Inteligência tática das religiões

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17 Outubro 2017

A erradicação de religiões indígenas e importadas da qual foi responsável o regime de Mao, com a destruição de lugares sagrados e perseguições a fiéis, foi, devido às dimensões da China e de seu povo, a maior e mais radical tentativa de impor teses e práticas materialistas em um inteiro País.

O comentário é de Ermanno Bencivenga, publicado por Il Sole 24 Ore, 15-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini

Com o desvanecimento da utopia delirante daquele período, que provocou dezenas de milhões de mortes (além de ridículos entusiasmos coletivos no Ocidente), um regime ainda totalitário incentivou um materialismo diferente, baseado na onipotência do mercado, em uma nova casta de nababos e em um consumismo levado ao extremo. No entanto, diz Ian Johnson em seu livro The Souls of China, isso não resultou na extinção das religiões na China. Muito pelo contrário: após ter desesperadamente resistido nos trágicos anos do Grande Salto para Frente e da Revolução Cultural, refloresceram sob novos patrões, graças à ambígua tolerância destes últimos. Hoje as pessoas ligadas a alguma fé são cerca de meio bilhão: budistas e taoístas, é claro, mas com um discreto percentual (60-70 milhões) dos cristãos, predominantemente protestantes (os católicos, que menos se integram nos costumes locais, por serem subordinados à hierarquia do Vaticano, são apenas uma dezena milhões).

 

Johnson é um jornalista canadense que escreve para o "New York Times", viveu muito tempo na China, ensina em Pequim e ganhou o Prêmio Pulitzer em 2001 por seu trabalho como repórter naquela nação. O seu livro mostra ao mesmo tempo um conhecimento apurado da história e da política chinesa, das quais muitas vezes apresenta lúcidos relatórios e instrutivas sínteses, e a cotidiana, íntima familiaridade com uma grande variedade de protagonistas desse renascimento religioso, que afunda suas raízes no passado, mas é também animado por uma irresistível vitalidade. Existem membros das associações para os peregrinos, que oferecem chá (em serviços de porcelana) e alimento a milhões de visitantes que anualmente frequentam as dezenas de milhares de templos espalhados por toda parte, e fazem isso gratuitamente, investindo enormes quantidades de seu próprio tempo e dinheiro. Há grupos familiares que há gerações administram os funerais: decoram o caixão e o ambiente, rezam e executam cantos rituais, escolhem o lugar certo para o túmulo. Há os pregadores calvinistas que se esforçam para conciliar o calendário cristão com o lunar, seguido por seu público e para transmitir bastante familiarização com o grego dos evangelhos a ponto de compreender o significado de ágape.

Falei de uma ambígua tolerância por parte do governo. Oficialmente, a sua ideologia é ateia e contrária a toda forma de transcendência; mas os líderes que se sucederam após a morte de Mao, em 1976, e principalmente após o massacre da Praça Tienanmen, em 1989, entenderam e tentaram tirar proveito do papel que a religião pode desempenhar na promoção da paz e da coesão social. Por um lado avocaram para si a gestão dos assuntos de fé: com o chamado Documento 19, intitulado "Perspectiva e linha política fundamental sobre a questão da religião durante o período socialista”, o Estado reconheceu cinco religiões (budismo, taoísmo, islamismo, protestantismo e catolicismo) e as estruturou em organizações que lhe respondem diretamente. Por outro lado, fecha benevolente um olho sobre as minorias que se formam espontaneamente, fora dessa camisa de força: a polícia as monitora, mas se não manifestam opiniões abertamente subversivas, não intervém. Isso deu origem a uma complexa manipulação recíproca: o Estado está ciente do potencial revolucionário contido nas crenças religiosas e os crentes estão cientes do potencial destrutivo à disposição do Estado, mas cada um aproveita com habilidade os pontos fracos do outro para promover os seus propósitos. No abrigo da condescendência do governo, as várias igrejas continuam a crescer e defender os ideais contrários aos do governo; drenando o descontentamento geral em cerimônias e sermões, no final das contas, inofensivas, o governo consolida a sua sobrevivência.

Além dos malabarismos e oportunismos da politicagem, sobra uma consideração crucial. Enquanto o materialismo comunista já teve seu momento, o consumista domina o planeta, deixando para trás centenas de milhões de vítimas: quem sofre de depressão, os viciados em drogas de todo tipo, os migrantes em fuga da exploração selvagem dos recursos. Em meio do imenso desastre desta época, fatores que são regularmente invocadas como instrumentos de salvação são espiritualidade e tradição. Mas o consumismo não tem condições de preencher esse espaço, nem mesmo está interessado em fazê-lo: só sabe nos oferecer anúncios brilhantes e celebridades da expressão tola. Já que a natureza abomina o vazio, não é de admirar que, no espaço deixado livre, as religiões programaram um vigoroso retorno? Eu, como ateu convicto, só posso ficar admirado por sua (na maior parte, inconsciente) inteligência tática.

Livro: The Souls of China: The Return of Religion after Mao

Autor: Ian Johnson

Editora: Pantheon Books, New York, p. x + 455,

Valor: US $ 30

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