23 Outubro 2020
Print 1: Senador Arolde de Oliveira receita cloroquina contra Covid, seguindo ao minúsculo.
Print 2: Senador Arolde morre de Covid.
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É legítimo justapor esses prints e é injusta a acusação de que estamos "comemorando" a morte de alguém ao fazê-lo. 99% de nós -- até nós, aqui, de página supostamente "politizada" -- não sabiam quem era o Senador Arolde, o que não é vergonha nenhuma. Ele era um dos incontáveis peões do Centrão, e muito sobre ele eu nunca soube. Nada jamais lhe desejei de ruim.
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Apenas uma cônjuge ele teve, Yvelise de Oliveira, mas CINCO casamentos ele celebrou com partidos políticos: PDS, PFL-DEM, PSD, PSC e PSD de novo.
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A pólis tem, sim, o direito de saber: um Senador da República que ajudou, irresponsavelmente, a campanha de desinformação e morticínio de Bolsonaro morreu, vítima da própria pandemia que ajudou a propagar.
Registrado, então: um Senador da República, de nada menos que um dos três estados mais importantes e influentes da federação, receitou cloroquina, repetiu desinformação, colaborou com o morticínio, e morreu de Covid.
Daqui a alguns meses, com a conjunção de segunda onda de contágios no Brasil, fim do auxílio emergencial, efeitos da sabotagem presidencial contra a vacinação, economia na lona e derrota dos bolsonaristas nas eleições municipais, estará aberta a janela para o impeachment.
É preciso estar atento ao tempo propício, ao kairós. Janela aberta, a gente entra. Será a hora de, apesar da pandemia, sair às ruas com toda a raiva acumulada e forçar o Congresso e o STF a agirem. Já tivemos um precedente importante, em 2019, nas mobilizações pela educação.
Conselhos de Rui Barbosa do além aos jornalistas em tempos bolsonarecos
1. Não transigir com a força, o poder ou o escândalo;
2. Falar dos crimes públicos tanto mais alto, quanto mais graduados sejam;
3. Romper com mão intrépida o sigilo, onde se encovam os vícios cortejados;
4. Trocar todos os cômodos pelos riscos de ser o missionário da verdade, quando em torno dela tropeia, de arco e flecha, na selvagem dança dos aborígenes da república brasileira, a sanha dos nossos civilizados, os barbarizados da política nacional, os autores do retrocesso moral do Brasil.
"Imagino que o sentimento que predomina até entre os mais acerbos críticos desse governo é o de tristeza. Uma tristeza imensa, continental, amazônica. O que fizeram do Brasil! Aquele país tão promissor, que fim levou? Para onde o levaram?"
"Buttocks" e cueca
Luiz Fernando Veríssimo
"O jornal “Guardian”, da Inglaterra, deu a notícia com precisão anatômica: o senador Chico Rodrigues estava com dinheiro entre seus “buttocks”, nádegas. A imprensa brasileira preferiu localizar o inusitado cofre do senador numa vaga “cueca”, que abrange as nádegas mas, desculpe, não vai tão fundo. Ou o “Guardian” tem informantes que ninguém mais tem sobre os hábitos do senador, ou está querendo nos anarquizar — ou precisa explicar seu noticiário exclusivo. Ou então o que deve ser estudado é a opção da imprensa nacional pela cueca em vez dos mais desmoralizantes “buttocks”. Por que escolheram a menos desmoralizante?
Minha interpretação é que com o dinheiro escondido nos fundilhos do senador chegamos a uma espécie de limite de tolerância com nós mesmos. Não nos aguentamos mais. De vexame em vexame, culminando, desculpe, com a história do dinheiro entre os “buttocks” ou na cueca, nos convencemos de que o Brasil não tem mais graça. Não somos mais nem folclóricos, o folclore que nos redimia amargou. Ficamos grotescos, reduzidos às peculiaridades que nos caracterizavam quando éramos simpáticos e hoje só divertem o mundo.
Chargistas e humoristas não receberam ordens para maneirar quando afundam, desculpe, no assunto, claro. Estão apenas fazendo o que fazem muito bem, e dinheiro entre “buttocks” ou na cueca do vice-líder no Senado de um governo que iria acabar com a corrupção é um assunto irresistível demais, e as piadas não acabam. Mas imagino que o sentimento que predomina até entre os mais acerbos críticos desse governo é o de tristeza. Uma tristeza imensa, continental, amazônica. O que fizeram do Brasil! Aquele país tão promissor, que fim levou? Para onde o levaram?
Eu acho que os vexames começaram junto com o governo Bolsonaro, quando o presidente recém-eleito comentou que um dos seus filhos poderia ser o embaixador brasileiro em Washington — e ninguém reagiu. Tínhamos ali uma medida do homem e uma oportunidade de chamá-lo para a realidade, mas ninguém reagiu. Depois ficou tarde e multiplicaram-se os vexames."
O Globo, 22/10/2020.
Enquanto isso...
Editorial de O Estado de São Paulo. Copiei para os não assinantes. Um presidente contra a Saúde
O que Bolsonaro deseja – e assim faz valer – é uma pasta incondicionalmente subserviente a suas idiossincrasias políticas e ideológicas
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
22 de outubro de 2020 | 03h00
Em plena pandemia, o presidente Jair Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde porque eles insistiram em seguir os protocolos profissionais. Os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich recusaram-se a indicar um medicamento contra as evidências científicas e, por isso, tiveram de deixar a pasta. O presidente Bolsonaro queria um ministro da Saúde obediente às suas ordens, mesmo que elas afrontassem a ciência e a medicina. Foi assim que se chegou ao nome de Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde. Tão logo assumiu a pasta, o general de brigada ampliou, em estrita obediência ao arbítrio do chefe, o uso de cloroquina em pacientes com covid-19.
Ontem, o presidente Bolsonaro reiterou que, durante seu mandato, não quer o Ministério da Saúde atuando pela saúde pública. O que ele deseja – e assim faz valer – é uma pasta incondicionalmente subserviente a suas idiossincrasias políticas e ideológicas.
Na terça-feira, em reunião virtual com os 27 governadores, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou a assinatura de um protocolo de intenções para adquirir 46 milhões de doses da vacina Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. Era uma decisão estritamente técnica, em benefício da população. No momento, a Coronavac é a vacina em estágio de testes mais avançado, tendo mostrado, até agora, os melhores índices de segurança. Com um investimento estimado em R$ 1,9 bilhão, a compra até o fim do ano permitiria iniciar a vacinação já em janeiro de 2021.
Na ocasião, Eduardo Pazuello fez questão de esclarecer eventual dúvida ou desconfiança sobre a origem da vacina. Segundo o ministro da Saúde, a “vacina do Butantan será a vacina brasileira”, lembrando que o imunizante, tendo sido desenvolvido na China, será produzido integralmente no Instituto Butantan, em São Paulo.
O anúncio do protocolo para a compra dos 46 milhões de doses era uma excelente notícia para a população. O governo federal, por meio do Ministério da Saúde, dava sua contribuição para pôr fim à pandemia do novo coronavírus. A boa notícia, no entanto, durou pouco. Ontem, o presidente Bolsonaro fez questão de deixar claro que seu governo não trabalha com parâmetros técnicos e que a saúde da população não é prioridade.
Em resposta ao comentário de um jovem numa rede social – “Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor” –, Jair Bolsonaro respondeu que a vacina “não será comprada”. Em outro comentário, o presidente da República voltou a negar publicamente a informação dada pelo ministro da Saúde. Diante do pedido de uma internauta para que Eduardo Pazuello fosse exonerado urgentemente do Ministério da Saúde, porque ele estaria atuando como cabo eleitoral de João Doria, governador de São Paulo, Jair Bolsonaro disse: “Não compraremos a vacina da China”.
Assim, Eduardo Pazuello tornou-se, num período de seis meses, o terceiro ministro da Saúde a ser desmentido publicamente pelo presidente Bolsonaro, simplesmente por agir de forma coerente com o interesse público e as evidências médicas. Por respeito ao seu nome e, muito especialmente, por zelo com a saúde da população, era o caso de o general de brigada pedir as contas, assim como fizeram Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.
No entanto, não foi o que se viu até aqui. Logo após os dois comentários do presidente Bolsonaro, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, disse que “houve interpretação equivocada da fala do ministro da Saúde” sobre a compra de doses da Coronavac e que a pasta não firmou “qualquer compromisso com o governo do Estado de São Paulo ou com o seu governador no sentido de aquisições de vacinas contra a covid”.
Mas o presidente Bolsonaro voltou a desmentir ontem mesmo o Ministério da Saúde, dizendo que mandou “cancelar” o protocolo de intenções assinado na terça-feira. “Presidente sou eu”, disse, como se a loucura de impedir o trabalho do Ministério da Saúde pudesse ter alguma similaridade com o exercício da autoridade. É a ignorância que se faz arbítrio.
Não se trata da vacina, mas sim de 2022
É claro que ele sabia da reunião do ministro da Saúde com os governadores, até porque o ministro que lá está (sem conhecimento técnico) não faz nada antes de comunicar o chefe. Bastou JD capitalizar politicamente a vacina, o que ele vem fazendo desde o início da pandemia, para que o inquilino do Planalto desautorizasse o ministro da Saúde. Com isso, o "gênio" da política conseguiu arrumar briga com governadores, secretários de saúde e com a China (maior parceiro comercial do Brasil). Qual a sua maior preocupação? Não ter alguém como JD para concorrer com ele em 2022.
O que será possível ocorrer é o STF entrar na briga mais uma vez para garantir que a vacina Sinovac/Instituto Butantan seja incorporada ao PNI depois que a ANVISA homologar a vacina que, pelo que consta, é uma das mais promissoras até o momento.
No mais, ninguém avisou o JB, que dorme e acorda pensando em 2022, que a vacina da AstraZeneca/Oxford também será produzida na China e uma das principais pesquisadoras da vacina é a brasileira Daniela Ferreira, formada pelo Instituto Butantan.
A sociedades contemporâneas concedem a um subgrupo de cidadãos uma prerrogativa muito especial: o monopólio da capacidade de fazer a guerra.
Isso é algo tão perigoso, que se torna imperioso dotar esse grupo de alta capacidade intelectual e moral, para que ele compreenda claramente a sua missão, respeite as demais instituições e pratique a necessária autocontenção do uso da força.
Sem isso, Forças Armadas degeneram em milícias.
Em sociedades sadias, honra e lealdade são valores inerentes à carreira militar.
Custo a crer que o general Pazuello aceitará tornar-se uma figura caricata – como seu colega Augusto Heleno –, permanecendo no cargo de ministro da Saúde.
Onde dormirão os pobres ??
O que mais me espanta nas reações conservadoras e críticas que estão sendo feitas à fala do Papa, sobre as uniões civis, é a justificativa para seguir com o preconceito, com a intolerância, com a fobia para outros e outras, num fechamento que não condiz com a exigência do Evangelho, cuja essência é amor. Se agarram a lei, como os fariseus, mas não conseguem ver a realidade que está à frente. Trazem documentos, tentam justificar o que ele disse e não disse, mas não conseguem ver a pessoa. Uma Igreja em saída, como Francisco quer, necessita sair destas amarras que a estacionam no tempo e a aprisionam no espaço.
"Pródigo em humanistas profissionais, o Rio de Janeiro é também o berço de uma certa historiografia que exalta o violento capoeira do século passado como herói de uma resistência popular: é a pátria dessa classe álacre de artistas e intelectuais que estetizaram o malandro como emblema da cultura urbana carioca: a navalha no bolso, o sapato bicolor de bico fino, a camisa listrada, o terno branco de linho, a calça de boca estreita, a roda de samba, a rasteira no cidadão, o desdém pelo trabalho e pelo trabalhador 'otário'; a cidade é o solo em que germinou uma cinematografia predecessora em anos da 'estética da superfície' – a estética da MTV – com sua oca versão romântica do bandido Lúcio Flávio (passageiro de qual agonia? da agonia de quem?). É essa a tradição que ainda hoje inspira boa parte da produção cultural da cidade, que eleva à categoria de valor o comportamento do 'escracho' e da incivilidade; é a tradição que entronizou a 'lei de Gérson', com jurisdição cotidiana e que aproxima autoridades de bicheiros, bicheiros de sambistas e todos eles da constelação de alegres celebridades locais – e como brilham! – que abarrota os camarotes de luxo na Marquês de Sapucaí.
O traficante de drogas é o produto típico desse caldo de cultura: trocou o sapato bicolor pelo tênis Reebok, a calça de boca estreita pelo jeans importado, o paletó pela camisa pólo com estampado dernier cri, a navalha pelo AK-47. É o malandro pós-moderno, que não crê em representações e que levou a serio a cultura que o criou: de emblemática figura a dono e déspota do pedaço. Ele mata, tortura, intimida e aterroriza. O corpo que as adolescentes de Piedade velam na foto foi arrastado por toda a extensão do Morro da Caixa D’Água até o asfalto; já na rua, os três traficantes, armados com fuzil e duas pistolas e:
'sem demonstrar temor, interromperam o trânsito na rua Clarimundo de Melo, para que o corpo fosse arrastado até a calçada do outro lado da via, e o abandonaram próximo à esquina com a rua Palma. O despacho macabro assustou motoristas e pedestres que passavam pelo local no momento da desova. Minutos depois, todas as casas comerciais fecharam as portas e os moradores entraram para suas casas.'
Seria demasiado simples condensar no traficante a historicidade da pobreza e da misérias dos morros cariocas e transformar o tráfico de drogas numa outra versão da desgastada 'estratégia de sobrevivência' das classes populares. Seria confortável acomodar e mascarar nesse clichê sociológico a natureza blasé de nossa culta e sofisticada consciência social. Mas isso não funciona. Escadinha não era pobre nem miserável, o Dênis da Rocinha não veio de família destituída e nem o Marcinho VP, do Morro Santa Marta, jamais soube o que é fome ou frio. Os grandes chefes do tráfico nem de longe representam o conceito quase mítico das “classes perigosas”. De fato, 'traficante' tornou-se outra das generalidades em curso entre os bem-pensantes, uma abstração, um mero conceito, um tipo ideal weberiano, uma 'pessoa estatística', para usar a expressão de Mark Seltzer em seu estudo do serial killer americano. A sociologização do traficante, a produção desse clichê tornou-se o nosso modo de reconhecer a qualidade violenta da cultura carioca mas, simultaneamente, o modo de negá-la em sua manifestação mais sensível e dolorosa.
Não se trata aqui tão-somente da impotência de uma certa linguagem para expressar uma determinada consciência, mas sobretudo de que o uso exclusivo e abusivo dessa linguagem denota um tipo particular de crueldade que Richard Rorty chamou de incuriosity: a cegueira de certos tipos de indivíduos à dor e ao sofrimento de outras pessoas."
Edmundo Campos Coelho, "Anestesia local: um sociólogo na oficina do diabo" [1999] In: A oficina do diabo e outros estudos sobre criminalidade, 2005, pp. 425-428.
Não, amigos, eu não quero que o meu filho seja "obediente". Não quero que ele siga ordens sem questionar, nem que ele se submeta imediatamente à autoridade, qualquer que seja ela.
Não quero que o meu filho aja como a maioria dos indivíduos retratados na experiência de Stanley Milgram - indivíduos dispostos a obedecer ainda que para isso tivessem que anular a consciência. Não desejo que ele possa se tornar um homem banal, um Adolf Eichmann, cumprindo o seu dever eficiente e acriticamente, esperando no fim receber um afago do chefe. Prefiro que ele seja um August Landmesser: insubmisso, questionador, irônico, mesmo que assim corra todos os riscos. (Há coisas mais importantes que a própria vida.)
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Muita gente confunde obediência com ética, como se a pessoa mais submissa fosse dotada de um padrão ético mais alto.
Nada mais distante da realidade.
Como mostra o relatório da experiência de Milgram, é preciso manter um padrão ético excepcionalmente elevado para ser capaz de desobedecer a uma ordem de um superior.
É para isso que eu educo o meu filho: eu educo para uma vida ética, eu educo para a desobediência.