Deus não fala mais no templo, mas no deserto

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03 Dezembro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 2º Domingo do Advento, 5 de dezembro de 2021 (Lc 3,1-6). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Para o evangelista Lucas, o início do anúncio do Evangelho ocorre com o chamado e a missão de João Batista, que, não por acaso, ele já nos apresenta como “aquele que anuncia o Evangelho” (cf. Lc 3,18).

De fato, Jesus havia nascido em Belém cerca de 30 anos antes (cf. Lc 3,23), mas a sua vida havia sido caracterizada pelo escondimento. Essas três décadas são, para todos os Evangelhos, “os anos obscuros de Jesus”, no sentido de que sabemos que ele foi criado em Nazaré (cf. Lc 2,51-52), depois cresceu e se tornou uma pessoa madura: mas não conhecemos com exatidão onde isso ocorreu, embora suponhamos que Jesus tenha passado esse tempo no deserto, como discípulo de João.

Eis, então, o relato solene de Lucas, que insere na macro-história do Império Romano e do sacerdócio judaico o evento decisivo, a intervenção de Deus no deserto. Vale a pena reportá-lo literalmente:

“No décimo quinto ano do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes administrava a Galileia, seu irmão Filipe, as regiões da Itureia e Traconítide, e Lisânias a Abilene; quando Anás e Caifás eram sumos sacerdotes, foi então que a palavra de Deus foi dirigida a (foi a, caiu sobre) João, o filho de Zacarias, no deserto.”

Eis o evento decisivo: a palavra de Deus “acontece” sobre um homem, João, pertencente à estirpe sacerdotal, mas habitante no deserto de Judá, e o institui como profeta, isto é, porta-voz do próprio Senhor Deus. A profecia que, há cinco séculos, silenciava em Israel, portanto, torna-se novamente presente em um homem que, tendo-se tornado pregador itinerante da Palavra, percorre todo o vale do Jordão, região marginal situada entre a Terra Santa e o deserto, para fazer com que o povo retorne ao seu Deus.

João prega a conversão, ou seja, a exigência de uma mudança de mentalidade, de comportamento e de estilo de vida, e pede que essa vontade, essa decisão que só pode ter origem no coração seja acompanhada por uma ação simples, humana: trata-se de se deixar imergir (este é, literalmente, o sentido do verbo “batizar”) nas águas do rio Jordão.

Esse ato é imagem de um afogamento: entramos debaixo d’água, depomos na água “o homem velho com os seus comportamentos mortíferos” (Cl 3,9; cf. Rm 6,6; Ef 4,22) e somos reemergidos das águas como homens e mulheres capazes de “caminhar em uma vida nova” (Rm 6,4). Essa imersão, sinal que significa um recomeçar, uma novidade, e é realizada publicamente, diante de todos e diante do profeta que imerge, torna-se um compromisso.

Não é uma das muitas abluções prescritas pela Torá para recuperar a pureza perdida, mas é um ato feito de uma vez por todas, que indica uma opção específica, que deverá ser guia e critério de toda a vida por vir.

Conversão, retorno à estrada que leva a Deus, retorno ao Senhor, dirigir-se a ele: é isso que significa essa imersão, em vista da vinda do Senhor e do seu juízo (cf. Lc 3,7-9).

De acordo com o Evangelho (cf. também Mc 1,4), nesse gesto está contida uma grande novidade: a remissão dos pecados por parte de Deus. Sim, essa imersão, sinal da vontade de conversão, está estreitamente ligada à remissão, ao perdão dos pecados por obra de Deus.

É essa oferta poderosa de perdão por parte de Deus, é esse seu amor preventivo que causa a conversão, ou é a conversão que causa o seu perdão? Não há dúvida: “É Deus quem produz em nós tanto o querer quanto o executar” (cf. Fl 2,13) e que sempre nos oferece, bem antes de nós o desejarmos ou o buscarmos, o seu amor, que é misericórdia infinita.

Se nós predispormos tudo para receber esse amor, se soubermos acolhê-lo e, portanto, nos convertermos, então, o dom do perdão dos pecados nos alcança e opera aquilo que nenhum de nós poderia operar: os nossos pecados, o fato de termos feito o mal é apagado e esquecido por Deus, que nos olha como criaturas irrepreensíveis, por serem perdoadas e justificadas pela sua misericórdia.

