"Tenho em minha consciência que é preciso viver a vida trágica. O Amor fati."
O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Tenho em meu íntimo que viver a vida é como uma peregrinação. Entre altos e baixos, entre abismos e montanhas. Em alguns momentos atravessaremos abismos, é como descer às trevas e andar somente com uma luz parca a nos guiar, tal como a figura antiga do eremita. São esses os períodos mais difíceis da vida. Aqueles pelos quais não enxergamos o final da escuridão. O que fazer? Embora seja muito difícil, devemos seguir a caminhada, iluminando nosso caminho até aparecer uma nova colina ou montanha.
O eremita, imerso na solidão, encontra na luz tênue da sua vela o único reflexo da verdade, revelando uma sabedoria silenciosa que transcende o mundo exterior | Arte de Pamela Colman Smith
Somente atravessando o caos, o inferno (como fez Dante e Virgílio), enfrentando nossos próprios demônios, seremos capazes sair dele para encontrarmos do outro lado uma forma de vida autêntica. É necessário um humanismo radical para que possamos encontrar quem realmente somos e o que realmente buscamos em nossa experiência de vida humana.
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Nesse ponto me atenho a algo importante. Enquanto optarmos por buscar atalhos, estaremos nos desviando de nosso caminho. Por meio da lógica do discurso de muitos indivíduos, somos levados ao engano. A constituição daquilo que entendemos por verdade passa por desejo e poder de indivíduos que acreditam saber a verdade absoluta do mundo.
Permitam-me esclarecer. Quando nascemos, somos como páginas em branco, e cada experiência e pessoa que passa em nossa vida deixa uma marca nessas páginas. Ao tomarmos certos discursos por verdade, estamos permitindo que nossos desejos sejam manipulados.
La Mappa dell’ Inferno | Arte de Sandro Botticelli
Como me referi, não é possível uma experiência autêntica de vida se não experienciarmos nossos desejos e paixões, nossos erros e tristezas.
Imaginemos agora que fosse possível buscar essa autenticidade novamente, ou seja, buscarmos novas páginas em branco, ao invés de permanecermos reproduzindo discursos que nos foram induzidos das mais diversas formas, sejam eles contra nossa potência de vida ou benéficos à expansão da vida. Percebam, não necessariamente aquilo que nos constitui previamente é ruim ou mal, não devemos fazer um juízo de moral nesse sentido, mas perguntar-nos: aquilo que reproduzo me constitui em autenticidade?
Dante perdido na selva escura | Arte de Gustave Doré
A estrutura simbólica de ídolos e dogmas pré-existentes buscam moldar a vida humana a determinado preceito pré-estabelecido. O ato de crer cegamente desvia o indivíduo do ser. A explicação está no que antes havíamos nos referido: se eu creio em algo, não há necessidade de questionar o discurso sobre o juízo pré-existente, pelo simples fato de que crer pressupõe o ser. Se eu creio no paraíso, logo, o paraíso já está concebido, não há necessidade de concebê-lo. Com isso, me ponho distante do exercício criativo e autêntico da constituição de minha própria existência e adoto a criação pré-concebida de terceiros.
Quanto sangue derramado a troco de poder e discursos vazios. Quantas mulheres solteiras queimadas nas fogueiras como "bruxas", em nome de deus. Quantos judeus mortos nos fornos de Auschwitz, em nome da higiene. Quantas peles derretidas em Hiroshima e Nagasaki, em nome da paz. Quantas crianças mortas em Gaza, em nome dos reféns. Quantas mães Argentinas choram ainda por seus filhos na Plaza de Mayo?
A opressão surge no ceio do discurso e da narrativa, e é intermediada pela crença no ídolo ou da ideologia. Somente a consciência crítica pode desfazer o véu do engano. É necessário o "crepúsculo do ídolo".
Imaginemos agora um artista de teatro. Ao se apresentar para uma plateia, tem à sua disposição figurino, maquiagem, luzes, efeitos sonoros e toda a parafernália externa. O que seria desse artista se todos esses subterfúgios sumissem? Um a um, os objetos lhe são retirados, restando em cima do palco apenas seu corpo nu. O que surge do nu? O que surge do nada? O que surge a partir do corpo humano? A realidade crua? Do humanismo radical?
The Valley of the Shadow of Death | Arte de John Martin
A questão que estou querendo levantar é que, somente quando temos a coragem de encarar de frente, de forma nua e crua, nossa própria existência, nosso próprio ser e nossa própria angústia, é que seremos capazes de criar nossos próprios valores e autenticidade humana. Quem será você no fundo do abismo?
Tenho em minha consciência que é preciso viver a vida trágica. O Amor fati.