17 Abril 2018
Como transformar a Bienal de Veneza em uma lição de (nova) religiosidade. Parece ser esse o credo que orienta as escolhas da Santa Sé diante da etapa dos Giardini, do Arsenale e mais em geral da Laguna. Em 2013, na estréia de um "seu" Pavilhão na edição dedicada à arte, o curador Antonio Paolucci e o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura e comissário do pavilhão, tinham então escolhido um tema clássico, como o da Gênesis, confiando sua execução a um trio de artistas não convencionalmente religiosos: a criação das vídeo-instalações interativas dos italianos do Studio Azzurro; a ‘descriação’ das paisagens urbanas atemporais do fotógrafo checo Josef Koudelka e a nova criação no minimalismo conceitual do estadunidense Lawrence Carroll.
A reportagem é de Stefano Bucci, publicada no caderno la lettura do jornal Corriere della Sera, 15-04-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este ano, a primeira vez do Vaticano na Bienal de arquitetura (a de número 16, título Freespace, dirigida por Yvonne Farrell e Shelley McNamara, de 25 de maio a 25 de novembro), os curadores do Pavilhão da Santa Sé - Francesco Dal Co e Micol Forti, sempre com o auxílio de monsenhor Ravasi - interpelaram um grupo de designers. O norte-americano Andrew Berman, o italiano Francesco Cellini, o paraguaio Javier Corvalán, os espanhóis Ricardo Flores e Eva Prats, o britânico Norman Foster, o japonês Terunobu Fujimori, o australiano Sean Godsell, a brasileira Carla Juaçaba, o chileno Smiljan Radic e o português Eduardo Souto de Moura irão traçar "em uma área não frequentada e conhecida da ilha de San Giorgio Maggiore" (no lado Sul, que também abriga o 'teatro verde') um percurso marcado por dez capelas, ao qual será adicionado um pavilhão de introdução à instalação, projetado pelo italiano Francesco Magnani e Traudy Pelzel. Dez Vatican Chapels para uma peregrinação não só religiosa, mas também laica, que - explicam os curadores- "poderá ser percorrida por todos aqueles que desejem redescobrir a beleza, o silêncio, a voz interior e transcendente, a fraternidade humana de estar juntos na assembleia de um povo, mas também na solidão de um bosque onde seja possível perceber o pulsar da natureza que é como um templo cósmico".
Projeto de Norman Foster | Foto: Cortesia Fostners Partners
Cada um dos projetistas combinou o tema "à sua imagem": por exemplo, Godsell, aluno dos jesuítas, imaginou sua obra como uma capela móvel, que pode viajar pelo mundo, enquanto Fujimori a aproximou de suas raízes taoístas. Partindo de um único modelo comum, a da Skogskapellet, a Capela no bosque, construída em 1920 por Gunnar Asplund no cemitério em Estocolmo, desde 1994 incluída pela Unesco no Patrimônio da Humanidade: o mesmo onde está sepultada hoje a divina Garbo, e o mesmo cemitério onde, entre as mais de dez mil árvores centenárias e as lápides todas iguais de dimensões reduzidas “para representar a igualdade perante a morte", circulam lebres, raposas e esquilos.
Não se trata de um modelo qualquer. Gunnar Asplund e Sigurd Lewerentz haviam vencido em 1915 o concurso para o Cemitério Sul de Estocolmo, com uma proposta "em que a visão romântica da floresta nórdica foi de alguma forma filtrada pela experiência da viagem à Itália". Deixando praticamente intacta a floresta, os arquitetos haviam desenhado trilhas ladeadas por lápides, túmulos hipogeus e pequenas capelas, com clareiras e aterramento como anfiteatros antigos, com um Bosque da Meditação e capelas dedicados a Fé, a Esperança e à Santa Cruz. A capela no Bosque (uma planta quadrada, 9 metros por 9, além de um pórtico com colunas, capacidade máxima 35 pessoas) foi a primeira desenhada por Asplund no cemitério e sua intenção inicial era construí-la de pedra: uma ideia depois descartada por questões de custo e, em seguida a uma viagem para a Dinamarca, (em especial no parque Liselund) Asplund seria levado a escolher a mais econômica madeira. Hoje em dia se apresenta como um pequeno edifício de madeira rodeado por abeto e um muro, com paredes brancas e o telhado que recebe luz do alto.
Revisitação seguida pelas pequenas igrejas rurais escandinavas, minimalistas nas linhas e materiais, versão religiosa do menos é mais de Mies van der Rohe (a única decoração é o pequeno Anjo da morte dourado esculpido por Carl Milles, que está localizado acima do pórtico de colunas), tão essencial para inspirar o silêncio e a reflexão: a Sgokskapellet representa de alguma forma um modelo de religiosidade muito contemporânea que une o projeto já clássico com outros lugares de oração mais recentes, como a Igreja dos Anastasis de Álvaro Siza em Saint-Jacques-de-la-Lande na França, a Hiroo Church de Tadao Ando, em Tóquio, o mosteiro de John Pawson em Novy Dvur na Boêmia. Mas as suas sugestões parecem muito mais heterogêneas: o Templo do Santo Sepulcro do século XV de Leon Battista Alberti, a Tumba Brion (1970-1975) de Carlo Scarpa, o Grande Silêncio, filme-documentário de Philip Gröning de 2005, ou a Grande Chartreuse a cerca de trinta quilômetros de Grenoble.
