Se meu cachorro falasse, poderia ser testemunha do acontecido com os Chiquitanos

Paisagem do Borque Chiquitiano | Foto: Fundación para la Conservación del Bosque Chiquitano

15 Dezembro 2020

"Existe um crime de extermínio dos Chiquitanos em curso na fronteira por causa dos interesses do gasoduto, das fazendas que se instalaram na região e os Estados do Brasil e Bolívia são coniventes. A economia boliviana depende desses contratos feitos com o Brasil e não importa que estejam matando o Corixinho, o fato é que negociam o território dos Chiquitanos sem os consultar de forma livre e esclarecida e escravizam seus corpos no trabalho até o esgotamento", escrevem Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, e José Miguel Clemente Clavijo.

 

Eis o artigo.

 

“Oh cristalina fuente
si en esos tus semblantes plateados
formases de repente
los ojos deseados
que tengo en mis entrañas dibujados”
(Cântico Espiritual de São João da Cruz).

 

Para a construção desse texto dois elementos místicos, ambientais, sociais e jurídicos percorrem a intencionalidade dos autores. As águas fazem parte do biológico, do étnico que compõem a diversidade da humanidade águas dos corpos de Ezequiel Pedraza Tosube Lopez, Yona Pedraza Tosube, Arcindo Sumbre García e Pablo Pedraza Choré, águas sagradas que são agora o sangue de Cristo, morto e ressuscitado e que foi derramado no chão pelas balas da GEFRON, ou mesmo contaminado pelo gás da GOB (GasOriente - Bolívia) e GOM (GasOcidente - Mato Grosso). A mesma Pedra-Pedraza como lugar do rochedo de onde sairá (Êxodo 17,6) a fonte de água para o povo do Corixinho beber. No Novo Testamento tem a ver com o sobrenome de Pedro-Pedraza (Mateus 16,13), formas de edificar a Igreja nesta parte da Chiquitania com a devoção a Maria, a Mãe de Jesus conhecida como la Virgen de Cotoca.

 

I. As Águas mais profundas

Ao longo da década 1930, depois da Guerra do Chaco, a Bolívia e o Brasil iniciam novos acordos para estabelecer as fronteiras e a integração energética com base no petróleo e o gás depois da fundação da empresa Yacimientos Petrolíferos y Fiscales de Bolibia (YPFB). No ano 1974, a Bolívia e o Brasil assinam o acordo de Cochabamba para a venda de gás da Bolívia ao Brasil. Em troca, o Brasil forneceria “plantas siderúrgicas e de concreto. No ano 1991 as empresas YPFB e Petróleo Brasileiro S. A. (PETROBRAS) firmaram uma carta de intenções para a compra de gás da Bolívia para exportação ao Brasil atravessando os territórios da Chiquitania.

O conduto Rio São Miguel - São Matías, com 362 km e 18 polegadas de diâmetro, fornece 4 milhões de metros cúbicos por dia sem compressão, mas pode fornecer 8 milhões de metros cúbicos com compressão (com válvulas intermediárias) criando expectativas de investimento na região com gás natural veicular e gás de cozinha (GLP). O gás chega ao Brasil desde são José Chiquitos até são Matias, ali se conecta com o gasoduto do GOM (GasOcidente de Mato Grosso) até a planta UTE Mario Covas (Usina Termoelétrica de Cuiabá) que produz 480 MW fornecendo a de energia elétrica que é 60% da energia demandada pelo Estado de Mato Grosso. Este projeto faz parte do Projeto Energia Integrada Cuiabá (EIC) que tem como Fundo de capital financeiro as empresas: Enron, Shell e Transredes (Petrobras), que é muito maior.

No segundo semestre do ano 1999 foram feitos os acordos entre YPFB e o GOB (Gás Oriente Bolívia) para as obras do gasoduto São Miguel - São Matias com 362 km de comprimento de vala abertos nos territórios Chiquitanos, também da comunidade Corixinho: “Oh cristalina fuente” onde seu João Pedraza Choré e sua esposa Ida, “los ojos deseados que llevo em mis entreñas dibujados”, trabalham duro para abrir a terra seca dos bosques secos, dando-se conta da “vala” do gasoduto São Miguel - São Matias, dia e noite junto de outros homens e mulheres Chiquitanos.

 

 

Porém, neste mesmo dia 13 de agosto de 2020, João Pedraza com os olhos cheios de lágrimas, “los ojos deseados que llevo em mis entreñas dibujados”, teve que abrir o poço para colocar o caixão de seu filho Ezequiel e seus companheiros Yona Pedraza Choré, Pablo e Arcindo, abatidos pelas balas da GEFRON. Ontem a “vala” era para a tubulação do gasoduto GASBOL que vai se transformar mediante a combustão nas usinas termoelétricas (UTA Cuiabá) em luz limpa, que muitos de nós consumimos no Mato Grosso. Hoje, neste ano 2020 da pandemia, com o sangue ainda quente, como as “balas” que foram matar Ezequiel, Yona, Arcindo e Pablo, e o gasoduto, são sinais da impunidade do Gefron do Brasil e da GasOriente da Bolívia, pois trazem a morte para a Comunidade de Corixinho onde vivem as famílias Pedraza, Choré, Tosube, Sumbre etc.

No dia 7/12/2020 fizemos uma viagem para a aldeia San José de la Frontera, um grupo harmonioso e preparado para atuar em diversas frentes, complementando-se para dar conta de trabalhar as dores dessa comunidade Chiquitana. O Padre José Miguel Clemente Clavijo foi intenso e conseguiu entrar na vida das pessoas. A Irmã Néia dirigiu na ida e na volta com segurança e esteve presente como consagrada à Imaculada Conceição. Carmen Flores conseguiu trazer sua sabedoria de avó para estar presente com pessoas chaves e eu somente sabia agradecer a Deus por colocar pessoas tão generosas no nosso caminho, e aqui estou também pensando nos Chiquitanos que nos acolheram maravilhosamente.

 

 (Fotos enviadas pelos autores)

 

Chamou a atenção a memória do cachorro de Ezequiel chamado turco que todos os dias buscava seu dono no local da massacragem e voltava triste para a casa. Já não mais dormia na porta do quarto de Ezequiel, sabendo que não estava lá. Somente depois de 9 dias é que voltou a dormir na porta de seu quarto e não retornou mais ao local da chacinagem. O pai de Ezequiel mencionou: “Se o turco falasse, poderia contar o que aconteceu com meu filho naquele dia!” O casal Juan Pedraza Choré e Ida Tosube Lopez estão unidos nessa luta para elucidar os fatos e amenizar as dores. Por vezes o olhar fica distante e perdido, mas é preciso sempre de novo voltar à realidade e continuar caminhando. Melania Pedraza Choré e seu esposo João Ramiro receberam-nos generosamente com a casa já em clima de Natal e saltenhas deliciosas para o desjejum. Os detalhes todos são valiosos e cada gesto mostrou o grande carinho que nutrem por nós.

 

 Melania ofereceu saltenhas em Cáceres para lembrar o Natal (07/12/2020)

 

A Paróquia de Nossa Senhora de Fátima de Porto Esperidião já tinha deixado na casa de Melania 16 cestas básicas para as famílias enlutadas. As Irmãs Azuis também forneceram 3 cestas para a família de Melania que faz a ponte com San José de la Frontera e recebe as pessoas em sua casa quando passam em Cáceres.

 


Famílias enlutadas recebem doações de cestas básicas em San José de la Frontera (07/12/2020)

 

II. As águas nos olhos abertos, “mirada certa” de Fabiola Pedraza Choré

No início do caminho percorrido até aqui, as águas da fonte do Corixinho (Ex 17, 6) mostravam um sinal da vida ameaçada no meio do bosque seco Chiquitano, como fonte de biodiversidade biológica e genética ancestral, ou seja, devemos preservar mais a humanidade, assim como a sobrevivência das crianças e futuras gerações Chiquitanas, do que os interesses especulador e financeiro das empresas (Enron, Shell, Transredes, Petrobras etc.). Agora, com a morte impune de Yona, esposo de Fabiola, mostra a unidade da “mirada certa” ancestral Chiquitana porque entranhal Mariana, Maria de Cotoca. A visita faz memória viva hoje do Êxodo Chiquitano, onde João Pedraza faz oração junto da mangueira no pátio das casas do núcleo familiar dos Choré, com as mãos estendidas, enquanto luta com argumentos certos ao inquérito Policial (Ex 17,8-12).

