“Con-jugar” o futuro: ecofeministas rumo ao contra-apocalipse

Foto: Garry Knight | Flickr CC

27 Novembro 2020

"Habitamos a vida como certeza, enquanto nos roubam o direito ao futuro. Não obstante, a condição precária nos ensina algo: a necessidade de repensar a vida e o futuro para compreender as formas nas quais se decompõe e as formas nas quais ressurge", escreve Gemma Barricarte, jovem espanhola do movimento Fridays for Future, em artigo publicado por Ctxt, 25-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Requer muita destreza mudar a imaginação do povo para
que desejem algo diferente do que lhes vendem os meios de comunicação
Marge Piercy

 

Tanto Antropoceno como Capitaloceno prestam-se muito rapidamente ao cinismo, ao derrotismo e a profecias autocumpridas e autocomplacentes (...) em que esquemas tecnocráticos e de geoengenharias e o abandono ao desespero parecem coinfectar toda imaginação comum possível
Donna Haraway

 

Com 46% de desemprego entre jovens, a precariedade tornou-se na triste bandeira da minha geração, a da juventude sem futuro. Muitos de nós enfrentamos a promessa de uma vida de problemas-sem-fim. Dependemos de formas institucionalizadas de reconhecimento e infraestruturas que dão apoio a nosso mundo. Quando esses sistemas de atenção se desmantelam e fragmentam, a precariedade arrasa. Esta análise não é nova para ninguém.

 

Esta instabilidade é uma condição do capitalismo millennial neoliberal. Minha geração vive atropeladamente nosso legado político, cultural e econômico: lógicas de individualidade radical, autorresponsabilidade e independência. Este rastro deixou um sujeito feito por si mesmo. Um sujeito com expectativas e desejos de ascensão socioeconômica, onde tudo gira em torno da moral do trabalho; ou, simplesmente, um sujeito que deve pagar um alto preço para se manter sob um teto e poder trabalhar. Assim, o fracasso deste sujeito em seu afã por crescer ou se manter é resultado de suas decisões morais. A precariedade seria assim seu castigo merecido.

 

E nisso consiste a vida millennial: uma soma de esforços diários alinhados com uma necessária melhora progressiva. Pensar-se precário tem um componente de futuro. Não é se pensar em um ponto final, é aquilo para o que alguém trabalho como horizonte de expectativa neste futuro incerto. Porém, este sujeito expectante esqueceu sobre o que se sustenta sua vida. Habitamos a vida como certeza, enquanto nos roubam o direito ao futuro. Não obstante, a condição precária nos ensina algo: a necessidade de repensar a vida e o futuro em outros termos para compreender as formas nas quais se decompõe e as formas nas quais ressurge. A precariedade não é marginal, adquiriu uma dimensão generalizada. E o seguinte matiz é importante: não somente no que é exclusivamente humano.

 

Tudo isso tem raízes profundas. Nestes tempos de crise ecológica se impõe um novo marco de leitura: o Antropoceno. A precariedade da vida transcendeu o humano há tempo, as taxas de extinção massiva são uma prova inegável. Se esquecermos por um momento de nossos julgamentos antropocêntricos, veremos que a precariedade é multiespécies. Uma vida precária não é somente uma vida explorada laboralmente, é uma vida que habita a instabilidade em tudo aquilo que a sustenta. A Terra está se transformando para algo incerto, nossa condição de agente geológico generalizou a precariedade de todas as formas de vida terrestre. Pensar hoje está questão exige integrar o não-humano, ainda há possibilidades para as alianças multiespécies.

 

A rebelião da Terra

Se entrarmos nos anais da História terrestre, encontraremos que há 2,6 bilhões de anos começa a época do Pleistoceno. Nosso primeiro ancestral humano, homo habilis, aparece em cena. Depois de milhares de anos e quatro eras glaciais, chegará um período interglacial: o Holoceno. Foi um intervalo de clima benévolo e estável em que a civilização homo sapiens prosperou, as populações se multiplicaram e floresceram diferentes culturas humanas. Somos seres do Holoceno.

 

O Holoceno considera-se oficialmente finalizado. Tudo aponta a que nos encontramos no Antropoceno. O termo Antropoceno foi idealizado ao final dos anos 1980 pelo ecologista Eugene Stoermer. Mais tarde, no ano 2000, foi popularizado por Paul Crutzen ao propor oficialmente como nova era geológica. A formalização final ainda espera a confirmação da Comissão Internacional de Estratigrafia e da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS). Não obstante, já há abundante literatura a respeito.

 

No polo ideológico oposto, surgem relatos próprios de figuras como Trump, Bolsonaro, Elon Musk, Stephen Hawking, magnatas do Vale do Silício ou figuras da extrema-direita. Junto a esta visão apocalíptica e solucionista, há uma retórica política que mescla alguns princípios do fundamentalismo bíblico. Toma emprestado do mito cristão da redenção onde se oferece uma promessa de emancipação depois de uma viagem de sacrifício. Isto formou parte do caldo de cultivo da extrema-direita. Certas narrativas religiosas podem se encarregar de significado político, e certas formas de utopia social impregnarem-se de espiritualidade religiosa. O apocalipse, nesta sociedade, filha dos mitos judeu-cristãos, implica uma necessária redenção (ou solução). Situados dentro do marco hegemônico do progresso – onde a tecnologia é a grande esperança do devir humano –, a lógica da redenção deriva de uma promessa fácil de salvação tecnológica. A imaginação e as possibilidades de gerar responsabilidade ficam estancadas ali. Nos deixam ver mais além. O apocalipse, talvez, não será a forma que melhor nos ajuda a ler o problema.

