Sodalício de Vida Cristã. Vaticano levou anos para agir em caso de acusação de abuso, diz presidente do tribunal eclesiástico peruano

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03 Junho 2016

Um documento obtido pela Crux, relacionado a acusações de abusos sexuais e outras formas de abuso contra o fundador de um poderoso movimento leigo católico no Peru, sugere que o Vaticano foi informado das acusações já em Maio de 2011, mas, essencialmente, não tomou nenhuma ação por quatro anos.

A reportagem é de Austen Ivereigh, publicada por Crux, 02-06-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Uma carta de 17 de maio de 2016, dirigida aos bispos do Peru pelo chefe do principal tribunal eclesiástico do país enumera várias medidas tomadas para informar Roma de acusações contra Luis Fernando Figari, fundador do Sodalício de Vida Cristã (em Latim, Sodalitium Christianae Vitae ou SCV), e expressa a crescente frustração com a falta de resposta.

Em abril de 2015, o Vaticano finalmente designou um visitante local para investigar as acusações e no início do mês passado Roma nomeou o arcebispo norte-americano Joseph Tobin, de Indianápolis, que atuou no Vaticano, como o delegado para conduzir um processo de reestruturação.

Em resposta a um pedido para comentar o assunto, o porta-voz do Vaticano, Padre Federico Lombardi, disse que o atraso foi devido à "complexidade e diversidade de posições e interpretações" sobre as acusações contra Figari, bem como questões legais.

A carta de 17 de maio do Padre Víctor Huapaya, presidente do principal tribunal da Igreja em Lima, capital do Peru, mostra que o tribunal rapidamente encaminhou três queixas de vítimas de Figari em 2011 para os dirigentes romanos, bem como uma quarta em 2013.

As queixas foram enviadas por Huapaya à Congregação do Vaticano para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica em Roma, conhecido em Inglês por seu título abreviado: "Congregação dos Religiosos."

A congregação tem responsabilidade direta pelo SCV, que, como um Instituto Internacional da Vida Consagrada não está sujeito à autoridade dos bispos peruanos locais, mas responde diretamente a Roma.

A carta também mostra claramente uma irritação crescente de Huapaya ao longo de quatro anos pela falta de resposta da congregação, levantando questões sobre a capacidade do Vaticano de enfrentar o problema.

No início de maio deste ano, foi dito ao SCV - conhecido como o "Sodalício" no Peru - que não pode tomar decisões sem a aprovação do Vaticano, e seu fundador, Figari, foi transferido de seu sofisticado apartamento no centro de Roma, fornecido pelo Sodalitium.

A declaração da SCV não deu detalhes sobre para onde Figari foi transferido, somente que seria um "lugar mais isolado, de acordo com os requisitos solicitados pela Santa Sé, a fim de prosseguir suas investigações".

Parece que é um quarto em uma casa administrada por uma ordem religiosa, nos arredores de Roma.

Até agora, Figari não foi nem julgado nem condenado, seja por autoridades civis no Peru ou pelos próprios tribunais da Igreja.

O SCV, que inclui mulheres leigas consagradas, assim como padres, é governado por um grupo de leigos celibatários conhecidos como "sodálites". Detentor do reconhecimento papal desde 1997, tem cerca de 20.000 membros hoje na Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, Estados Unidos e Itália, além de Peru.

Conhecido por sua ortodoxia, disciplina e zelo evangelizador, o grupo percorre escolas e instituições de caridade reconhecidas, mas é visto por seus críticos como uma reação católica de classe alta contra o catolicismo mais orientado para a justiça social na América Latina após o Concílio Vaticano II (1962-65).

O escândalo envolvendo Figari veio a público no Peru em outubro do ano passado, quando um jornalista do jornal diário de Lima La República, que também é um ex-membro do SCV, publicou um livro contendo testemunhos bombásticos de cinco ex-membros do Sodalício que optaram por permanecer anônimos.

Metade monges, metade soldados, que o jornalista Pedro Salinas escreveu em conjunto com Paola Ugaz, documentou abusos físicos e sexuais, às vezes de menores, ao longo de muitos anos, principalmente na década de 1970, perpetrado por um núcleo interno de membros consagrados do sexo masculino que servilmente seguiam Figari.

No início de abril deste ano, o superior geral do SCV, Alessandro Moroni, finalmente, admitu o abuso, pediu perdão às vítimas e repudiou publicamente Figari.

Autoridades judiciais peruanas começaram a investigar as alegações em dezembro do ano passado, mas porque as vítimas não quiseram ser identificadas, tiveram de deixar o caso.

De acordo com Salinas, as vítimas temiam ser expostas para nada: porque o abuso está fora do estatuto de limitações do Peru, eles acreditavam que provavelmente não teriam justiça.

No entanto, muito antes do livro de Salinas, três das vítimas citadas já haviam denunciado os abusos ao Tribunal Interdiocesano em Lima, ainda em 2011.

Os três autores da denúncia - que se sentiam mais confortáveis usando o processo da Igreja pela garantia da confidencialidade - são conhecidos nos documentos do tribunal como "Santiago", "Lucas" e "Juan".

Em texto no La República, Salinas reivindica que as acusações enviadas ao tribunal de Lima nunca chegaram a Roma, e aponta o moderador do tribunal, o Arcebispo de Lima, Cardeal Juan Luis Cipriani, como o motivo.

"Nunca ficou claro onde essas queixas altamente sensíveis e graves acabaram ou o que aconteceu com elas", escreveu Salinas no artigo.

