08 Fevereiro 2021
Um país sem memória.
As privatizações iam criar uma economia competitiva.
A reforma trabalhista ia criar milhões de empregos.
A reforma da Previdência ia equilibrar as contas.
Tudo só serviu para aumentar a pobreza e concentrar renda.
Agora, a reforma administrativa vai recuperar o PIB.
Não aguento mais ver os políticos da esquerda dizerem que “precisamos ter um projeto para o Brasil”.
“Precisamos” há muitos anos. Mas não fazem e, de tão inseguros, não deixam fazer. Perseguem quem faz.
São profissionais, mas não estudam nada, não conhecem nada, nada têm a dizer sobre o país, a não ser platitudes e banalidades.
Vivem em articulações, disputando posições de poder, fazendo caras e bocas quando tem imprensa por perto.
Especializaram-se em declarações de quinze segundos.
“Precisamos ter um projeto...” é a homenagem que o vício presta à virtude.
Ciro Gomes é uma exceção. Parece-me ser o único que estuda questões nacionais e tem propostas de fundo.
Uma das vantagens de se escrever um livro sobre um tema é que você passa a ter uma excelente desculpa para não participar de certas conversas. Basta dizer: “ah, se você quer saber o que eu penso mesmo sobre isso, leia o livro.”
Na maioria dos casos, é uma pura trapaça dos autores, porque nem sempre a resposta está tão clara assim no livro e quase nunca é impossível resumir o seu ponto de vista em três ou quatro parágrafos ao interlocutor que pede.
O debate eleitoral brasileiro para 2022, que está começando, é um desses casos. Os números que emolduram a realidade efetivamente existente (uso essa expressão para diferenciá-la da realidade só existente na cabeça dos fieis de alguma força política) são amplamente conhecidos, eles não são secretos:
1˚ Bolsonaro tem 1/3 do país com ele, marromeno para cima, marromeno para baixo, dependendo de fatores conjunturais.
2˚ A maior força política brasileira continua sendo o antipetismo, que mobiliza ½ da sociedade. Todo bolsonarista é antipetista. Nem todos os antipetistas se vêem representados no bolsonarismo, mas a esmagadora maioria estará disposta a fechar com ele se o adversário for o petismo.
3˚ O petismo/ lulismo continua sendo a força de maior penetração social dentro do campo não bolsonarista, com 1/5 da sociedade de potência eleitoral imediata.
É só fazer as contas, e eu estou longe de ser o único a ter apontado essas obviedades.
“Ah, então a culpa é do PT.” Não, Pedro Bó, estou descrevendo um quadro político, e o surpreendente seria descrever o quadro político de um país sem incluir a força que o governou durante 14 dos últimos 20 anos, especialmente em um contexto em que essa força ainda mobiliza as paixões políticas de uns 70% da população, uns 50% contra si e uns 20% a seu favor.
Como as movidas do campo petista já repetem as de 2018, que foram todas concentradas explícita, declaradamente no objetivo de colocar Bolsonaro no segundo turno, vai se encaminhando uma repetição da tragédia avisada por tantos. As movidas são difíceis de se questionar porque no campo petista há obediência cega ao ego de um homem, que foi um bom presidente mas tem sido, há uma década já, um ex presidente catastrófico, desastroso.
O campo bolsonarista sabe que pode perder terreno até a eleição e o antipetismo é a carta que tem na manga quando os desastres do governo de seu líder tiverem que ser debatidos em um processo eleitoral. A carta antipetista funcionou 3 vezes já, em 2016, 2018 e 2020. Nada indica que o poder dessa carta tenha se enfraquecido.
Pode ser que se encontre um caminho para derrotar o minúsculo? Claro que sim, é possível. Ele não tem maioria. Mas fingindo que esses números aí não existem, vai ser difícil.
A revolução antijudiciarista e o novo modelo de governabilidade
Se FHC reciclou o liberalismo da república velha na democracia de 88, e Lula/Dilma, o social-desenvolvimentismo da Getúlio/Jango, seria esperar demais que Bolsonaro rodasse, com sua nova ARENA, um videotape do regime militar, também nos marcos - embora algo esbodegados- de 1988?
Aqui é preciso pensar os termos atuais de reedificação do presidencialismo de coalizão. O tema é interessante porque, quando o modelo de governabilidade do presidencialismo de coalizão foi instituído pelo FHC, o judiciarismo ainda não tinha se instalado. O modelo, como sempre, envolvia o executivo e legislativo.
O judiciarismo se construiu por fora, paralelamente. Houve de início um círculo virtuoso, que se tornou vicioso a partir de um certo momento. Quando o modelo apodreceu, o judiciário entrou em cena e começou a revolução Judiciarista, que terminou de desmoralizar as instituições e reinou sozinho, na fraqueza do legislativo e do executivo. Até que Temer tratou de desmoralizar também o judiciário e, diante do vazio institucional, foi possível aparecer um Bolsonaro prometendo botar o pau na mesa e restabelecer a autoridade.
A lógica da rearrumação do modelo de presidencialismo de coalizão, agora no modelo conservador/autoritário, não tem mais como ignorar o fato de que o judiciário se tornou um poder político relevante que tem que ser incorporado ao modelo de governabilidade. A solução conservadora é a de retornar ao sistema anterior, antijudiciarista, submetendo o judiciário ao executivo e o legislativo.
Em outras palavras, o programa dos atuais encarregados de fazer a versão conservadora do presidencialismo de coalizão exige a neutralização/contenção política do judiciarismo que levou à instabilidade de 2014-2018. Daí o seu antijudiciarismo, mais visível pela hostilidade geral à Lava Jato; seu recurso aberto ao APARELHAMENTO do mistério público e do judiciário.
Não há como voltar formalmente a 1967-69. Mas eles serão domesticados pelo APARELHAMENTO, desrespeito à escolha dos primeiros colocados nas listas tríplices, e escolha de juízes reacionários ou politiqueiros, como Aras, Kassio etc. Então, a ordem será restaurada com autoridade, politicagem e impunidade.
Preparem-se. Será a "revolução antijudiciarista".
Bolsonaro e Canção Nova, um casamento que de cristão católico tem nada!
Bolsonaro posa para foto com terço mariano, sai dali e vai beijar a mão do Edir Macedo, pastor Everaldo e Silas Malafaia, que são protestantes neopentecostais que vivem falando mal e menosprezando Maria.
Percebem a hipocrisia?!
Bolsonaro é evangélico/protestante neopentecostal, mas por politicagem posa como cristão católico.
Esse é um texto estupendo do Roger Laureano para o Estado da Arte.
É o melhor que li sobre a natureza do laço que une os líderes da neodireita aos seus fiéis. Os usos que faz Roger dos conceitos de carisma e de metanoia são dos mais convincentes. Destaco dois trechos, um do começo e outro do final do ensaio, mas é texto para ser lido na íntegra, porque é um raciocínio que vai se desenrolando, da subida do líder carismático até sua decadência.
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"A diferença entre o profeta e o rei estúpido está nos olhos de quem vê. Em uma situação de dominação carismática, a parte submissa da população não consegue enxergar a nudez do líder. Não se trata de bajulação, vaidade ou medo, como com o rei e seus ministros. A relação afetiva é tão forte que os seguidores passam a ler a realidade a partir da narrativa oficial da seita. Uma divindade é incapaz de mentir, a sua palavra é a verdade, e se a palavra afirma que ele não está nu, então não está. Essa é a verdade santificada. Os seguidores passam por um processo de metanoia em que o líder detém o monopólio da interpretação ideológica dos adeptos. É quase como a conspiração do chip da besta. Mas para não transformarmos isso numa ficção científica gospel, vamos dizer que a versão carismática da metanoia é uma espécie de droga psíquica que distorce a percepção da realidade dos fiéis a partir da palavra do líder. Se no conto de Andersen todos podem enxergar os fatos quando o menino grita que o rei está nu, aqui o pobre e inocente rapaz ouvirá mil impropérios por espalhar falsidades contra o messias. O pai dele deve ser comunista.
(...)
É difícil de manter o poder carismático concentrado em uma única figura por tanto tempo. Há exemplos extraordinários, como o de Jesus Cristo, cujo carisma foi institucionalizado pelas estruturas da Igreja, abraçando milênios. Contudo, a maior parte dos nomes outrora amados se tornaram alvos de revoltas. Eles podem cumprir o seu destino em cartas de suicídio, amarrados pelas tripas ou compulsoriamente aposentados em uma ilha-asilo qualquer. As promessas são muito grandiosas, os profetas se tornam falsos deuses e a divindade passa a ser vista como idolatria. Isso aconteceu mesmo com nomes mais gloriosos e conquistadores do que as suas versões vulgares e preguiçosas que brotaram no Brasil, onde tanto a democracia quanto o despotismo são feitos pela metade. Até mesmo aqueles que foram sepultados sob medo, que ainda ordenavam com os olhos vazios e se faziam ouvir com as bocas cerradas, tiveram as suas memórias reescritas, os seus feitos ressignificados, tornando-se representantes de uma era a ser esquecida. Todo seu carisma foi expelido em seu último suspiro. O tirano tem como seu destino ser a desgraça da história. O projeto de tirano, mais trivial, é a desgrama da década. Mas as boas novas chegam com um alerta. Como sei que pode ser difícil viver por tanto tempo com o fígado no lugar dos tímpanos, antecipo aos infiéis ansiosos que, não importa o quão medíocres os profetas sejam, nem todos constituem apenas um apêndice perfunctório na história do país. A alegria do fim é no máximo uma pequena compensação por alguns anos de resiliência insalubre."
Conviver sem magoar - Fábula de Arthur Shopenhauer
Durante uma era glacial muito remota, quando parte do globo terrestre estava coberto por densas camadas de gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram, indefesos, por não se adaptarem às condições de clima hostil.
Foi então que uma grande manada de porcos-espinhos, numa tentativa de se proteger e sobreviver, começou a se unir, ajuntar-se mais e mais. Assim, cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos, agasalhavam-se mutuamente, aqueciam-se enfrentando por mais tempo aquele inverno tenebroso.
Porém, vida ingrata, os espinhos de cada um começam a ferir os companheiros mais próximos, justamente aqueles que lhes forneciam mais calor vital, questão de vida ou morte.
E afastaram-se, feridos, magoados, sofridos. Dispersaram-se por não suportar mais tempo os espinhos de seus semelhantes.
Doíam muito…
Mas essa não foi a melhor solução. Afastados, separados, logo começaram a morrer.
Os que não morreram voltaram a se aproximar, pouco a pouco, com jeito, com precauções, de tal forma que, unidos, cada qual conservava uma certa distância do outro, mínima, mas o suficiente para conviver sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar nenhum dano recíproco.
Assim suportaram-se resistindo à era glacial. Sobreviveram.