 

 

A mirada certa de Fabiola (viúva) junta-se em oração do coração com a defesa da Vida em suas três crianças que lutam pela sobrevivência a cada dia. Yona continua vivo em suas crianças, mas também vive na defesa da justiça na Delegacia Especial de Fronteira, junto com as irmãs e irmãos que arriscam suas vidas na defesa da vida com justiça. Tratam-se de muitas miradas memoriosas e miradas esperançosas juntas, numa só alma que o poeta e orador José Miguel Clemente Clavijo soube expressar:

 

“Bosque seco, amigo te huelo”
Oigo en el silencio de tus pasos
La Chiquitania humilde
El Bosque seco.


Secreta desolación
que el “gas” esconde
en el ímpetu
de hacerse fuego.
Bosque seco.
Mientras tu sangre
Derramada en los senderos
Se seca por la injusticia
guardas tu secreto
Bosque seco.


El perro olfatea sin descanso
Buscando la verdad
de su amigo muerto
Bosque seco.


“Turco”
Danos la verdad de los hechos
Ezequiel, Yona, Arcindo, Pablo
¿Quien resucitara primero?
Bosque seco.

 

III. A justiça humana é limitada

Um dos objetivos é instruir o Inquérito Policial 10006435-74.2020.811.0006 e solicitar a realização de novas providências. Apurar as reais circunstâncias envolvendo a chacinagem no território nacional brasileiro, de quatro indígenas Chiquitanos, de nacionalidade boliviana, em suposto confronto com o Grupo Especial de Fronteira da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, GEFRON é fundamental, pois as famílias pedem auxílio para não deixar no esquecimento o ocorrido e se faça justiça para outros não sofrerem a mesma tragédia. A oitiva de Aloir Pacini em Cáceres, no dia 07/12/20, resultou no documento a seguir:

 

 

 

Os depoimentos das pessoas da Comunidade de San José de la Frontera, antes chamada Corixinho, e região são diametralmente opostos à versão apresentada pelos policiais envolvidos na fatídica operação do dia 11/08/20. [1] Falar Tudo que sabemos não é possível, mas queremos afastar a possibilidade de arquivamento sem que sejam adotadas novas diligências, inclusive a reconstituição dos fatos. Oferecer denúncia dos acusados é necessário para que aconteça a Justina nessa Fronteira.

Antes de irmos dormir, fizemos um ritual em torno da mangueira que está com cerca de 120 anos ali dando frutos e sobra para a comunidade. Um dos galhos quebrou com o vento exatamente dois meses depois do massacre, no dia 11/10/2020, o que serviu de sinal que alguns galhos podem ser arrancados ou cortados, mas a árvore da comunidade continua. Falamos das relações entre as pessoas e como formam uma Comunidade; como José Pedraza Choré e Lucilene Tosube Lopez casaram-se 32 anos atrás, tiveram 8 filhos e muitos morreram no primeiro ano de vida, como Noel Gomes, o curador de San Matías pedia 100 dólares para curar e não tinham quando seu filho Yona ficou doente, mas Melania tinha um colar de prata e deu para o curar; como os homens cortejavam as mulheres antigamente antes de irem aos fatos; como Arcino veio do exército todo garboso e “roubou” a Mayre; como Melania era chamada de bugra pelos meninos que queriam fazer bullyng com ela etc. E todas as histórias acabavam no fatídico dia 11 de agosto de 2020.

 

 A água do amor de Lucilene e José se transformou em vinho (08/12/2020)

 

Os detalhes sempre são iluminadores, a homenagem abaixo que a irmã faz a Yona, aquele que animava a comunidade no futebol, e brincadeiras podem ser encontradas na perna tatuada e outras falas boas dos falecidos, parecem auxiliar a caminhar em tempos de crise.

