Quando o Índex dos livros acabou no Índex

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

23 Fevereiro 2016

O papa está à porta do paraíso. Está tendo problemas com a chave. "Que diabos é isto? A porta não abre. Devem ter mudado a fechadura. Ou está com defeito." O papa se enfurece, enche a porta de socos e chutes: "Minha bile borbulha! Ei! Alguém abra esta porta imediatamente!" Pedro, do lado de dentro, se recusa: "Em nome de Deus, que fedor é este que eu sinto? Não convirá abrir a porta imediatamente. Vou ter uma ideia de quem é esse flagelo a partir daqui, olhando para fora por esta fenda." O guardião do paraíso observa o seu sucessor. A chave de prata, pensa, é "muito diferente das que o pastor da Igreja, o verdadeiro, Cristo, me confiou." Ele não gosta da coroa, do manto imperial cravejado de ouro e de pedras preciosas, as tropas no séquito. Assim começa um diálogo cáustico entre Pedro e o Papa Júlio II.

A reportagem é de Marco Ventura, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 21-02-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Textos como esse, datado de 1513, revolucionaram o cristianismo: trouxeram um ataque radical à autoridade romana, aos fundamentos da teologia, do direito canônico, da relação entre poder temporal e espiritual. Mais ainda, textos como esse revolucionaram o modo pelo qual as ideias circulavam.

Não eram mais manuscritos, mas livros impressos. Viajavam rápido, alcançavam mais pessoas, custavam menos e rendiam mais. Com a conquista de um novo público, renovava-se a língua. O diálogo de 1513 entre Pedro e Júlio II ainda é em latim, mas os protestantes logo publicariam Bíblias em francês, em holandês, em alemão e em inglês.

Nasce aqui o Índex dos livros proibidos. É a resposta romana ao livro moderno e à nova ideia de Deus e de Igreja que com ele se propaga. Primeiro, são as universidades que publicam listas de leituras proibidas em Paris, Louvain, Salamanca. Depois, cabe à autoridade eclesiástica.

O arcebispo Della Casa, o autor da etiqueta, é um dos primeiros a compilar uma lista. Durante o Concílio de Trento, entre 1557 e 1559, Paulo IV publicou o primeiro Índex. No dia 26 de fevereiro de 1562, os Padres conciliares tridentinos verbalizam o seu alerta: "O número dos livros suspeitos e perigosos, nos quais está contida uma doutrina impura, por eles difundida ao longo e ao largo, cresceu demais."

Dois anos depois, recém-terminado o Concílio, foi publicada uma nova lista, e nasceu a Congregação do Índex, símbolo da tutela eclesiástica sobre um povo em que não se confia.

O Índex é o catálogo das obras das quais são proibidas a publicação, a venda, a compra, a conservação, a tradução, a difusão e, principalmente, a leitura. Ao mesmo tempo, o Índex é o dispositivo, a burocracia, as normas e os procedimentos. Todas as vezes em que uma ameaça é percebida, o grande corpo se move: encadeiam-se denúncia, instrução, processo, sentença, proibição e repressão.

À cadeia de movimentos, corresponde à cadeia de conceitos. A obra a ser censurada é perniciosa para a moral, para a teologia, para a eclesiologia, para a ordem estabelecida, social e política, para o direito canônico e civil que o preservam. Basta a ameaça em um ponto da cadeia para vetar, porque o perigo está justamente no contágio que se difundiria de um ponto aos outros, particularmente da heresia teológica à política.

Assim, acabam no Índex os livros dos hereges, as edições dos Padres da Igreja e das escrituras, a teologia em vulgar, as publicações obscenas, os tratados de magia e de astrologia. O Índex percorre os séculos, oscilando entre a sua abstração e o impacto sobre a realidade. Os resultados são os mais diversos. A obra proibida, precisamente como tal, estimula a curiosidade. A intransigência e a rigidez, muitas vezes, se transformam em negociação, retrações parciais, penas que apagam algumas frases e não outras. Obstinações e descuidos coexistem. O que importa são as trajetórias individuais, as personalidades de censores e autores. O importa é a história dos povos.