Esse é o Evangelho, a boa notícia que começa a ressoar entre as dunas e as rochas do deserto e o rio Jordão, por obra de João. Essa é a mensagem que, depois da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, deverá ser pregada a todos os povos (cf. Lc 24,47). Esse anúncio já é feito pelo precursor, que é um profeta no meio do povo, que acorre a ele para escutar a palavra de Deus anunciada pela sua voz.

João, chamado pela palavra de Deus que “veio” sobre ele como “vinha” sobre os antigos profetas (cf. Jr 1,2; Ez 1,3), realiza uma missão bem específica, pré-anunciada pelo profeta Isaías (cf. Is 40,3-5): uma missão, um ministério de consolação.

Aqui, não podemos deixar de fazer memória dos “monges” da comunidade de Qumran que viviam justamente naquela região do deserto em que João havia aparecido publicamente. Eles haviam aplicado a si mesmos precisamente aquela profecia de Isaías que pedia para abrir uma estrada no deserto e para aplainá-la para a vinda do Senhor, assumindo-a como fonte do seu ministério e da sua missão. Por isso, haviam ido ao deserto para viver de acordo com a vontade de Deus e para esperar, na oração e no estudo perseverante das Sagradas Escrituras, a vinda do seu Messias e do seu reino.

João, asceta como eles no deserto, compartilha com eles a mesma missão, e a sua manifestação é conforme à mesma profecia de Isaías: “Como está escrito no Livro das palavras do profeta Isaías: ‘Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas. (...) E toda a carne verá a salvação de Deus’”.

Essa voz – sublinha Lucas – quer alcançar “toda a carne”, cada homem e cada mulher, não somente os filhos e as filhas de Israel, para que todos possam receber a salvação de Deus: esta, de fato, não é dirigida apenas ao povo das alianças e das bênçãos, como anunciavam os antigos profetas, mas João Batista proclama que é uma salvação universal, para todos, precisamente para todos!

Portanto, uma boa notícia “não para alguns, nem para poucos, nem para muitos, mas para todos”, como gritou com alegria o Papa Francisco (Catedral de Florença, 10 de novembro de 2015, Encontro com os representantes do congresso nacional da Igreja italiana).

Tudo isso ocorre às margens da Terra Santa, no limiar do deserto, com o seu vazio, o seu silêncio, a sua solidão. Que contraste entre a “grande” história, que vê Tibério, Herodes e outros reinando, que registra o sumo sacerdócio de Anás e Caifás, e a história da salvação que se realiza de modo humilde, escondido!

Nada daquilo que dá prestígio ao poder político está presente; nada daquilo que caracteriza a solene liturgia sacerdotal do templo aparece: não, simplesmente um riozinho, a água para se imergir, corpos que entram e saem da água por ação dos braços de um homem, João, que é apenas uma voz que, no deserto, pede uma vida outra, nova, pede que os homens e as mulheres voltem ao Senhor e recomecem a viver de acordo com a sua vontade.

No batismo de João, a água era eloquente por si só, não obscurecida ou escondida por tantas pretensas ações cultuais: água, palavra, corpos que são imersos e, depois, reemergem, braços que acompanham quem desce e depois o levantam novamente... plena humanidade daquele sinal-sacramento da imersão. Porém, é suficiente para muitos cristãos defini-lo como “batismo”, para compreendê-lo, infelizmente, apenas como rito e não como gesto e palavra, gesto que fala, palavra que age, sinal eficaz da ação do Deus vivo!

Portanto, a salvação está próxima, e “toda a carne”, isto é, toda a humanidade frágil, mortal e pecadora poderá vê-la. Ao ressoar a voz que grita no deserto e que anuncia a vinda do Senhor, será preciso ir ao seu encontro e aplainar o seu caminho, endireitar os sendeiros que levam ao encontro com ele: essa é uma operação necessária no coração de cada pessoa, que deve abaixar as montanhas do próprio orgulho e da própria autossuficiência, deve encher os abismos infernais e os desesperos que a habitam.

No caminho de conversão, portanto, trata-se de predispor todo o coração, libertando dos obstáculos que impedem que a graça, isto é, o amor gratuito de Deus, atue. Só assim a oração e a vigilância requeridas no Advento se tornam operantes em nós, tornando-nos capazes de levantar o olhar e de ir ao encontro, com parrhesía, do Senhor que vem!

 

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