgatando a humanidade para a vida.

 

Referências Bibliográficas

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