20 Abril 2017
"Bela é uma antiprincesa. Diferentemente de Aurora, Branca de Neve e Cinderela, Bela recusa o “príncipe encantado”, que, nesse caso, se arrasta aos seus pés", escreve Philipe Arapian, assistente jurídico da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo em artigo publicado por Justificando, 18-04-2017.
Segundo ele, "destaca-se o conto clássico infantil, em minha opinião, por muitos pontos progressistas".
Eis o artigo.
A Bela e a Fera, refilmagem do clássico da Disney de 1991, atingiu recentemente a marca de 1 bilhão de dólares em bilheteria [1], conseguindo somente no Brasil mais de 7 milhões de espectadores [2]. Após ir ao cinema, reviver uma história de minha infância, algumas cenas me chamaram a atenção. Assim, procurarei fazer uma rápida análise sobre o filme, ressaltando tais pontos que julguei interessantes. Vamos lá.
Bela é uma antiprincesa [3]. Assídua leitora, a única, inclusive, na região onde mora, não se sente à vontade com seus pares. É vista como uma outsider pela população dali (na canção inicial, repete-se o coro de que ela é “muito estranha”), sendo constantemente repreendida, e até ameaçada de punição, por ensinar garotas a lerem (isso mesmo, você ouviu bem!). Inteligente, é inventora juntamente com seu pai de projetos científicos e tecnológicos, e deseja uma vida muito maior do que a de uma simples dona de casa. Sim, Bela é uma revolucionária!
Diferentemente de Aurora, Branca de Neve e Cinderela, Bela recusa o “príncipe encantado”, que, nesse caso, se arrasta aos seus pés. Gaston, aliás, é o estereótipo perfeito. Branco, forte, machão, arrogante, machista, é o solteiro mais cobiçado daquele condado da França, acreditando que pode casar com Bela quando quiser, sendo que bastaria apenas insistir (afinal, o “não” da mulher não existe, é só um charme). Intimida-a constantemente, assediando-a em cena que na versão animada não perde em nada para as recentes protagonizadas por Marcos no BBB17, ou por qualquer outro homem que acredita seriamente existir a mulher somente para lhe servir, como um objeto sexual, ou para ser colocada em sua prateleira, como um troféu [4].
Bela, no entanto, que não depende de nenhum homem (e jamais se mostra preocupada com isso), em ato de extrema bravura, encara a Fera e aceita tornar-se sua prisioneira perpétua, libertando seu pai. Destemida, ameaça, até mesmo, fugir pela janela da alta torre do castelo. Ainda, depois de conhecer melhor o “ser repugnante”, a “besta selvagem”, e iniciar um debate de Literatura com ela [5], Bela, ao contrário de outras princesas, desconsidera o exterior e começa a sentir algum afeto pelo conteúdo daquele que lhe é apresentado (novamente, recusando os traços do estereótipo “príncipe encantado”, que estão todos em Gaston).
Ao ter conhecimento do atual estado de seu pai, prestes a ser internado involuntariamente (nos moldes da política higienista de alguns de nossos governantes), ela sai à sua procura. Retornando para o povoado, confirma a versão de seu pai sobre a existência da Fera, mostrando-a a todos através do espelho mágico. Nesse momento, Gaston, típico cidadão de bem, coroa sua participação com um discurso de “Lei e Ordem” mais atual que nunca, de fazer inveja a Bolsonaro, que não faria melhor. Inicia-se uma fala cheia de ódio, repleta de afirmações falaciosas (mas sedutoras), enquanto Bela (calada por ele constantemente, no melhor estilo manterrupting [6]) tenta explicar que aquela “barata” [7], o inimigo da vez, o “outro”, não é nada daquilo que aparenta, e que o verdadeiro monstro seria Gaston. Nesse momento, o bravo guerreiro se utiliza do velho discurso fascista: “Se não está com nós, então está contra nós!”, e ordena que Bela também seja internada. O que é feito imediatamente, sem nenhuma objeção.
Essa cena é realmente chocante, pois os ânimos à flor da pele inflamam toda a população, que de uma hora para outra (após um devido processo legal apurado na velocidade da luz) chega a um veredito unânime, o de matar o criminoso. Aquele que jamais havia aparecido em lugar nenhum, que ninguém nunca havia ouvido falar, mas que certamente iria “aterrorizar a todos”, “comer os seus filhos”, “massacrar a aldeia” etc., e que somente com o seu extermínio “a paz voltaria a reinar e tudo voltaria ao normal” [8]. Impressiona-se, portanto, a real semelhança com os atuais discursos de defesa social proferidos por Datena´s e Marcelo Rezende´s diariamente em rede nacional, e a sua pronta aceitação por grande parte da população. Discursos, aliás, invariavelmente feitos contra o criminoso em si, e raramente contra as reais causas da criminalidade e da violência.
Ressalta-se que Bela também se posiciona corajosamente em defesa da Fera, exercendo o famoso papel da defesa do “um contra todos” [9], brilhantemente explanado por Amilton Bueno de Carvalho, quando leciona sobre o papel do advogado ou do defensor público no processo penal. Depois de toda a multidão marchar em prol da aniquilação do monstro, Bela consegue fugir, chegar ao castelo e, ao fim, demonstrar amor por aquele que todos só tinham ódio.
Assim, destaca-se o conto clássico infantil, em minha opinião, por muitos pontos progressistas. Foge do padrão ao apresentar uma protagonista ousada que encoraja meninas a buscarem ser o que quiserem [10], e, principalmente, ao mostrar um príncipe que possui aparentemente as características de um vilão, e um vilão que possui as características de um príncipe. O vilão, nesse caso, não é uma bruxa má, um mago maligno, ou mesmo um tio que mata o irmão e põe a culpa no sobrinho, o vilão aqui é o bonitão, cidadão de bem, cheio das “brincadeiras” machistas, idolatrado, e que escreveria no face #Bolsomito. Que fique a lição!
Notas
[1] Somente outros 13 filmes alcançaram tal feito.
[2] A bela e a fera
[3] Bela, na versão live action, chega a afirmar expressamente em uma cena que “não é uma princesa”.
[4] Gaston afirma várias vezes que deseja casar com Bela simplesmente pelo fato de ela ser a mais bonita do vilarejo.
[5] Tal cena só existe na refilmagem. Lembra-se que Bela, na versão original, reclama por não possuir ninguém para conversar.
[6] A palavra é uma junção de man (homem) e interrupting (e interrupção). Em tradução livre, manterrupting significa “homens que interrompem”. Este é um comportamento muito comum em reuniões e palestras mistas, quando uma mulher não consegue concluir sua frase porque é constantemente interrompida pelos homens ao redor. Acesse aqui.
[7] Recomenda-se veementemente assistir ao 5º episódio da 3ª temporada da série Black Mirror: “Engenharia Reversa”.
[8] As frases são muitas e todas nesse naipe, inclusive, tal cena introduz um dos atos musicais do filme. Link da versão animada.
[10] Sabe-se da crítica feita pelo fato de Bela, ao final, se casar com um príncipe. Porém, ressalva-se que se trata de um conto de fadas; dessa maneira, acredito que, mesmo com essa crítica (e outras), há muitos pontos positivos para serem ressaltados por tudo que a história apresenta.