Mas a carta vista pela Crux lança uma luz muito diferente, mostrando que a Igreja peruana agiu rapidamente, enviando cada uma das quatro queixas contra o Sodalitium para a Congregação dos Religiosos.

A primeira foi a de "Santiago", que entregou uma acusação por escrito contra Figari em 16 de maio de 2011. Uma semana depois, Huapaya enviou o documento para a Congregação dos Religiosos com uma carta sua de acompanhamento, datada em 24 de maio de 2011.

O tribunal recebeu uma segunda queixa contra Figari enviada da Arquidiocese de Colônia, na Alemanha, em carta datada de 24 de maio de 2011. Huapaya enviou os documentos à Congregação dos Religiosos em 9 de Setembro de 2011.

Alguns dias depois, através da embaixada papal em Lima, a congregação acusou o recebimento das duas cartas.

A terceira acusação foi a do autor, Salinas, que escreveu ao tribunal em 13 de Setembro de 2011, a qual Huapaya encaminhou a Roma pouco menos de um mês depois.

Em janeiro de 2012, Huapaya escreveu ao prefeito brasileiro da congregação, o cardeal João Braz de Aviz, pedindo-lhe para agir. Três meses depois, ele recebeu uma resposta do subsecretário da congregação, que confirmou o recebimento da carta e das queixas contra o SCV.

Mais de um ano depois, em setembro de 2013 - seis meses após a eleição do Papa Francisco - Huapaya encontrou-se com o Padre Waldemar Barszcz na Congregação dos Religiosos, que mais uma vez confirmou o recebimento de sua carta, bem como as queixas contra Figari.

"Expressei a ele minha profunda preocupação com a falta de ação do dicastério em resposta a estas queixas e consequente sofrimento das vítimas", lembra Huapaya em sua carta aos bispos.

Um mês depois, ainda sem nenhuma notícia, Huapaya recebeu uma quarta acusação. Em 25 de Outubro de 2013, um padre e três membros do SCV solicitaram ao tribunal que a conduta de Figari fosse investigada.

Os documentos foram enviados à Congregação dos Religiosos alguns dias depois, em 2 de Dezembro, com uma carta de acompanhamento de Huapaya para Braz de Aviz.

"Eu insisti que, devido aos fatos divulgados em sua congregação, houve uma falta de respeito às vítimas", Huapaya recorda, "e eu reiterei a necessidade de uma ação urgente por parte do dicastério, uma vez que eram casos de sua competência, como eu havia repetidamente afirmado".

Seis meses depois, em julho de 2014, o enviado papal para o Peru, o arcebispo James Patrick Green, nascido na Philadelphia, pediu que Huapaya o informasse sobre o caso Figari. Alguns dias após a reunião, Huapaya transmitiu os documentos pertinentes a Green, mais uma vez enfatizando a necessidade de ação imediata.

Neste momento, mais de três anos se passaram desde que a primeira acusação apresentada ao tribunal de Lima foi enviada a Roma. Levaria quase mais um ano antes que Roma respondesse.

Em 22 de abril de 2015, a Congregação dos Religiosos nomeou um bispo peruano, Fortunato Pablo Urcey de Chota, para levar a cabo uma investigação inicial.

Em 04 de maio de 2016, o Vaticano decidiu intervir diretamente na gestão do SCV, nomeando Tobin como delegado da congregação, com poder de vetar decisões de seu corpo diretivo.

Figari, no entanto, permanece livre, aparentemente por causa de uma lacuna nas reformas da lei canônica para lidar com a crise dos abusos sexuais do clero.

Quando o Papa João Paulo II, em 2003, permitiu que o estatuto de limitações fosse abolido no caso de abuso sexual de menores, a mudança abrangeu sacerdotes, mas não leigos ou irmãos religiosos. Como Figari é leigo, o estatuto ainda se aplica.

Mas a questão que permanece é por que, por tanto tempo, a resposta do Vaticano foi tão escassa.

Lombardi, o porta-voz do Vaticano, disse por e-mail que a congregação tinha se esforçado para agir com prudência, "dada a complexidade e diversidade de posições e interpretações em torno de Figari e o Sodalitium", bem como pelas "considerações de caráter legal".

"Foi necessário proceder a uma análise aprofundada, tendo em mente o contexto eclesiástico e social do Peru e o fato de que algumas dessas acusações não tinham os requisitos necessários para serem tomados como base para a ação da congregação", segundo declaração de Lombardi.

"Desde as primeiras acusações [contra Figari] referidas na carta [ao tribunal], a documentação tem crescido consideravelmente e está sendo avaliada à luz de possíveis decisões a serem tomadas", ele acrescentou.

Um membro sênior do SCV disse nos bastidores que cuidar e indenizar as vítimas é agora uma prioridade do Sodalitium, mas que fazer justiça a Figari continua a ser um desafio por causa da lei tal como está.

Desde dezembro, "temos implorado ao Vaticano para que Figari seja forçosamente expulso", disse ele, o que significa exclui-lo formalmente do grupo, mas como Figari não está vinculado a votos religiosos, nega as alegações, não se arrepende e é defendido por um advogado afamado, o membro sugeriu que a congregação do Vaticano pode estar com medo de que qualquer decisão contra ele seria impedida em recurso.

Por agora, a impunidade ininterrupta de Figari, combinada com a evidência de uma anterior falta de ação em Roma, só pode contribuir para a frustração das vítimas.

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