Mas, por que pedir a designers para construir réplicas ex novo? "Sempre senti - explica Dal Co - uma dificuldade, uma impaciência com exposições onde se apresenta apenas uma parte do que a arquitetura é: belos projetos, belos modelos, belas imagens, belos rendering. Mas, só quando for construída é que se pode perceber todo o poder e toda a dificuldade que a arquitetura tem quando é praticada na maneira mais significativa".
O número de capelas é simbólico porque expressa quase um decálogo de presenças. Mas aos arquitetos foi imposto apenas manter dois componentes principais: o púlpito e o altar. Para o restante, liberdade absoluta, não por acaso Freespace, espaço livre, é o título escolhido para a Bienal de 2018. E não serão nem mesmo capelas consagradas, embora em muitas esteja presente, embora não tenha sido absolutamente solicitado, o símbolo da Cruz. Não deverão de forma alguma, portanto, ser entendidas como capelas cristãs, mas como locais de encontro e de oração para além da forma e das intenções, para além de qualquer religião. Para cada capela deverá ser, pelo contrário, prevista a possibilidade de reutilização no término da exposição, dando prioridade aos conceitos de "proteção e respeito pelo espaço natural circunstante". Para aproximar os visitantes às razões para essa escolha, na entrada do pavilhão será instalado o Asplund Pavillon onde, ao lado do modelo criado para a ocasião, estarão expostos também os projetos originais de Asplund fornecidos pelo Centro Canadense de Arquitetura de Montreal e pelo Centro Sueco de Arquitetura e Design de Estocolmo. Projetos que - explica ainda Dal Co ao "la Lettura" - "depois de quase um século e em uma região diferente, evocam a busca constante da humanidade pelo espaço sagrado dentro do horizonte espacial da natureza em que se vive”.
Metáfora para um lugar de orientação no labirinto da vida, a capela no bosque representa para Dal Co “também o desafio da arquitetura que consegue trazer ordem com suas formas no caos do universo". E, no fundo, até mesmo da morte. Não muito longe da ilha de San Giorgio, sempre em Veneza, David Chipperfield em 2016 se envolveu com sucesso, da mesma forma que Asplund e Aldo Rossi, vencedor do Prêmio Pritzker, na construção de um cemitério. A nova ala do cemitério monumental do século XIX de San Michele, que hospeda Ezra Pound e Igor Stravinsky e onde um empresário francês do sector farmacêutico adquiriu por 350 mil euros a propriedade do túmulo Salviati, um dos sepulcros super-luxuosos.
A decisão do Vaticano de entrar no horizonte da arquitetura e de sua Bienal, conforme explicou monsenhor Ravasi, durante a apresentação oficial do projeto, "é o resultado de um longo itinerário que começou no final do século XIX, quando foi consumado o divórcio entre arte e fé que durante séculos haviam caminhado juntas. Uma fratura que mesmo em tempos recentes tem produzido edifícios sagrados modestos, desprovidos de espiritualidade e beleza". “O objetivo das Vatican Chapels é, portanto, também o de se reconectar e de facilitar um novo encontro no sinal da multiplicidade e da inter-religiosidade que permitam perspectivas e diálogo". Uma estreia que chega, no entanto, mesmo depois da ausência inesperada na Bienal 2017: "A Santa Sé prefere não concentrar a atenção exclusivamente na Bienal de Arte" de acordo com a justificativa oficial.
No livro (publicado pela Electa Architettura e Antiga) ilustrando o pavilhão e que será apresentado durante a Bienal, monsenhor Ravasi fala de "capela como ‘ecclesiola’", e cita ironicamente O Mercador de Veneza, de Shakespeare para definir a diferença entre um templo e uma capela, uma diversidade que pode se manifestar tanto em nível de imponência externa como de funcionalidade litúrgica: ‘Se fazer fosse tão fácil quanto saber o que seria bom fazer - afirma Pórcia na comédia -, as capelas seriam igrejas, e as choupanas dos pobres, palácios de príncipes’. Na área arborizada, no extremo sul da ilha de San Giorgio não deverão ser identificadas metas definidas ou percursos "de salvação", mas sim uma mais universal encenação da peregrinação da vida. Uma encenação ainda mais livre daquela proposta em sua época por Asplund, que construiu sua capela entre as árvores, mas ainda assim dentro de um cemitério.
Veja alguns projetos já apresentados:
Projeto de Norman Foster | Foto: Cortesia Fostners Partners
Projeto de Carla Juaçaba | Foto: Carla Juaçaba
Capela Asplund | Foto: MAP Studio / ALP
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Outra maneira de rezar. 10 capelas, algumas cruzes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU