A Idade Média oculta. "Qual Francisco?" Um novo livro de Chiara Frugoni

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15 Agosto 2016

"Canonizado em 1228, apenas dois anos depois da morte, Francisco foi transformado em relíquia, fechado em uma grande basílica, enquanto o movimento que ele havia fundado se transformava e, já como instrumento útil para o papado, era dilacerado pelas lutas internas."

A opinião é da historiadora italiana Marina Montesano, professora da Universidade de Messina, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 12-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Alguns meses atrás, Chiara Frugoni publicou um livro esplêndido (pelo conteúdo e pelo aparato de imagens) sobre os afrescos da basílica superior de Assis: Quale Francesco? Il messaggio nascosto negli affreschi della basilica superiore ad Assisi [Qual Francisco? A mensagem escondida nos afrescos da basílica superior de Assis] (Ed. Einaudi, 608 páginas) faz alusão, já a partir do título, à dificuldade de definir de modo unívoco a figura do santo de Assis.

Canonizado em 1228, apenas dois anos depois da morte, foi transformado em relíquia, fechado em uma grande basílica, enquanto o movimento que ele havia fundado se transformava e, já como instrumento útil para o papado, era dilacerado pelas lutas internas.

A sua biografia era "normalizada" pela Vita maior e pela Vita minor de Boaventura de Bagnoregio. Os seus seguidores mais próximos (entre aqueles que não haviam sido declarados hereges e, como tais, perseguidos) eram silenciados, ou exilados, ou enviados como missionários para a Ásia.

Que Francisco celebrar em tal situação? Não é por acaso que a basílica de Assis, erigida em sua honra e que tinha acolhido os seus despojos, permaneceu desprovida de afrescos por cerca de meio século; apenas nas últimas décadas do século XIII é que começaram com Cimabue e, depois, com Giotto os programas iconográficos que hoje admiramos; mas que, por sua vez, não são de fácil leitura. Até a chegada deste livro, que, por primeiro, decodifica o programa da basílica superior, partindo da idealização, passando pelas diversas fases e chegando até os afrescos; não apenas os que Giotto dedicou para ilustrar a vida de Francisco, mas também aos dos apóstolos, de Jesus, do Apocalipse. E ainda aos vitrais, aos móveis litúrgicos, à orientação: em suma, a basílica considerada como um corpo único.

Sem revelar demais, porque o livro deve ser lido, a "mensagem escondida" a que o subtítulo faz alusão diz respeito à imagem de uma fé cristã e de uma Igreja renovada pelo Homem dos Estigmas e, portanto, já pronta para os Tempos Últimos do Apocalipse. O que mais impressiona é o modo pelo qual, em torno de Francisco, da sua Ordem, da sua basílica, podem girar e se entrelaçar temas absolutamente mundanos e discursos meta-históricos.

O que, em certo sentido, também é captado em um tema mais de nicho, mas muito caro aos estudos entre antropologia e história medieval: a lenda do chamado "Prete Gianni". O primeiro a falar a respeito deve ter sido o bispo Hugo de Jabala; quem refere isso é o chanceler imperial Otto de Freising, testemunha em 1145 do encontro em Viterbo entre Hugo e o Papa Eugênio III.

Gianni seria, ao mesmo tempo, um rei e um padre que vivia além da Pérsia e da Armênia, no distante Oriente de contornos indefinidos, e guiaria um povo cristão à frente do qual teria derrotado dois soberanos chamados "Semiardi". Este e outros detalhes da narrativa remetem amplamente ao Romance de Alexandre; mas o que interessava aos prelados do século XII era a possibilidade de estreitar com ele uma aliança antimuçulmana.

Pouco tempo depois, na Europa, começaram a circular epístolas enviadas pelo PreteGianni: a primeira chegou ao imperador de Constantinopla, Manuel Comneno, seguida por uma segunda versão endereçada ao Barba Ruiva. Depois, coube ao papa e ao rei da França.

Muitos o teriam procurado: dos viajantes ao longo da Rota da Seda até os portugueses na Etiópia. Mas a historicidade do personagem e a proveniência dessas cartas foram objeto de um debate filológico- historiográfico nunca concluído. Se reina um acordo ao estabelecer que essas cartas são um falso de provável origem imperial, em que o rex et sacerdosGianni contém uma alusão à sacralidade da figura do imperador, então em polêmica com as teorias teocráticas pontifícias, resta esclarecer se e, eventualmente, qual personagem histórico as inspirou.

E é sobre isso que historiadores e filólogos se exercitam há muito tempo. Agora, foi publicado um belo livro de Marco Giardini, Figure del regno nascosto. Le leggende del Prete Gianni e delle dieci tribù perdute d’Israele fra Medioevo e prima età moderna [Figuras do reino escondido. As lendas do Preste João e das dez tribos perdidas de Israel entre a Idade Média e a primeira Idade Moderna] (Ed. Olschki, 352 páginas), que, assim como Chiara Frugoni com Francisco, adota uma perspectiva nova: que mostra o entrelaçamento entre o patrimônio lendário inerente ao Prete Gianni e o da história do povo de Israel, ambos destinados a alimentar o imaginário escatológico de cristãos e judeus.

Também nesse caso, aconselha-se a leitura que acompanha a argumentação nada fácil de Giardini para compreender o sentido dessas "figuras do reino escondido", como ele as chama.

Ambos os livros, de modos diferentes, mostram a imensa riqueza e vivacidade culturais da época entre os séculos XII e XIII.

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