Decálogo: o mistério que tudo abraça e não se deixa reduzir à certeza de um computador

Personagem que perpassa os dez episódios da série Decálogo

Foto: Reprodução do YouTube

Por: Patricia Fachin | 07 Abril 2021

 

A série polonesa Decálogo [Dez Mandamentos] (1989), do diretor de cinema Krzysztof Kieślowski, que apresenta em cada episódio um dos dez mandamentos bíblicos à luz de personagens contemporâneas imersas em dramas que emergem no seu cotidiano, está na lista dos dez melhores filmes produzidos nos últimos 25 anos, segundo votação da revista britânica especializada em cinema, Sight & Som.

 


  Kieślowski (Foto: Divulgação/Nit.pt)

 

O primeiro mandamento, Amarás a Deus sobre todas as coisas, narra a história de um menino de dez anos de idade dividido entre a crença científica do pai, um professor universitário, e a fé religiosa da tia. A contraposição entre fé e razão, entre a crença na ciência e na transcendência, representada nas personagens adultas, revela "uma primeira camada" que perpassa este e os demais episódios da série, disse Rodrigo Petrônio, doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, ao comentar o filme no ciclo Filmes em Perspectiva, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira e o Canal Paz e Bem.

O pai do menino, esclareceu o comentarista, "é um linguista que está tentando explicar as línguas a partir de modelos matemáticos computacionais em termos de probabilidade: como é possível chegar à essência, à base de uma língua, como podemos pensar as línguas na sua diversidade. A outra personagem, Irena, tia do menino e irmã do pai, é muito importante: ela é católica, e mostra para o menino umas fotografias que tinha revelado do papa".

A partir de suas visões de mundo, as personagens adultas tentam esclarecer os fenômenos para os quais a criança busca explicação. Entre as questões endereçadas ao pai, está um dos mistérios da humanidade: a morte. "O menino pergunta ao pai o que é a morte e por que as pessoas têm que morrer. O pai dá uma explicação totalmente científica: 'a morte é quando o coração para de bombear sangue para o cérebro. As pessoas morrem de câncer, de ataque cardíaco e não existe isso que as pessoas chamam de alma. A alma é apenas uma coisa reconfortante para que as pessoas consigam viver'. O menino fica abatido e parece não se convencer dessa explicação, mas isso não tira a vinculação e a relação amorosa que ele tem com o pai", pontuou.

 

 

Na interpretação do professor Faustino Teixeira, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora, "ao se consultar com o pai, o cientista que tem o domínio da máquina, dos números, dos cálculos, o menino fica sem respostas", porque elas "são todas evasivas e na linha científica de alguém que desacredita [na transcendência]". Na avaliação dele, apesar de o menino ser fascinado pelo pai e, em particular, pelo seu trabalho científico, a relação da criança é muito mais forte com a tia, para quem a pergunta sobre Deus é endereçada e respondida com um abraço. "Fiquei muito impressionado com a figura da tia. É uma figura muito nobre, bonita, encantadora. Quando ela abre o envelope com as fotos do papa João Paulo II, ela está diante de um conflito, porque não quer desrespeitar o pai do menino com a sua descrença e tenta justificar a vida dele. Você vê ali, de novo, indiretamente, o poder da religião, do mistério que tudo abraça e que não se deixa reduzir à certeza de um computador. O menino, quando acertava os jogos do computador, vibrava. Quer dizer, ele estava sob a presença do pai, que é um pai agnóstico, mas ele era encantado e envolvido com a presença da tia, que não deixava com que o mistério desaparecesse da vida dele", destacou.

Segundo Petrônio, o pai, apesar de ser agnóstico, também é movido por uma espécie de "crença absoluta", não na transcendência, mas na ciência. "A relação que o pai estabelece com o computador é absoluta no sentido de ser uma verdade ele mesmo. O computador tem um poder oracular para o pai, que acredita piamente nele. Dá para pensar na técnica como um tipo de religião, de sacralização, de religião secular, ou de religião ateísta, como se costuma dizer, porque há uma crença na técnica, no computador. Só que essa crença não faz o questionamento de si mesma", comparou.

 

 

Contingência

Outro elemento central que permeia o episódio é o problema lógico-filosófico da contingência, daquilo que não é necessário e pode ou não ser ou acontecer. Essa questão, de acordo com os comentaristas, é apresentada de formas distintas, algumas vezes enigmáticas, como quando um tinteiro se rompe. "A cena mais impactante da contingência é aquilo que não é possível de acontecer e acontece, como o tinteiro quebrar. Tinteiro não rompe, a não ser que você o quebre. Mas [no filme], ele rompe sozinho, derrama a tinta azul sobre os livros - e este é o primeiro sinal que o pai tem do acaso", mencionou Teixeira.

De acordo com Petrônio, a temática do "acaso", da contingência, permeia a obra de Kieślowski e o primeiro episódio da série trata de um evento que não pode ser nem explicado nem previsto pela razão ou pela ciência. "Sinto que existe neste episódio uma questão muito forte de Kieślowski com a contingência. As religiões são sistemas racionais pelos quais o ser humano explica a contingência. Por que eu sobrevivi e outros não? Eu moro perto de um hospital e quando caminho na rua vejo crianças em cadeiras de rodas, com leucemia. Por que elas e não eu? Não existe nada no universo que explique por que eu não poderia estar na condição daquelas crianças. O que pode nos dar uma explicação é pensar que houve uma razão para eu ter sido escolhido para alguma coisa e não para outra. E aí entramos em toda a questão teológica que existe por trás disso. Mas isso tudo é uma forma explicativa, uma forma de racionalização".

A contingência, segundo Faustino Teixeira, também é demonstrada quando o pai, "muito confiante acerca do que sabe sobre computação, decide fazer o cálculo matemático e probabilístico da espessura do gelo e diz para o filho que o gelo [que está na superfície do lago, formando uma espécie de pista de patinação] pode segurar uma pessoa que tem três vezes o seu peso e dá ao filho patins [de presente]".

Para Petrônio, a contingência e também a crença absoluta do pai na ciência se revelam de modo ainda mais forte na sequência de imagens que marca o rompimento do gelo e a morte do menino. "Essa sequência de cenas mostra que a comunidade local está mobilizada. O pai ouve sirenes de bombeiros, vê pessoas correndo, mas ele não se mobiliza porque ele tem total convicção [de que o gelo não romperia]. Ele estabelece um diálogo com uma personagem que fala que o gelo pode ter cedido e ele diz que é impossível [isso ter acontecido]. Aí ele vai bater na porta da professora de inglês [em busca do filho], mas ela estava doente, não deu aula e dispensou as crianças, mas ele não sabia disso. Essa sequência é importante para mostrar uma personagem que acredita tão piamente naquilo que ela desenvolveu do ponto de vista lógico, que lhe é vedada até a possibilidade de [pensar que] o gelo poderia ter quebrado e muito mais ainda a possibilidade de seu filho estar entre as crianças que foram engolidas pelo lago. Depois dessa sequência, quando o pai se defronta [com a situação] e vê os bombeiros retirando os corpos, há um confronto dele com a irmã, porque todas as pessoas se ajoelham diante daquela tragédia e ele é o único que permanece em pé".

Essa cena, na interpretação de Teixeira, mostra que a contingência não diz respeito somente à ação humana, mas também à técnica. "O computador acabou falhando porque ele proporcionou os cálculos do pai". E acrescenta: "O que é o acaso? A matemática dele não permitiu que o lago cedesse".

Para o jornalista Mauro Lopes, a incredulidade do pai expressa exatamente a postura do agnóstico: "O que é o agnóstico senão aquele que se reserva a si até o último momento ou a todo instante, a pergunta derradeira que é: 'Será?' Este é o agnóstico. O pai tem uma relação de absoluto com o computador e, diante da máquina, ele não faz a pergunta: 'Será?'"

A tragédia da morte do filho e da consciência de que o seu sistema técnico-científico é falho, dá uma nova direção ao episódio e, ao final, o pai do menino se dirige a uma igreja. Essa cena, para Petrônio, é enigmática. "O pai vai para uma igreja que está sendo construída e destrói o altar. As velas caem sobre uma imagem religiosa como se fossem lágrimas, como se estivessem queimando a imagem e ao mesmo tempo escorrendo no rosto do próprio ícone". Para Teixeira, este momento seguido da cena em que o pai passa um pedaço de gelo sobre a testa mostram seu pedido de perdão a Deus. "Analiso a cena do gelo na testa como um pedido de absolvição. Tem uma coisa religiosa nisso: ele derruba o altar, ataca a Igreja como um revoltado diante do que Deus é capaz de fazer com seu filho, mas depois busca sua absolvição", disse.


Necessidade

Entre os vários enigmas que Kieślowski apresenta para que o espectador vá juntando as peças do quebra-cabeça, Petrônio também mencionou uma personagem que apenas aparece em breves takes ao longo dos dez episódios, mas o inquieta profundamente. "Essa personagem tem uma função vazia, que é o que chamamos de uma personagem coringa, que aparece no início do filme e em todos os demais episódios: É uma personagem que está à beira do lago congelado, diante de uma fogueira. Em uma entrevista, perguntaram para Kieślowski quem é essa personagem e ele disse: 'Não é nada'. Mas é mentira dele! É óbvio que essa personagem é alguma coisa e tem uma função narrativa importante, mas ele não pode dar a chave interpretativa da obra. Mas em mais de uma vez o homem do lago aparece. Ele está simplesmente sentado, com um capuz, diante de uma fogueira à beira do lago. Essa personagem aparece em todos os episódios, em momentos decisivos e, geralmente, em momentos catastróficos, em que vai haver algum tipo de virada, vai haver algum colapso moral ou existencial, físico ou biológico das personagens. Por que essa personagem é apresentada logo no começo? Essa é uma investigação que temos que fazer". E acrescentou: "Talvez aquela personagem que estava diante da fogueira tenha alterado o lago. É uma pessoa que está ali dia e noite, fazendo fogo. A gente não sabe quem é aquela personagem e que poder ela tem".

 

 


No dia 14 de abril (próxima quarta-feira), às 17h, Faustino Teixeira, Rodrigo Petrônio e Mauro Lopes comentam o filme Melancolia (2011), de Lars von Trier. O evento será transmitido no Canal do IHU no YouTube e no Canal Paz e Bem. Recentemente, eles também comentaram o filme A Árvore da Vida, de Terrence Malick. A cobertura pode ser lida aqui

 

 

 

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