O "sim" da Igreja à cremação: cai um tabu. Artigo de Massimo Introvigne

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26 Outubro 2016

"A nova instrução vaticana sobre a cremação mostra que esse tabu também foi superado entre os católicos e até mesmo na Itália, e que a Igreja do Papa Francisco, ao mesmo tempo, compreende e se interroga com alguma preocupação sobre a nova relação que os nossos contemporâneos mantêm com a morte."

A opinião é do sociólogo italiano Massimo Introvigne, fundador e diretor do Centro de Estudos sobre as Novas Religiões (Cesnur), em artigo publicado no jornal Il Mattino, 22-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A escolha pela cremação é cada vez mais comum, mesmo entre os católicos praticantes. É um desenvolvimento surpreendente, considerando-se que, a partir do Renascimento, a cremação era uma escolha polêmica em relação à Igreja, praticada principalmente por anticlericais, uma espécie de proclamação ao mundo de que o falecido não acreditava na doutrina católica segundo a qual os corpos também ressurgiam no fim do mundo.

Mas não estamos mais nos tempos em que a cremação havia se tornado a bandeira de uma certa maçonaria particularmente anticlerical. Na verdade, já desde 1963, com o Papa Paulo VI, a Igreja permitiu aos seus fiéis a escolha pela cremação.

Agora, a Santa Sé divulgou, nesta terça-feira, uma instrução da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a cremação e a conservação das cinzas. Por que a Igreja permite hoje a cremação? E por que se torna necessário um novo documento?

Acima de tudo, é preciso especificar que, na tradição católica, a cremação nem sempre foi proibida. Ela era comum nas epidemias e em caso de calamidades naturais e de guerras, e isso desde o início da Idade Média até a era napoleônica. Portanto, é evidente que a Igreja não via contradições entre a cremação e a doutrina da ressurreição dos corpos no fim do mundo.

Os teólogos sempre explicaram que o corpo que vai ressurgir será algo qualitativamente diferente do corpo mortal, embora mantendo o mesmo vínculo único com a alma e com essa pessoa específica, e que Deus não precisa dos nossos pobres restos mortais para o milagre da ressurreição. Se assim não fosse, aqueles que morreram em um incêndio ou em uma explosão que deixou pouco ou nada do seu corpo estaria excluído da ressurreição final, o que, para um católico, é teologicamente absurdo.

No século XIX, porém, especialmente por obra de certos setores da maçonaria da Europa continental, a cremação foi divulgada como uma bandeira do anticatolicismo. A substancial investigação "A morte laica", publicada em 1998 e editada, com outros, por Fulvio Conti e Augusto Comba, mostrou o estreitíssimo vínculo entre cremação e anticlericalismo na Itália do século XIX e até as primeiras décadas do século XX.

A própria inauguração dos crematórios nos cemitérios italianos muitas vezes era uma cerimônia pública com um específico conteúdo anticlerical. É por essa razão que a Igreja, que também tinha aceitado a cremação nos séculos anteriores, acabou proibindo-a no século XIX. Mas, no norte da Europa ou nos Estados Unidos, a cremação nunca teve um significado anticristão ou anticlerical. E também na Itália o anticlericalismo, embora não tendo desaparecido completamente, assumiu perfis diferentes e atenuados no século XX.

Assim, chegamos à liberação da cremação por parte de Paulo VI em 1963. Mas tudo isso não aconteceu sem problemas. Sociólogos como Rodney Stark observaram que, independentemente de qualquer problema teológico, o desaparecimento de características distintivas do catolicismo, como a rejeição da cremação ou a abstenção da carne nas sextas-feiras, eliminou um sinal da diversidade católica em relação às tantas comunidades protestantes que tornava a Igreja Católica imediatamente reconhecível e, para alguns, atraente.

Em países onde a cremação não era comum, os católicos que a escolheram, depois, tomaram emprestadas outras práticas, como a conservação das cinzas em casa ou a sua dispersão no mar ou em outros lugares, que, por mais poéticas que sejam, correm o risco de minar o tradicional sentido cristão da distinção entre a esfera dos vivos e a dos mortos, e da veneração e da oração como atitude própria em relação à segunda.

No fundo, há questões muito mais complexas sobre o sentido da morte e da relação com os mortos que muda de formas não previstas e, muitas vezes, não aceitáveis para a Igreja. Voltam, especialmente entre os jovens, formas de espiritismo, e as pesquisas sociológicas mostram que muitos católicos aceitam a doutrina da reencarnação, que a Igreja considera incompatível com o catolicismo.

Assim, bispos de diversos países pediram que Roma reiterasse que a cremação é permitida aos católicos – embora o enterro continue sendo uma escolha tradicional carregada de significados específicos, que deve ser encorajada –, mas as cinzas, depois, devem ser depositadas em um cemitério ou sacrário, não conservadas em casa nem dispersas.

Veremos em breve que normas a Santa Sé considerará em prescrever. Porém, a seu modo, o episódio mostra que o tabu da cremação também foi superado entre os católicos e até mesmo na Itália, e que a Igreja do Papa Francisco, ao mesmo tempo, compreende e se interroga com alguma preocupação sobre a nova relação que os nossos contemporâneos mantêm com a morte.

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