 

Seria interessante se fazer a seguinte pergunta: quais são os traços patriarcais por trás dos relatos apocalípticos do Antropoceno? Minha humilde tentativa é um questionamento sobre desde onde se está narrando.

 

 

Observo que, majoritariamente, são homens ocidentais entrados em anos que – a parte de estar executando (ou não) as políticas que condicionam o futuro – estão construindo leituras da realidade. Isso não deveria surpreender a ninguém. Historicamente, as vozes que construíram os relatos foram majoritariamente homens. Sem ir mais longe, quando o Grupo Antropoceno se reuniu pela primeira vez para discutir a necessidade de uma era geológica a identificar como Antropoceno, dos 29 cientistas do grupo de trabalho somente uma era mulher. Há estruturas estruturadas estruturantes. Porém há, também, uma masculinidade hegemônica que contribui à produção simbólica quando pensamos o fim. Este último é central. Os relatos hegemônicos do Antropoceno e da crise ecossocial fundem suas raízes aí.

 

Em resumo, ainda que a priori possa se pensar que os relatos da ciência, ativistas e magnatas da extrema-direita e do Vale do Silício não tem nada a ver, convém revisar se há convergências em seu plano de fundo narrativo e fazer uma reflexão comum. Devemos nos atrever a tecer e experimentar relatos e estratégias. Menos apocalipse masculino, mais contranarrativas ecofeministas. Nem apocalípticos, nem integrados.

 

 

Contra-apocalipse feminista e outras formas de “con-jugar” futuros por vir

 

O movimento ecologista conseguiu compreender de forma abrangente e precisa os problemas da modernidade capitalista. Mas tudo jogou contra ele para estar à altura do desafio. Isso naturalmente causa frustração. De alguma forma, somos apocalípticos por estarmos errados, aspiramos evitar o apocalipse. Mas há uma estratégia psicológica um tanto perversa por trás: o pior cenário nos traria complacência porque tudo seria uma profecia autorrealizável.

 

A história do colapso tem um fundo profundamente vitalista, mas fez da frustração uma estratégia comunicativa. Se em 2000 os cientistas ousaram propor uma mudança tão radical como uma nova era geológica, por que continuamos a insistir em narrativas e imaginários estéreis? Não é hora de fazer um exercício de autoavaliação construtiva? Toda a imaginação que podemos ter é realmente limitada a isso? A coisa é séria e importante o suficiente. Novas histórias e narrativas surgirão, outros pensamentos serão pensados.

 

 

Não há como articular o desejo coletivo sem diversão e brincadeira. O título é uma homenagem a Donna Haraway. “Con-jugar”, no sentido linguístico: misturar, verbalizar, imaginar, pensar e fazer. “Con-jugar” (Com-brincar, em uma tradução do verbo ‘jugar’ para o português) no sentido de brincar-com: promover o desejo, as práticas e o prazer para gerar novos imaginários políticos orientados para esta tarefa de civilização. É nisso que consistiria uma atitude contra-apocalíptica.

 

Existem tantas maneiras quanto cores para percorrer esses caminhos. Algumas vozes estabeleceram seu laboratório em linguística, como Haraway. Sua proposta narrativa é uma forma de investigar e restaurar bairros. Chama-se “Sci-Fi (ficção científica, fabulação especulativa, figuras de cordas, feminismo especulativo, fatos científicos, até agora)”. Ela mesma o pratica como um método. Frequentemente, envolve formas de colaboração entre espécies com sistemas de produção, política e práticas cotidianas. Em última análise, propõe partir de uma questão fundamental: do que depende a vida?

 

 

Anna Tsing, em seu laboratório antropológico, lança luzes contra-apocalípticas sobre nós. "The mushroom at the end of the world” (“O cogumelo no fim do mundo”, em tradução livre) explora as práticas precárias em torno dos cogumelos matsutake por coletores precários nas florestas devastadas do Oregon. A partir de uma situação de abandono, pobreza, precariedade e marginalização, estabelece-se uma sobrevivência colaborativa entre fungos, floresta e coletores. A proposta analítica fundamenta-se justamente em princípios como prazer, ritual, relacionalidade, conflito ou precariedade generalizada. O comércio, as práticas, as andanças pela floresta e as inter-relações que se geram, felizmente restabelecem uma relação coprodutiva que historicamente vimos abandonada: a eco-dependência.

 

 

Bruno Latour soma-se a esta tropa contra-apocalíptica. O quadro de progresso determinou uma flecha do tempo em que ir em frente é desejável, significa “desenvolvimento” e crescimento econômico. É difícil entusiasmar as maiorias com a ideia de retrocesso ou avanço. Para Latour, é necessário propor um terceiro polo fora do quadro do progresso e, assim, redefinir a questão política por excelência: “Que povo formamos, com que cosmologia e em que território?”. Sua proposta implica uma reconstrução narrativa do humano para o terrestre, dos sistemas de produção aos sistemas de geração. Terrestre, Terra e território são conceitos concomitantes em um caminho de exploração para repensar conceitos e lutas em nossos determinados contextos. Existem pessoas profundamente comprometidas com lugares reais.

 

 

Neste denso presente, temos a responsabilidade de fazer o que pudermos. Eu humildemente sugiro algumas ideias, desejando um cultivo mútuo de capacidade de resposta. Imaginemos mundos suficientemente bons onde o suficientemente bom é provisório, imperfeito e conflituoso. Para um prazer na indeterminação. Vamos construir laços com insetos, cogumelos e plantas para nos entendermos afetados pela Terra, seu terror e seu mundanismo. Vamos habitar a incerteza em nossos corpos conflitantes. Trata-se de nos aliarmos, de nos querermos vivos.

 

Leia mais