 

 

 

IV. A Luz que ilumina justiça

A luz da fé se faz presente na vida dessa comunidade dedicada a San José, o esposo de Maria. Justamente no versículo 23 do Cântico Espiritual de São João da Cruz faz uma síntese da abordagem que é ponte entre as águas e a luz nas entranhas de cada ser humano que atinge o mais divino no sacrifício de Jesus na cruz.

Se o campo de futebol não voltou mais a ter um joguinho, as crianças não pararam de brincar e a vida religiosa não pode parar para os Chiquitanos. O dia 08 de dezembro é festa de Nossa Senhora de Cotoca, la Virgen de Cotoca, como dizem. Meyre Pedraza, viúva de uma das vítimas, com a família vem fazendo a festa faz 12 anos para agradecer a vida do seu filho Lucas que passou por problemas sérios de doenças desde o nascimento e hoje está com 19 anos. Meyre Pedraza tomou a palavra na Missa e falou como tudo aconteceu. Muitos, especialmente as crianças queriam se consagrar para ter a Proteção da Virgem de Cotoca como tiveram os Chiquitanos que encontraram o caminho de volta para casa depois que ela apareceu para eles que estavam perdidos na mata e mostrou a direção.

 

 

As águas junto do sangue dos corpos de Ezequiel, Jonas, Arcindo e Pablo foram jogadas no chão onde o cachorro Turco recolhia o cheiro da memória do seu amigo. Cheiro que não deixa-nos tranquilos, mas nos incomoda e vem gestando a possível palavra de denúncia “Se meu cachorro falasse”. A procura da Palavra, ali onde fora calada, esmagada, humilhada, o Turco tenta recolher com seu cheiro e oferecer aos humanos a possibilidade da pronúncia certa da Palavra humanizada, ali onde a comunidade mora, onde sua presença sempre é presença partilhada e pré-Palavra.

Esta pré-Palavra que tenta levantar o “Turco” com o seu cheiro se faz canto junto de João e Ida na festa de Nossa Senhora de Cotoca: “Virgen de Cotoca, portento de LUZ, com fervor te invoca toda Santa Cruz!” Santa Cruz não só é uma cidade da Bolívia ali onde o gasoduto São Miguel - São Matias inicia o seu percurso, mas é essa comunidade Chiquitana que segue na cruz, crucificada até hoje pela tubulação de gás GASBOL e pela “judiação” da Gefron. Luz da verdade buscamos todos, mais do que a luz da termoeletricidade que busca o desenvolvimento cego sem mais palavras.

 


 Lucas fazendo a oração do Pai Nosso (08/12/2020)

 

Conversando com várias pessoas da região que vieram para a festa o relato é unívoco: Vivemos aqui e sabemos, conhecemos as pessoas que foram mortas no dia 11/08, não é verdade que levavam drogas para Cáceres. Não é uma injustiça só contra as pessoas e suas famílias, é contra a comunidade, contra o povo Chiquitano e é internacional que tem a ver também com a invasão do Brasil sobre o território tradicional Chiquitano. Por isso insistem, como falou Dona Antônia Areava: “Merecemos respeitos. A polícia do Gefron se molesta porque todos os dias passo na tranca deles, mas meu esposo está internado em Cáceres! Que vou fazer?”

Andamos pela aldeia San José e observamos o gasoduto que passa na comunidade e coloca todos em perigo. O local onde fazem a limpeza e utilizam a água é a cabeceira do corixinho que, por sinal, está seco. Um dos motivos alegados pela comunidade é que o hitchi do corixinho foi embora porque estão desrespeitando o lugar dele que é sagrado. Os prejuízos causados pelo gasoduto ali são enormes e as indenizações não chegam à comunidade, parece que a prefeita ficou com a maior parte e outros políticos ganham com esses empreendimentos econômicos que não valorizam as pessoas. Fato é que mais uma parte que pertencia aos Chiquitanos da Bolívia nessa comunidade do Corixinho foi tomada pelo Brasil nesse momento das instalações do gasoduto. Uma moradora falou: “Colocaram o marco lá e depois tomaram essa parte do gasoduto. Mudou 3 quilômetros, antes a Divisa era mais prá lá!”

 

Corixinho que nunca secava agora sem água (07/12/2020)

 

Falaram que os militares e a alcaldía foram negociar: “Os brasileiros mais uma vez tomaram uma parte da Bolívia e de nós lá onde está plantado o gasoduto. Fizemos manifestação na época, mas as autoridades de San Matías foram compradas e nós da comunidade Corixinho estamos aqui apertados no meio das propriedades.”

 

 Reunião com o Deputado do Departamento de Santa Cruz de la Sierra (08/12/2020)

 

Fomos também em San Matías em busca do Inquérito Policial que corre por lá ou, ao menos o laudo que os policiais e médicos de lá fizeram para também auxiliar a instruir o inquérito no Brasil. A reunião com o assembleísta, Don Alcides Villagomes da Bolívia com a família enlutada, e a comissão do CIMI ocorreu e tal documento será disponibilizado para as famílias.

 


A comunidade de San José de la Frontera consagrou-se à Virgem de Cotoca (08/12/2020)

 

As cabeceiras do Corixinho ficaram dentro dessa parte do Brasil e o fluxo de água para a comunidade está interrompido nesse momento, causando grande espanto para os moradores que pensam e falam abertamente que o fim dos tempos chegou. “Nunca acabou a água aqui, a lagoa agora secou. O minador do Corixinho ficou agora no Brasil, captam água lá e agora o Corixinho secou!”

 

Carros do GasOriente fazendo a limpeza dos dutos no manancial do Corixinho (08/12/2020)

 

Encontramos a porteira aberta porque os trabalhadores do GasOriente estavam com seus carros mais abaixo fazendo a manutenção e limpeza dos dutos. No fundo do manancial do Corixinho usando a água para isso, por isso os hitchis desse lugar foram embora e o córrego secou. A linha do gasoduto passa dentro da comunidade e vem para uma estação que está no lado da Bolívia e outra no lado do Brasil, cerca de 50 metros de distância um do outro.

 

 GasOriente, lado da Bolívia (08/12/2020)

 

No mapa vemos como o gasoduto GASBOL na interconexão com o gasoduto São Miguel se faz em São José de Chiquitos, uma interconexão é sinal da cruz que expressa como as comunidades estão crucificadas. Porém o gás continua circulando com 34 milhões de metros cúbicos por dia, a quantia que pede o Estado de Mato Grosso e o Brasil todo para o seu desenvolvimento que não considera a natureza envolta em mistérios. A limpeza do duto e da estação de San Matías utiliza a água da cabeceira do Corixinho que, por sinal, está seco. Um dos motivos alegados pela comunidade é que o hitchi do corixinho foi embora porque estão desrespeitando o lugar dele que é sagrado.

 

 

A cruz do povo Chiquitano vem desde os tempos da colônia e da Guerra do Chaco. Hoje se atualiza nas duas formas de “desenvolvimento”, no campo energético e no campo jurídico. Assim os dois países têm suas responsabilidades. A cruz tem em San José de Chiquicos a união dos dois pedaços GASBOL-GEFRON, o G de gás que percorre o território sem respeito para com a água que é prioritária para a vida das comunidades e o G do grupo que esconde-se na escuridão da impunidade e da prepotência legalizado pelas autoridades na fronteira. Como as vezes as palavras dizem mais do que significam, a leitura plana e unívoca não tem lugar neste escrito onde a verdade quer aflorar o “hitchi” do Corixinho quer borbulhar de novo.

 

 

Se, num primeiro momento, a água foi nossa companheira, desde o rio Paraguai até o hitchi do Corixinho, agora as águas nos levam para a luz, como no epígrafe desse texto. Seu João Pedraza Choré e Ida Tosube Lopes, pai e mãe de Ezequiel, 18 anos, tem nas suas entranhas uma grande dor que é impossível calhar nas palavras pronunciadas e aqui descritas com mais dificuldades ainda. Por isso sobem ao céu como povo Chiquitano que geme a Deus por justiça e pela defesa da vida. João e Ida olham para o fundo do Corixinho com olhos cheios de lágrimas mas também cheios de luz, cada vez menos amarga, porque disseram: “Às vezes olho para a Vida e o fim está próximo! Só a Justiça pode nos dar Esperança.” É a luz dos olhos de João e Dida que tornam possível a Esperança porque são “entrañables”.

