“A economia mainstream abusa da sua posição dominante”. Entrevista com Florence Jany-Catrice e André Orléan

Imagem: Alternatives Économiques

19 Janeiro 2021

Em todas as ciências existe uma corrente dominante e outras contestadoras. Mas na França, na economia, a predominância de uma única maneira de ver as coisas atenta contra a qualidade do debate democrático. Os heterodoxos lutam há dez anos para que seu direito de existência seja reconhecido institucionalmente através da criação de uma nova forma de seleção científica e pluralista dos professores universitários. Em vão.



A entrevista é de Christian Chavagneux, publicada por Alternatives Économiques, 04-01-2021. A tradução é de André Langer.



A uma só voz, Florence Jany-Catrice e André Orléan, respectivamente, presidente e ex-presidente da Associação Francesa de Economia Política (Afep), revisitam as linhas de falha com os economistas tradicionais, a força intelectual da heterodoxia e a necessidade de ação política se quisermos preservar em nosso país a possibilidade de pensar a economia na pluralidade de ideias. Florence Jany-Catrice é professora de economia na Universidade de Lille, pesquisadora do Clersé e autora de L’indice des prix à la consommation, La Découverte, 2019 (O índice de preços ao consumidor).

 

Eis a entrevista.

 

Vocês se opõem à “economia dominante” ou “ortodoxa”. Do que se trata?

Diz respeito à estruturação muito específica do campo da economia que emerge a partir da década de 1980. Até então, a economia parecia o que as ciências sociais sempre são, uma pluralidade de abordagens concorrentes sem que qualquer uma possa reivindicar a hegemonia. Basta abrir um livro dedicado à história do pensamento econômico para perceber isso. Isso é evidenciado, por exemplo, pela riqueza dos debates originada pela revolução keynesiana, seja sobre a natureza da crise, o desemprego ou como sair dela.

Na década de 1980, essa configuração pluralista ruiu: o chamado arcabouço teórico “neoclássico” tornou-se hegemônico, inclusive por integrar certos elementos do pensamento keynesiano. Esta transformação não passou despercebida e vimos, em 1992, 44 prestigiados economistas, incluindo quatro prêmios do Banco da Suécia, publicarem na não menos prestigiada American Economic Review um “Apelo por uma economia pluralista e rigorosa”, preocupando-se com a ameaça de monopólio intelectual que agora paira sobre a ciência econômica:

“Os economistas defendem a livre concorrência, mas não a colocam em prática no mercado das ideias. Nós lançamos, portanto, um apelo por um novo espírito de pluralismo na economia, que abre espaço para discussões críticas e trocas tolerantes entre diferentes abordagens”.

Demais está dizer que eles não foram ouvidos! Constituiu-se em torno da teoria neoclássica uma ortodoxia que empurrou para a marginalidade importantes tradições de pensamento que já foram parte integrante das instituições de pesquisa. Esse movimento de monopolização só cresceu ao longo dos últimos anos. E não tem paralelo em outras ciências sociais.



Vocês podem definir o conteúdo dessa ortodoxia?

Para tentar especificar o pensamento neoclássico, é aconselhável voltar às suas origens, à chamada “revolução marginalista”, da qual conservou as categorias fundamentais, nomeadamente a primazia concedida ao indivíduo e ao mercado: o indivíduo que busca maximizar seu bem-estar e o mercado como aquele pelo qual os desejos individuais são compatibilizados. O conceito de equilíbrio geral proposto por Léon Walras deduz-se daí. Com efeito, é a ferramenta conceitual que permite interrogar a capacidade do mercado de coordenar ou não todas as ações individuais.

Em suma, o indivíduo, o mercado e o equilíbrio constituem o campo de base da corrente majoritária, em inglês o mainstream. Foi capaz de se distanciar muito dela, por exemplo, hoje, por ocasião da sua virada experimental, mas sem jamais romper com ela, pois lhe fornece os elementos essenciais para a sua compreensão do mundo.



Como essa tendência mainstream representa um problema para vocês?

O fato de haver uma tendência dominante não nos incomoda. Está até na ordem das coisas. O problema é o abuso da posição dominante. No caso da disciplina econômica, isso se traduz na produção de padrões acadêmicos aparentemente neutros e imparciais, mas que, na verdade, bloqueiam a carreira e, em última instância, a própria existência de economistas heterodoxos.

Apenas um exemplo. Hoje, na França, um pesquisador de economia é avaliado com base em seus artigos publicados em periódicos científicos, não pela leitura desses artigos, mas pela classificação atribuída ao periódico em que o artigo foi publicado! Em outras palavras, começamos por hierarquizar os periódicos e o valor de um artigo é automaticamente deduzido do valor do periódico.

Claro, este é um método estúpido pela simples razão de que você encontra artigos ruins em bons periódicos e artigos bons em periódicos ruins! Mas é assim que a profissão procede, argumentando que não é possível ler e compreender todos os artigos de todos os pesquisadores. Isso lembra muito a estratégia que consiste em procurar a chave debaixo do poste de luz (1).

Por causa dessa prática extravagante, para o que vale para os postos mais importantes, é necessário ter um artigo publicado nos chamados “top five”, os cinco principais periódicos. Ninguém ficará surpreso ao saber que nenhum desses periódicos aceitaria um artigo heterodoxo.



O que as diferentes formas de heterodoxias trazem de forma tão essencial que é preciso interessar-se por elas para compreender a economia hoje?

Primeiro, vamos sublinhar que você está correto ao usar heterodoxias no plural. Na realidade, existem várias escolas de pensamento que são rejeitadas pela corrente mainstream e seus periódicos.

Existem pelo menos dois aspectos nos quais a abordagem institucionalista é absolutamente essencial para entender a economia hoje. Em primeiro lugar, ela não reduz os atores a uma forma unívoca e redutora de racionalidade, mas parte da ideia de que há uma pluralidade de racionalidades: um consumidor não é um empregado que não é um investidor.

Nessa perspectiva, a compreensão dos comportamentos individuais não deve ser buscada na psicologia dos indivíduos, como a moderna economia experimental tende a fazer, mas na análise precisa das relações sociais em que os indivíduos estão envolvidos.

O pensamento institucionalista considera ainda que os fatos econômicos são fatos sociais: a economia está inserida no social e no político com os quais ela interage constantemente.

Pensemos na moeda. Na base da adesão de uma população a uma moeda, há muito mais que cálculo econômico; há a adesão a um projeto político-social. É assim que a criação do “novo franco” foi acompanhada pela consolidação do regime gaullista em 1958: a sua aceitação foi consequência da adesão a ele. Isso é verdade para todas as principais mudanças de moeda. Considerar a moeda como instrumento facilitador de trocas nos moldes do mainstream não permite entender essa realidade, por mais essencial que seja.

Se olharmos para a teoria pós-keynesiana como regulacionista, uma de suas grandes conquistas é ter alertado para a falácia da teoria da eficiência financeira, que, entretanto, era ultradominante até a crise de 2008.

Enquanto o mainstream em sua totalidade acreditava que a liberalização dos mercados financeiros levaria a uma maior estabilidade financeira, os teóricos heterodoxos, contando com a análise de Keynes e Minsky, mostraram já na década de 1990 que não foi a ponto de a especulação financeira ser fundamentalmente desestabilizadora.



A economia dominante é capaz de evoluir, já existem argumentos a favor ou contra a austeridade, a favor de denunciar as desigualdades, a favor de celebrar ou controlar a globalização ou os paraísos fiscais, etc. Em suma, em muitos assuntos, já há o suficiente para alimentar um debate democrático. Não é nisso que consiste o principal?

Com efeito, e isso é muito bom. Mas isso não encerra a discussão porque, a nosso ver, a teoria dominante permanece limitada pelos limites do quadro teórico a partir do qual ela pensa as transformações.

Tomemos outro exemplo. Quando a economia ortodoxa integra a questão ambiental em seus modelos de tomada de decisão, geralmente o faz com base na monetização dos danos ecológicos. Ela toma então o lado da baixa sustentabilidade, ou seja, uma possibilidade de substituição entre diferentes capitais: como se o crescimento adicional (valorização do capital econômico) permitisse compensar a degradação ambiental atual ou futura.

Raciocinando dessa forma, os resultados das ciências ambientais, que insistem nas irreversibilidades ligadas às mudanças climáticas ou à perda da biodiversidade, por exemplo, são amplamente ignorados. Levá-los a sério torna frágil um simples modelo de retorno ao crescimento.



Existe, na França, uma clara oposição entre ortodoxos e heterodoxos. Por que vocês não conversam mais um com o outro?

O diálogo é difícil por várias razões. A primeira, e mais fundamental, é que, com ou sem razão, os ortodoxos veem os heterodoxos como maus economistas, ou mesmo nem economistas. Obviamente, há exceções a esse desprezo, mas a situação geral é essa.

Vamos dar apenas um exemplo: Michel Aglietta, grande economista heterodoxo. Ele é certamente um dos melhores economistas franceses, como evidenciado por sua participação no Conselho Superior de Finanças Públicas ou sua presença como um especialista no Banque de France e outros órgãos econômicos como o Cépii (Centre d'Études Prospectives et d'Informations Internationales). No entanto, até onde sabemos, se considerarmos as instituições de pesquisa que hoje estruturam a paisagem francesa, como a Toulouse School of Economics (TSE) ou a Paris School of Economics (PSE), ele nunca foi convidado para apresentar seu ponto de vista!

Segunda razão: as críticas que as correntes heterodoxas dirigem ao mainstream baseiam-se em autores e análises em grande parte desconhecidos da corrente ortodoxa. Segue-se um déficit significativo de referências comuns que torna difícil o entendimento mútuo. É como se dois continentes se distanciassem gradativamente, cada um com suas tradições.

Finalmente, a terceira razão, a dissimetria das condições materiais. Hoje, deve haver apenas um punhado de laboratórios heterodoxos e nenhum entre os laboratórios muito grandes que estruturam a pesquisa francesa. Para simplificar, as correntes heterodoxas não importam, institucionalmente falando.

A relação de força é tão desfavorável que permite que o mainstream não tenha que se preocupar conosco de forma alguma.



