Centenário teológico. Artigo de Gianfranco Ravasi

Karl Barth

03 Setembro 2019

Karl Barth. Em 1919, foi publicado em BernaDer Römerbrief”, o comentário de Barth sobre a obra-prima do apóstolo Paulo, a “Carta aos Romanos”. Uma exegese bíblica atualizada e estrondosa. Se "aquele que não lembra não vive", como dizia Giorgio Pasquali há quase cem anos em seu ensaio Filologia e storia (1920), é necessário às vezes voltar para trás não apenas com a nostalgia proustiana do tempo perdido, mas também com a atitude típica da cultura judaico-cristã. Para esta, de fato, o "memorial" é um ato eficiente com que nos apropriamos do passado revivendo-o e projetando-o em direção a expectativas futuras.

O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 01-08-209. A tradução é de Luisa Rabolini.

É o caso da Páscoa judaica que, na Hagadá, ou seja, na narração do evento antigo da libertação da opressão egípcia, repropõe na atualidade da ceia pascoal o ato salvífico divino.

É também o caso da Eucaristia cristã que reapresenta "sacramentalmente", isto é, efetivamente, o corpo de Cristo que se sacrifica pelo compartilhamento e redenção de nossa humanidade.

Karl Barth, L’epistola ai Romani
Feltrinelli
Milão 2002 (última edição)

Vamos novamente explicar, então, essa nobre categoria, em um tempo de esquecimento, de acordo com uma forma mais modesta, mas ainda significativa, remetendo a um centenário que também afetou a cultura ocidental. De fato, era 1919 quando em Berna apareceu meio em surdina Der Römerbrief, um comentário sobre a Carta aos Romanos, a obra-prima teológica do apóstolo Paulo. Foi escrito por um jovem pastor protestante (33 anos) da cidadezinha de Safenwil, no cantão suíço setentrional de Aargau. O efeito dessa obra foi bem representado pelo próprio autor através de uma mini-parábola.

Numa noite escura, um homem está subindo a escada íngreme de uma torre do sino; tropeça em um degrau e espontaneamente se segura a uma corda presa a um sino. Eis que o silêncio noturno é quebrado por um som poderoso que se espalha por todo o vilarejo e pelo vale, despertando e alarmando os habitantes adormecidos. De fato, aquele pastor de uma comunidade de lenhadores, Karl Barth, acabou sendo imediatamente convocado pela prestigiada universidade alemã de Göttingen, que lhe ofereceu uma cátedra. A partir daí, nos anos seguintes, ele se mudará para Münster e depois para Bonn, onde acabará sendo destituído da universidade por causa de sua firme oposição ao nazismo, que o forçará a buscar abrigo na sua Suíça, retomando o ensino em Basileia, onde morrerá em 1968 aos 82 anos de idade.

Por que esse comentário bíblico foi tão estrondoso? Existem muitas razões, a partir de sua superação da exegese meramente crítica-histórica para propor uma leitura mais atualizada e vital do texto paulino. O Deus do apóstolo é das ganz andere, um "totalmente outro" em relação a nós e a nossas categorias religiosas, metafísicas e históricas. Entre nós e Deus existe uma Todeslinie, uma "linha de morte" que só pode ser atravessada por uma ponte que tenha uma base, sim, terrena, mas que seja capaz de chegar à transcendência.

Obviamente, essa ponte - além dos vãos esforços humanos para erguê-la do nosso lado - só pode ser lançada para o nosso lado vinda da outra extremidade, aquela divina. Somente Cristo, que é ao mesmo tempo Filho de Deus e homem histórico, com a ponte da Encarnação e da ressurreição, consegue fazer irrupção no antigo mundo da "carne", isto é, do limite e do pecado humano para redimi-lo. A autossalvação do homem através da ética, da racionalidade ou do culto é como querer se puxar para fora da areia movediça continuando a levantar as mãos para o alto, com o resultado de afundar cada vez mais fundo no abismo. É somente quando nos deixamos segurar, através da fé, pela mão de Deus oferecida em Cristo, que somos retirados do lodo de nossos pecados e da lama da ilusória autossuficiência proposta pela religião e pela moral.

A é, portanto, confiar-se ao Outro transcendente, que te exorta a te jogar no vazio (Hohlraum) daquela "linha de morte" para ser atraído e conduzido ao outro lado da salvação e da nova humanidade.

Karl Barth, Come sono cambiato. Autobiografia 
Editado por Fulvio Ferrario
Claudiana, Turim, p.123, € 12,50

No primeiro comentário de 1919, Barth trabalharia longamente a ponto de confessar no prefácio da segunda edição, publicada em 1922 em Munique, que da primeira redação "não havia ficado pedra sobre pedra". É significativo notar que essa reedição foi traduzida para o italiano em 1962, quarenta anos depois, por uma editora "laica" como a Feltrinelli, também porque Barth estava rotulado entre os pensadores do existencialismo alemão. Uma catalogação bastante superficial, como Luigi Pareyson observará com lucidez, pronta a ressaltar o teocentrismo, aliás, a concentração cristológica da obra, distante portanto do antropocentrismo, ainda que crítico do existencialismo, que, no entanto, Barth refletia parcialmente na visão da impotência salvífica da criatura humana pecadora.

Naturalmente, o pensamento do teólogo suíço teria um grande florescimento nos anos seguintes à sua pesquisa. A ele, de fato, podemos - com as devidas distinções e diferenças - atribuir o projeto de uma Summa theologiae do XX século, à maneira do não tão amado Tomás de Aquino, cuja tese da "analogia" como ponte para se conectar com Deus foi por Barth considerada "diabólica". Trata-se da Dogmática eclesial, algo como 13 volumes (aos quais soma-se outro de índices), distribuídos em 9185 páginas muito densas, com um trabalho que durou 35 anos, de 1932 a 1967, até o limiar da morte. É uma arquitetura teológica grandiosa que ele – denominando-a de "eclesial" (kirchliche) - queria considerar como expressão não da doutrina de uma escola de teologia, mas como anúncio de toda a Igreja.

É evidente que não podemos delinear o layout desse arcabouço, não apenas teológico, mas também o cultural que colocou Barth também nos manuais de filosofia e história do século XX, ao lado de seu colega "dialético" Rudolph Bultmann.

Gostaríamos por fim de nos referir à sua conhecida paixão, aquela musical, especialmente por Mozart. Portanto, somos tentados a concluir com uma famosa passagem de sua Carta ao músico de 1956, publicada em italiano sob o título Wolfgang Amadeus Mozart, pela Queriniana, em 1980: "Talvez os anjos, quando estão empenhados em dar glória a Deus, toquem a música de Bach, mas não tenho certeza. Estou certo, porém, de que, quando estão entre eles, tocam Mozart, e então até mesmo o Senhor tem prazer em ouvi-los”.

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