Na Europa dos cristianismos nacionais, a maior ou menor docilidade coletiva ao braço do censor determina a eficácia do Índex. Se os católicos do outro lado dos Alpes são relutantes a se curvar, a Itália está na vanguarda no braço de ferro que Roma engaja com a modernidade ocidental. Um olho muito romano e muito italiano seleciona os volumes e os autores que entram e saem do Índex.

Só quando a "Crítica da Razão Pura" foi traduzida ao italiano, em 1827, é que Immanuel Kant acabou no Índex. E, mais tarde, em junho de 1853, o processo contra "A cabana do pai Tomás" nasceu do sequestro por obra do zeloso inquisidor de Perugia de mais um lote de livros contrabandeados pelo Grão-Ducado de Toscana no Estado Pontifício.

O Pai Tomás foi poupado da censura ao término de uma discussão que resume as contradições do Índex. Sobre a obra antirracista e sobre a autora metodista, desencadeiam-se o carreirismo dos prelados, a sua obtusidade, o cálculo político. Porém, o debate entre os consultores é um laboratório cultural rico, onde os conteúdos, no caso da "Cabana do Pai Tomás" o preconceito racial, são objeto de um acalorado debate de argumentos, metodologias e retóricas.

Entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, a Igreja lança os últimos golpes na sua batalha contra o livro moderno. Em 1917, entre a aparição da Virgem em Fátima e a Revolução de Outubro, morreu a Congregação do Índex, agora englobada pelo Santo Ofício. Escapam do Índex Marx, Lenin e Stalin, e também Hitler e Mussolini, parceiro das concordatas. Acabam nele, ao contrário, Giovanni Gentile e alguns teóricos do nazismo.

Quem pagou o preço mais alto foram os teólogos que lançavam pontes ao novo saber, dos modernistas franceses e britânicos a Ernesto Buonaiuti, até o biblista Jean Steinmann, cuja "Vida de Jesus" foi o último livro que acabou no Índex, em 1961.

Depois do encerramento do Concílio, Paulo VI redimensionou o Santo Ofício, agora Congregação para a Doutrina da Fé. O destino do Índex permaneceu suspenso até a publicação, na revista Gente, no dia 13 de abril de 1966, de uma entrevista com o cardeal Alfredo Ottaviani.

O prefeito da Doutrina da Fé declarou que o Índex já estava desprovido de valor jurídico, que não sairiam novas versões dele, que ele já era apenas um interessante "documento histórico". O Índex morre porque mudou a atitude da Igreja para com a história.

Mas não só. Em uma entrevista de junho de 1966, o mesmo cardeal Ottaviani explicou como o Índex já estava fora de lugar em um mundo em que "a palavra escrita não é mais o único instrumento de difusão das ideias". O Índex morre porque mudou a transmissão do pensamento; porque não há mais o livro como o Ocidente o conheceu a partir do século XVI.

O "Júlio", o diálogo de 1513 entre Pedro e Júlio II nas portas do Paraíso, se conclui sem que o papa consiga entrar. Pedro o aconselha a construir outro paraíso. O pontífice se retira ameaçando: "Quando eu incrementar o meu exército, vou expulsá-lo à força!".

Na mais recente edição crítica de "Júlio", em 2013, Silvana Seidel Menchi demonstrou que o misterioso autor do diálogo é Erasmo de Roterdã. É três anos posterior ao "Júlio", isto é, de 1516, o Novo Testamento editado por Erasmo, a obra que revolucionou a compreensão da palavra de Deus, obra do Índex por excelência.

Caíram em 2016 ambos os aniversários. Cinco séculos desde o Novo Testamento de Erasmo. Cinquenta anos desde o fim do Índex.

É feita de proibição e de gênio, de homem e de Deus, a memória do livro.