Justamente o gasodutoRio São Miguel - São Matias” que perpassa as comunidades Chiquitanas leva 4 milhões de metros cúbicos de gás para a Usina Termoelétrica de Cuiabá (UTE) que fornece 480 MW de energia eléctrica que é o 60% da energia que consome o Estado do Mato Grosso e que, aos olhos de todos, é energia limpa. Mas no trajeto percorrido até aqui trouxe morte para o Corixinho e sua água que era fonte de Vida dos humildes dessa comunidade, foi crucificado no caminho, este seria um sinal de alarme e de que o fim está próximo. Não é possível luz limpa desse jeito, seja termoeléctrica, seja hidroelétrica, mesmo a energia solar, sem justiça sócio-ambiental. [2]

 

Usina Termoeléctrica de Cuiabá (UTE) de 480 MW de potência

 

O Posto do Indea e do Gefron ali perto do gasoduto e do manancial que dá origem ao Corixinho está fechado. No lado do Brasil foi feito um assentamento de famílias pelo Incra chamado Corixinho. E as pessoas falam que a Polícia Federal vai assumir a vigilância da fronteira depois do que vem acontecendo ali com a violência do Gefron. Macaúba, um soldado do Gefron, teria falado que não iria passar o pano, que quem pegava iria matar, e isso deixa todos em pânico na comunidade.

 

Cabeceira do Corixinho desmatado e marco da diviza (08/12/2020)

 

Existe um crime de extermínio dos Chiquitanos em curso na fronteira por causa dos interesses do gasoduto, das fazendas que se instalaram na região e os Estados do Brasil e Bolívia são coniventes. A economia boliviana depende desses contratos feitos com o Brasil e não importa que estejam matando o Corixinho, o fato é que negociam o território dos Chiquitanos sem os consultar de forma livre e esclarecida e escravizam seus corpos no trabalho até o esgotamento.

Ao fechar este texto, sempre provisório pensamos novas linhas de pesquisa e engajamento pensando na Comunidade de San José de la Frontera, os jovens Ezequiel Pedraza e Yona Pedraza Choré, com os tios Pablo e Arcindo que falaram com suas famílias que iam buscar a “mistura” para comer com o milho, o arroz ou a mandioca. Já tinham conseguido um tatu e a intenção era caçar outros animais que estavam sendo cevados para comer com suas famílias. Isso, com a licença do dono da Fazenda São Luiz, seu Getúlio Toshiba. Ainda não falamos com ele nem com o gerente e sua esposa, mas as informações dos Chiquitanos é que conhecem as circunstâncias do acontecido. Tendo como pano de fundo a cultura japonesa Nissei em uma família japonesa-brasileira, sabemos que "no princípio era o TAO". O princípio xintoísta foi estudado pelo missionário jesuíta Mateo Ricci: TAO é PALAVRA e a PALAVRA se fez carne e habitou entre nós neste Natal. Ouvir essas pessoas que falam a Palavra da Verdade faz parte do inquérito policial. Com a sensibilidade do cachorro Turco, os fatos serão revelados e nada permanecerá no oculto. Com a coragem para resgatar a Palavra, por mediação de São João da Cruz, nos encontraremos com Sua luz. Amém.

 

Notas:

[1] O áudio constante na reportagem publicada pelo site projetosolos.com, conforme link.

[2] Existe uma Fundação criada pelo acordo empresarial GasOriente da Bolívia e GasOcidente do Brasil que se chama FCBC (Fundación para la conservación del Bosque Chiquitano). Essa Fundação tem reputação ruim nas comunidades Chiquitanas, porque compra as lideranças locais e não distribui de forma justa a contrapartida pelos males que o gasoduto deixa nos seus rastros de destruição. Essa Fundação opõe-se à caça porque não compreende o modo cuidadoso de diálogo respeitoso que os Chiquitanos estabelecem entre os seres da natureza com agências humanizadas.

 

Leia mais