A violência islâmica e a guerra de idéias

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

16 Outubro 2013

No caso de você não estar atualizado, segue abaixo uma contagem parcial da violência islâmica global durante o mês de setembro:

A reportagem é de George Packer, publicada no blog Daily Comment, da revista New Yorker, 08-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Quênia: Militantes do grupo jihadista somali Al Shabaab ataca o shopping Westgate Mall, em Nairóbi, matando os visitantes com granadas e metralhadoras, separando alguns muçulmanos de não muçulmanos, em uma matança que termina três dias depois, com um ataque pelos militares quenianos. Número de mortos: pelo menos 70 homens, mulheres e crianças, além de vários soldados e militantes.

Somália: Um carro e homens-bomba do grupo Al Shabaab explodem o restaurante Village em Mogadíscio pela terceira vez. Número de mortos: 15 clientes e funcionários.

Paquistão: homens-bomba detonam-se fora de uma igreja protestante em Peshawar. Número de mortos: 85.

Uma bomba de controle remoto explodiu em um ônibus que transportava funcionários do governo perto de Peshawar. Número de mortos: 19.

Uma bomba de controle remoto num antigo mercado lotado em Peshawar. Número de mortos: 37.

Nigéria: Militantes do grupo extremista Boko Haram atacam uma escola agrícola. Número de mortos: 40 jovens estudantes do sexo masculino, a maioria dos quais estavam dormindo quando foram mortos.

Iraque: carros-bomba, atentados suicidas, crimes por vingança e assassinatos atingem níveis não observados há pelo menos cinco anos. Número de mortos: novecentos e setenta e nove. Feridos: 2.133, a maior parte como resultado da violência sectária entre sunitas e xiitas.

Síria: rebeldes afiliados à Al-Qaeda apertam o cerco no norte da Síria, intimidando moradores locais com açoitamentos públicos e execuções.

Iêmen: Militantes da Al-Qaeda na Península Arábica realizam atentados contra soldados e policiais no sul do Iêmen. Número de mortos: pelo menos 30.

Afeganistão: Sushmita Banerjee, a esposa indiana de um homem afegão que se converteu do hinduísmo ao islamismo e escreveu um livro de memórias sobre a vida sob o regime talibã que mais tarde foi transformado em um filme de Bollywood, é raptada em sua casa na província de Paktika, levada a uma casa segura talibã e baleada com 25 disparos. Dois suspeitos são presos e afirmam que a mataram porque ela havia escrito sobre o Talibã e porque tinha instalado uma conexão de internet em sua casa.

Zanzibar: Agressores jogam ácido no rosto de um padre católico quando ele saía de um cibercafé, um mês depois de duas jovens britânicas terem sido atacadas da mesma forma.

Foi um mês muito ruim. Mas a pior coisa sobre a violência de setembro é o fato dela ser facilmente ignorada. O drama do Westgate em Nairóbi captou a atenção do mundo por alguns dias, porque se trata de um marco chamativo, um cerco prolongado, e muitas das vítimas eram não-quenianas. E ainda assim dezenas, ou centenas de pessoas - consumidores, lojistas, fiéis, funcionários públicos, estudantes universitários, donas de casa, crianças, a maioria deles muçulmanos, nenhum deles culpado de nada além do que ter nascido no país errado - estão sendo assassinados todos os dias, feitos em pedaços, queimados vivos, mortos a tiros, decapitados em nome de uma cepa extremamente violenta do Islã.

Toda essa matança está ocorrendo num momento em que os EUA estão saindo do mundo muçulmano. Não há tropas no Iraque há quase dois anos. O exército dos EUA está reduzindo seu efetivo no Afeganistão, e a esta altura, no próximo ano, pode não haver tropas de combate americanas lá, também, pela primeira vez desde 2001. A guerra civil da Síria tornou-se um palco para combatentes estrangeiros de vários países, enquanto os EUA mantém-se à distância. A crise política no Egito é caseira, com a Casa Branca apenas tentando manter-se atualizada com os acontecimentos. O conflito entre Israel e a Palestina continua sendo uma preocupação central da política externa dos EUA e uma fonte de queixas para os muçulmanos (e outros) em todo o mundo, mas quem imagina que uma resolução no Oriente Médio - ou um fim de ataques aéreos no Paquistão e no Iêmen, ou a retirada das tropas francesas de Mali, ou um rebaixamento da União Africana na Somália - vai acabar com a violência catalogada acima não está pensando muito sobre suas causas.

As guerras norte-americanas em países muçulmanos criaram alguns extremistas e inflamaram muitos outros, ao produzir um vácuo de segurança que lhes permitia causar caos. Mas as origens do abate são esmagadoramente internas: sectárias, tribais, políticas, econômicas. Na sua fonte, a violência brota de ideias, ideias terríveis sobre o significado do Islã, o caráter de não-muçulmanos, e os deveres dos muçulmanos. Essas ideias são promulgadas em mesquitas, cafés e escolas, e na TV por satélite e na Internet, com o auxílio de teorias da conspiração, meias-verdades, edição enganosa e mentiras. Elas são muito impermeáveis ao fluxo e refluxo da política externa dos EUA.

Longe de deixar norte-americanos de fora, essa percepção nos coloca num teste muito difícil.

