Ap 20,1-4.11 e 21,2: Milenarismo, juízo final e o fim do mundo!

Foto: TBIT | Pixabay

25 Novembro 2022

"Hoje, quando a Igreja fala de Juízo Particular e não Final, pregadores católicos, evangélicos e pentecostais retomam esse discurso de medo e de domínio a partir da religião, acrescido de fake news", escreve Jacir de Freitas Faria, OFM.

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze. YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.

Eis o artigo. 

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Ap 20,1-4.11 e 21,2. Trata-se do Milenarismo, do Juízo Final e do fim do mundo (cf. Ap 20,1-4, 11; 21,2). Apocalipse é um livro cheio de símbolos, os quais aguçam a nossa imaginação. Sem identificar o sentido de cada um deles, corremos o risco de fazer interpretações fundamentalistas, isto é, fora do contexto do texto, o que acarreta sérias consequências para a nossa fé. Foi o que aconteceu com a Igreja, na Baixa Idade Média (séc. X-XV), quando interpretou Ap 20,1-4,11 e 21,2. Você já ouviu falar em milenarismo? O que é isso Juízo Final no fim do mundo?

Essa passagem bíblica de Apocalipse diz que o anjo agarrou o Dragão, a antiga Serpente, que é o Diabo, Satanás, acorrentou-o por mil anos e lançou-o dentro do Abismo. Depois, trancou e lacrou o Abismo, para que o Dragão não seduzisse mais as nações da terra, até que terminassem os mil anos. Depois dos mil anos, o Dragão seria solto para seduzir novamente as nações (cf. Ap 20,1-3). O fim desse período seria marcado por um grande julgamento, o Juízo Final dos mortos que estavam nos Infernos (Hades ou Sheol), a mansão dos mortos. Os que estavam inscritos no Livro da Vida ressuscitariam. Os não inscritos, porém, seriam lançados num lago de fogo, o qual, na Baixa Idade Média (séc. X-XV), passou a ser chamado de Inferno, um lugar temível, onde mora o Capeta, que tem rabo e fede a enxofre. Satanás, o Opositor, é transformado em Capeta. [1]

A partir de Apocalipse, a era milenarista é a época dos santos libertos do poder de Satanás, pois este estaria aprisionado por mil anos. Seria, portanto, a era dos mil anos de paz, na qual já estaria realizado o primeiro juízo de Deus. Passado esse tempo estabelecido, ocorreria o Juízo Final de Deus, quando, então, a Jerusalém Celeste desceria sobre a terra. O Juízo é final porque já teria acontecido um antes dele.

Quando o ano mil chegou, vendo que Cristo não voltou para reinar por mil anos, a Igreja, imaginando que os demônios estavam soltos, estabeleceu a Pastoral do medo do capeta e da morte. Uma nova visão cristã da morte e do futuro de cada cristão, no pós-morte, foi anunciada aos quatro cantos. Com isso, a Igreja fortaleceu o seu poder de domínio sobre a sociedade.

Ligadas ao milenarismo estão a vinda de um messias, para os judeus, e a volta de Jesus, para os cristãos. Textos do Antigo Testamento (Is 54-55; Ez 40-48; Dn 2; 7) falam da vinda de um messias que inauguraria um tempo de fartura e de paz. Esse pensamento judaico influenciou Ap 20,1-4,11 e 21,2, o qual diz que os mortos que deram suas vidas por causa de Cristo participam da primeira ressurreição e reinarão com Cristo por um período de mil anos. Já os outros mortos deveriam esperar o final dos mil anos (milenarismo).

Ao longo dos mil anos, várias interpretações foram sendo feitas dessa profecia de Ap 20, como as de como Mt 24-25; Mc 12-13; Is 24-27; Dn 2 e 7. Seria o fim do império Romano? Seria um tempo, de fato, historicamente cronometrado? Santo Agostinho (354-430) combateu o milenarismo e interpretou-o como sendo um tempo de duração não definida, o tempo de salvação pela Igreja. [3]

O monge francês Rodulfus Glaber (990-1046) relata fatos extraordinários ocorridos durante três meses no ano mil: cometa brilhante, tremores de terra, incêndios, heresias e depravação do clero. Esses sinais, segundo a narrativa, evidenciavam a chegada do Anticristo. [4]

A Primeira Cruzada, proclamada em 1096 pelo Papa Urbano II, é um exemplo movimentos de inspiração milenarista. Formada por pobres, movidos por motivos espirituais, eles almejavam reconquistar Jerusalém, terra da paixão de Cristo e do perdão de todos os pecados e lugar felicidade eterna. A Segundo Cruzada (1147-1149) teve mais acentuada a esperança milenarista: um imperador que salvaria os pobres e instauraria a era da felicidade, derrotando o Anticristo.

O Juízo Final, realizado por Jesus no último dia, com a separação de eleitos e condenados, conforme narra o evangelho de Mateus foi associado ao Apocalipse. O texto de Mt 25,34.34 diz: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo”. “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o Diabo e para os seus anjos.”

Nas abóbodas de igrejas foram pintadas cenas desse julgamento. No século XIII, a visão mateana sobrepôs-se a do Apocalipse nas iconografias. [5] A segunda vinda de Jesus foi entendida como um grande julgamento, um Juízo Final. Entre as visões milenaristas da época, uma se destaca: a que considera a era da felicidade realizada no tempo da Igreja, como ensinara Santo Agostinho, e que o momento era de realização do Juízo Final. Essa visão contribuiu para instaurar o medo na Baixa Idade Média. [6]

O século XIV foi marcado por uma angústia escatológica no fim dos tempos. Um pregador, Francesco, em Florença, no ano 1513, dizia a respeito do fim do mundo: "Haverá sangue por toda parte. Haverá sangue nas ruas, sangue no rio; as pessoas navegarão em ondas de sangue, lagos de sangue, rios de sangue... dois milhões de demônios estão soltos... porque mais mal foi cometido ao longo destes dezoito anos do que no decorrer dos cinco mil anteriores." [7]

A Reforma de Lutero estava impregnada da ideia de fim do mundo, um Juízo Final iminente. Os séculos seguintes seguiram essa cartilha. As dominações portuguesas e espanholas eram vistas como coisa nobre, verdadeiras conquistas para a Igreja e glória para Portugal e Espanha no dia do Juízo Final, diante do soberano Juiz, Jesus, que acolheria os novos convertidos. Esses dois países ofereceriam a Jesus, quando ele voltasse, milhões de convertidos. O frade dominicano Bartolomeu de Las Casas, protetor dos índios, pelo contrário, acreditava que a Espanha seria castigada por tamanhas atrocidades cometidas no novo mundo em nome da cruz e da espada. [8]

O milenarismo continuou com novas roupagens em Portugal no século XVI. Um novo império português que reinaria sobre o mundo, a ser iniciado em 1670, 1679 e 1700, para o bem da Igreja e da nação portuguesa, foi prometido pelo Pe. Antônio Vieira ao rei de Portugal. [9] Foi com essa visão que Portugal chegou ao Brasil para colonizá-lo. A chegada dos colonizadores ao Brasil, na América Latina indígena, provocou dominação cultural. A cosmovisão indígena não permitia o dualismo da evangelização portuguesa. Para o indígena, a terra é mãe, a natureza é um espírito acolhedor no pós-vida. Quando morre, o espírito do indígena volta para a natureza. O indígena não conseguia entender o discurso dicotômico de um inferno ou purgatório que o esperaria no pós-morte. Natureza é acolhimento, é mãe que possibilita o bem-viver. No mundo criado pelas divindades indígenas, muitas delas ligadas à própria natureza, não havia espaço para algo ruim para o ser humano.

Hoje, quando a Igreja fala de Juízo Particular e não Final, pregadores católicos, evangélicos e pentecostais retomam esse discurso de medo e de domínio a partir da religião, acrescido de fake news. Que Deus tenha piedade de nós!

Notas: 

[1] FARIA, Jacir de Freitas. O medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte às irmandades Negras de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 150.

[2] AGOSTINHO, Santo. De Civitate Dei, livro XX, c.7. In: MIGNE, Jacques-Paul. PL, Paris: Bibliotheca Universalis, v. XLI, col. 667-668.

[3] ANTONIAZZI, Alberto. Milenarismo não é só Idade Média. Vida Pastoral, São Paulo, p. 28, maio/jun. 1999.

[4] ARIÈS. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. v. I. p. 109-110.

[5] ANTONIAZZI, 1999, p. 23.

[6] Ibidem, ibidem, p. 222.

[7] Ibidem, ibidem, p. 213.

[8] CANTEL, R. Prophétisme et messianisme dans l’oeuvre d’A. Vieira. Paris: Hispano-américaines, 1960, citado por DELUMEAU, História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 210-211.

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