Vocês dois estiveram no Conselho Nacional das Universidades (CNU), que qualifica os candidatos adequados para então se candidatarem a vagas de professor-pesquisador. Que experiência vocês tiram disso?

O funcionamento da seção 05 em economia é resultado de várias décadas de disfunções vinculadas à existência, herdada da história, de uma “agrégation du superieur” [concurso mais prestigioso de recrutamento de professores do ensino médio ou superior] até o início da década de 2010.

A maioria dos novos professores era então selecionada principalmente por meio dessa via de recrutamento. Com o próprio presidente nomeado decidindo a composição de seu júri, a homofilia tem sido a norma ao longo de várias décadas, com júris sucessivos recrutando quase exclusivamente economistas ortodoxos.

Essas cooptações provocaram um desequilíbrio estrutural e irreversível entre os professores, reduzindo drasticamente o número de heterodoxos.

Hoje não é mais a agregação, mas o Conselho Nacional das Universidades, em seu setor de economia, que é o elo essencial. Ocupamos uma cadeira lá por um mandato (2015-2019) e tivemos a dolorosa experiência de que ortodoxos e heterodoxos são totalmente irreconciliáveis. As duas comunidades foram isoladas uma da outra, com algumas exceções.

Os colegas do CNU se convencem antes mesmo de se debruçar sobre os dossiês: eles nunca discutem as teses dos autores, nem a possibilidade de quadros teóricos plurais, nem as consequências socioeconômicas ou mesmo éticas do trabalho realizado. Não há debates reais, mas principalmente relações de força. É a publicação em periódicos do mainstream que decide.

Se isso tem sido doloroso para nós, é ainda mais doloroso para candidatos sérios e brilhantes que foram (e continuam a ser) reprovados – e não podem se tornar professores.



O que uma nova seção traria?

Como a Afep disse repetidamente na última década, a criação de uma nova seção não é a melhor solução, é a única. É a única solução para evitar a hemorragia dos colegas que, exaustos por essas lutas, às vezes preferem sair e se hospedar em outras disciplinas para poderem fazer suas pesquisas, correndo o risco de deixar o campo aberto a uma expertise econômica não contraditória.

É a única solução para corrigir as gritantes desigualdades pelas quais estamos pagando o preço, inclusive a falta de recursos para avançarmos com calma em nossas pesquisas, pois o que descrevemos na seção 05 é um padrão prático que também é disseminado nos júris de concursos para a obtenção de recursos.

É a única solução que possibilita a reconexão com as condições do pluralismo na academia e no debate público.



Vocês lutam por isso há dez anos, sem sucesso. Não vemos nenhum sinal de que a situação vai mudar. O que fazer enquanto esperam?

Devemos começar lembrando que estávamos muito próximos de obter esta nova seção. Os economistas heterodoxos receberam o apoio de parte da profissão das ciências sociais e de importantes figuras intelectuais estrangeiras.

Também os poderes públicos, sem resolver uma contenda propriamente científica que escapasse ao seu âmbito, foram sensíveis ao argumento político: não é bom que numa democracia desapareça o pluralismo de pontos de vista econômicos. O custo da operação foi avaliado: era zero. Como resultado, um decreto foi assinado pelo ministro para a criação de uma nova seção econômica.

Bastou uma carta de Jean Tirole, então recém-promovido por um prêmio do Banco da Suécia (2014), para desqualificar a legitimidade dos nossos pedidos, não hesitando em considerar a abertura de uma nova seção como forma de promover “o relativismo do conhecimento, antecâmara do obscurantismo”.

Na realidade, o bloqueio final partiu do Palácio do Eliseu, porque todos os ministros ou secretários de Estado do ensino superior que encontramos eram favoráveis a uma mudança que não era revolucionária. Hoje é bem diferente. Os interlocutores que conhecemos são, por sua cultura, totalmente alheios a essas problemáticas.

Segue-se uma situação institucionalmente muito difícil. Só a presença da Afep permite aos heterodoxos manter a esperança. Nossa associação continua a argumentar que a seleção dos pesquisadores pelos periódicos em que seus artigos são publicados não é um método satisfatório; que a hierarquização dos periódicos seja abandonada e que o atual funcionamento da seção 05 do CNU seja revisto.

Com base nas ideias, diríamos que a batalha continua muito aberta. Sempre há – e talvez em maior número – estudantes que gostam de debates propriamente conceituais, que estão em busca de corpos alternativos rigorosos. Deste ponto de vista, a heterodoxia está muito viva. Além disso, não vemos o mainstream assumindo algumas das teses mais classicamente heterodoxas, como a exigência da transdisciplinaridade, a crítica do homo oeconomicus e o gosto pela história?

Da mesma forma, as teses institucionalistas sobre a natureza da moeda, do trabalho assalariado, da crise estrutural e da instabilidade financeira estão muito presentes no debate público.

O futuro é nosso... se nos for permitido viver.

 

Nota.

1. Em 4 de dezembro de 2020, a seção economia e gestão do CNRS anunciou, porém, que estava abandonando “qualquer forma de classificação dos periódicos” em seu campo.

 

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