Quando a violência islâmica finalmente chamou a atenção dos norte-americanos em 11 de setembro de 2001, o governo dos EUA respondeu da forma mais simples, mais familiar: com o poder militar em conjunto com as operações de inteligência. Doze anos depois, Osama bin Laden está morto, o poder central da Al-Qaeda está muito danificado, e não aconteceu nada perto de uma repetição daqueles ataques em solo norte-americano, mas as guerras foram catástrofes humanas que não conseguiram alcançar a maioria de seus objetivos estratégicos. Em discussões maiores sobre prisioneiros, drones, segurança e vigilância , os americanos mostram muito mais interesse o que seu país faz do que aquilo que as pessoas fazem na Somália ou no Paquistão. O veredicto dos últimos 12 anos é: não mais guerras, incluindo contra o terror, segundo o presidente.

Esse veredicto ainda deixa muito espaço para a ação armada americana no exterior, como vimos no fim de semana, com o rapto de uma figura importante da Al-Qaeda nas ruas de Tripoli, na Líbia, por soldados norte-americanos e oficiais de inteligência, e um ataque abortado dos Navy SEAL ao reduto de um líder Shabaab na costa da Somália. A Administração considera claramente o massacre do shopping de Nairóbi como um sinal preocupante do desejo e capacidade dos membros do Al Shabaab de atingir alvos fáceis ao redor do mundo. Mas e quanto ao tipo de violência - como a maioria dos incidentes listados acima - que parece não nos ameaçar diretamente? Por que isso tem que ser problema nosso?

Alguns dos comentários dos EUA sobre relatos de violência do mês passado levaram esse pensamento ainda mais longe: então que se matem uns aos outros. No hábito de atitude bipolar dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, mudamos de grandioso zelo missionário para a retirada mal-humorada. Os EUA parecem mais seguros do que eram no dia 11 de setembro, o resto do mundo menos seguro. A maioria dos norte-americanos está tranquila com essa situação.

Enquanto o jihadismo tende a começar com o inimigo que está próximo, no entanto, muitas vezes há um inimigo longe e mais longe. Cada grupo jihadista global, incluindo a Al-Qaeda, nasceu de um conflito local. É uma ideologia extremamente ambiciosa. Além disso, nos países onde os ataques suicida contra crianças em idade escolar são comuns têm uma maneira de tornar-se o problema de seus vizinhos, e talvez do mundo. É perigoso e desumano quando os norte-americanos crescem acostumados com a regularidade dos fuzilamentos em massa de inocentes em seu próprio país. Por que devemos ser confortavelmente indiferentes à violência islâmica contra inocentes no exterior?

A guerra tornou-se um instrumento demasiado inequívoco contra a complexidade, volatilidade e durabilidade da violência islâmica. Sequestros e assassinatos direcionados são eficazes contra as lideranças, mas não são efetivos contra a próxima geração de recrutas, talvez os provocando ainda mais. E, talvez, uma abordagem que os norte-americanos impacientes, amantes da ação, orientados para os resultados não refletiram o suficiente seria abordar o coração da violência: as ideias terríveis que permitem os massacres em nome da religião. Os norte-americanos são lentos em acreditar na importância das ideias - elas parecem como pretextos frágeis ao invés de causas. A história dos últimos anos e as notícias do mês passado sugerem o contrário.

No fim de setembro, o Departamento de Estado anunciou a criação de um fundo conjunto entre EUA e Turquia para combater o extremismo islâmico, chamado Global Fund for Community Engagement and Resilience. O objetivo é arrecadar 200 milhões de dólares ao longo de dez anos, através de governos e doadores privados, e para identificar e financiar grupos de base em todo o mundo muçulmano, que irão fazer o trabalho difícil de se opor às ideias extremistas em seus próprios países. Esses grupos assumiriam os islâmicos onde vivem, nas mesquitas e centros comunitários, em salas de chat e em mídias sociais. O papel norte-americano seria ficar por trás; cidadãos, organizações e governos dos principais países islâmicos, como a Arábia Saudita e Paquistão, tomariam a liderança.

A ideia era, em parte, criação de Ed Husain, o autor nascido em Londres de The Islamist, um relato autobiográfico de seus anos como um jovem em organizações islâmicas radicais e sua mudança para uma versão mais liberal do Islã. Ele é agora membro do Conselho de Relações Exteriores, onde o seu artigo político A Global Venture to Counter Violent Extremism foi publicado na semana passada. Husain chamou a minha atenção sobre o fato de que a participação fundamental da Turquia e de outros governos muçulmanos no fundo não teria sido possível sem a iniciativa americana. Os EUA são radioativos nas sociedades muçulmanas, mas ainda desempenham um papel central na luta política e ideológica contra o extremismo.

"Feito corretamente", escreve Husain, "no prazo de oito a dez anos a teologia e a ideologia da Al-Qaeda podem se tornar não atraentes entre os jovens muçulmanos como o comunismo se tornou para os alemães orientais". Eu imagino que essa previsão é muito otimista. A religião está enraizada nos países islâmicos muito mais profunda e historicamente do que o comunismo estava no bloco do Leste Europeu. Para argumentar contra o extremismo islâmico com os jovens cidadãos dos países onde as pessoas são esmagadoramente piedosas e os regimes dominantes não-islâmicos são falhas sombrias é um desafio muito mais difícil do que argumentar contra o marxismo nos países onde os regimes comunistas estavam falhando. Mas Husain - um exemplo vivo de um convertido à moderação - está seguramente correto ao apontar para as ideias dos islamitas, e não apenas as suas circunstâncias ou táticas: "A menos que tais ideias sejam desafiadas e desacreditadas, os grupos extremistas continuarão se regenerando, não importa quantos terroristas sejam mortos”. Os norte-americanos não estão em uma posição, moral ou praticamente, para liderar esse esforço, mas este continua sendo o nosso negócio. Ainda estamos dentro.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

A violência islâmica e a guerra de idéias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU