‘Israelenses se cansaram da aliança entre religião e política’, diz rabino

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30 Setembro 2013

Com a Primavera Árabe apagando os holofotes do conflito israelense-palestino, em Israel, uma fragmentada sociedade civil redobrou os esforços para olhar para si mesma. E descobriu que 74% da população veem a tensão entre laicos e religiosos como seu mais grave problema.

Uma pesquisa da ONG Hiddush, cujo diretor é o rabino Uri Regev, que defende a liberdade religiosa e a igualdade, mostrou que 76% dos israelenses estão insatisfeitos com a atuação do governo em questões inerentes ao cruzamento entre Estado e religião. Mais do que a pobreza e as velhas disputas políticas entre direita e esquerda, a tensão religiosa incomoda: da segregação de sexos defendida pela ultraortodoxia, à falta de transporte público no shabat, o sábado judaico. 

A entrevista com Uri Regev foi publicada no jornal O Globo, 29-10-2013.

Eis a entrevista.

Que tipo de tensão entre laicos e religiosos se sente em Israel hoje?

Esse é o conflito interno mais difícil de Israel, mais de 30 pontos percentuais à frente da tensão entre direita e esquerda e aquela entre ricos e pobres. É uma força sentida em muitos aspectos da vida privada e do Estado. Por exemplo, na segurança. Desde que em 1948 David Ben Gurion concordou em dispensar do serviço militar 400 alunos se seminários rabínicos, sobreviventes do Holocausto, para que continuassem seus estudos religiosos após a Segunda Guerra Mundial, esse número cresceu para mais de 60 mil, que hoje respondem por cerca de 14% dos recrutas. E a percentagem continua crescendo rapidamente. Esta não é apenas uma tensão conceitual, mas expressa o medo de líderes militares de haver dano real à segurança nacional devido à redução de recrutas. São 60 mil a menos! Da mesma forma, você pode ver a tensão na economia, quando especialistas alertam sobre a maior ameaça para o futuro da economia israelense, alertam sobre a recusa dos ultraortodoxos em entrar no mercado de trabalho, fomentando a criação de um sistema social financiado por um Estado que fica à espera da autonomia dessas pessoas, estudando em seminários rabínicos indefinidamente, sem trabalhar para sustentar suas famílias.

Existem muitas áreas onde a tensão perceptível, como o crescente fenômeno da exclusão das mulheres por causa do extremismo religioso. Há a recusa em ensinar nas escolas religiosas para os meninos matérias como matemática, ciências, inglês e cidadania. Temos problemas de radicalização do tratamento de mulheres que não conseguem divórcios nos tribunais rabínicos, imposição de barreiras para a conversão e muito mais. E há também a tensão em muitos bairros do país, onde os moradores laicos temem que o predomínio religioso possa atrapalhar seu modo de vida e a dinâmica de tolerância.

A quem se pode atribuir o crescimento dessas tensões?

É difícil apontar um culpado único e uma solução única. A chave, eu acho, está na necessidade de cumprir a promessa da declaração de independência do Estado de Israel, que destaca o compromisso com a liberdade religiosa, de consciência e igualdade, independentemente do credo. Uma questão importante a ser abordada é a igualdade do compromisso civil, da relação entre o serviço militar e a participação no mercado de trabalho. Começamos a cuidar disso depois do protesto social que se refletiu nas eleições do início do ano. E depois da decisão histórica da Suprema Corte no ano passado, quando os magistrados rejeitaram a isenção do serviço militar aos estudantes de seminários rabínicos; entenderam que, como política, trata-se de algo incompatível com o princípio da igualdade.

Além disso, debates como a exclusão das mulheres, por exemplo, ganharam a esfera pública e jurídica. A violência e o abuso contra mulheres e meninas em Beit Shemesh, o fenômeno da pressão religiosa para que mulheres se sentem na parte de trás dos ônibus, as pressões para tirar as mulheres de várias funções do Exército... Hoje, há por exemplo, um projeto de lei em discussão no Parlamento para tornar crime a exclusão e discriminação de mulheres. Isso tudo também aumentou ainda mais a consciência sobre o uso do dinheiro público para promover os interesses ortodoxos de forma inadequada e injusta, como apontou recentemente um relatório sério da Controladoria do Estado.

Mas e a ingerência religiosa na vida privada das pessoas, como a inexistência de casamento civil? Há alguma mudança?

É outro aspecto que precisa ser mudado, essa interferência em casos onde a comunidade ultraortodoxa não se satisfaz em manter sua vida religiosa, mas também exige ditar as regras a serem cumpridas por todo o povo judeu. Principalmente no tema dos casamentos, separações e do Shabat (o sábado judaico, dia de descanso, onde lojas e transporte público, por exemplo, não funcionam). Nesse caso, a solução é clara, e a maioria do povo apoia, inclusive muitos do movimento chamado ortodoxia moderna, a criação de registros civis de casamento e divórcio, aumentar as atividades públicas permitidas no Shabat, como o transporte público.

Isso é claramente necessário ao pluralismo judaico. O fato de haver pressão dos partidos religiosos,contra a vontade da maioria do público, para que ainda não sejam reconhecidos oficialmente em Israel as correntes conservadoras e reformistas do judaísmo afeta o livre arbítrio dos judeus não religiosos. Essas são as maiores correntes do judaísmo! De tempos em tempos, isso também cria tensão entre Israel e os judeus da diáspora, a grande maioria não ortodoxos, que se sentem ofendidos com as políticas do governo e a discriminação legal.

Que impacto tem a pesquisa da ONG neste momento em que os ultraortodoxos estão na oposição, longe da coalizão do premier Benjamin Netanyahu? Esse quadro favorece mudanças?

Os ultraortodoxos estão fora da bancada governista graças à vontade dos partidos da coalizão. Depois de tantos anos ocupando postos centrais no governo e no Parlamento, isso mostra o quanto o público cansou dessa aliança nada sagrada entre religião e política. Pudemos ver esse espírito em pesquisas, mas o sistema político tem e sempre teve as considerações dele, preferindo ignorar a vontade do público para ganhar o apoio ultraortodoxo para suas coalizões. Eu temo que se as atuais tensões internas levarem a coalizão ao colapso antes do término do mandato, o primeiro-ministro não vai hesitar em voltar e preferir a velha parceria com os ultraortodoxos, mesmo que o preço disso seja a contínua deterioração dos princípios da democracia, da liberdade religiosa, do pluralismo e dos direitos humanos.

Por isso, é importante o trabalho de aumentar a consciência pública, a análise dos fatos e as implicações, apontando para as graves consequências de misturar religião e política. Por isso, é preciso destacar a necessidade vital de uma coalizão civil, essencial para promover uma agenda civil, que respeite os valores fundamentais de Israel como Estado judeu e democrático. Pesquisas que fizemos poucos dias antes e depois da eleição deixaram claro que as considerações sobre liberdade religiosa e igualdade foram significativas para o voto dos israelenses. E que existe um apoio enorme para que os partidos religiosos fiquem de fora da coalizão. Falo não só de novos partidos como o Yesh Atid (Há Futuro, de centro), Trabalhista e Meretz (esquerda), mas até da própria coligação governista, Likud Beitenu. Pelo menos 87% do eleitorado do próprio Netanyahu preferiram um governo secular, capaz de levar adiante uma agenda de liberdade religiosa e igualdade.

Como essa mistura entre política e religião afeta o conflito árabe-israelense?

Há anos, o Instituto de Pesquisas para a Paz da Universidade de Tel Aviv mostra que existe uma correlação entre as posições religiosas extremas e posições políticas de extrema-direita. Em geral, os partidos religiosos apoiaram a política da direita para os territórios palestinos e os assentamentos. Além disso, estudos do Instituto para a Democracia de Israel indicaram que o grande maioria do público ultraortodoxo e cerca da metade do público religioso nacionalista se opõem à igualdade de direitos para os árabes. Dados de vários anos também mostraram o que pensam esses jovens religiosos em Israel. A maioria dos jovens ortodoxos e ultraortodoxos está seguro de que deve-se impedir os cidadãos árabes Israel de se elegerem para o Parlamento. Quase a metade deles respondeu que o sentimento mais exato que descreve sua atitude para com os árabes é o ódio.

Existe um milhão de árabes cidadãos israelenses. Eles veem alguma diferença entre esses árabes-israelenses e os palestinos?

Esses exemplos se referem ao árabes israelenses. Mas temo que eles nos ensinam muito, dão material para notar como a educação religiosa entre muitos segmentos dessa população contribui para a negação da igualdade humana, para a rejeição da possibilidade de harmonia com os árabes. É claro que também há figuras religiosas proeminentes que pregam o contrário. Mas as estatísticas mostram que a influência política dos partidos religiosos de fato também pode dificultar o processo de paz.

Netanyahu está no poder desde 2009. Diria que a influência da religião na vida política aumentou nestes anos?

A verdade precisa ser dita. As considerações políticas que levaram líderes de partidos laicos a fazer alianças com legendas ultraortodoxas em troca de novas leis religiosas, recursos públicos ou controle de postos centrais do Estado independem de direita ou esquerda. Governos comandados pelo Partido Trabalhista e também outros governos do Likud antes de Netanyahu fizeram essas parcerias sem hesitar, em vez de entender a necessidade de encontrar formas de cooperação entre direita e esquerda para fortalecer a sociedade civil e os valores de liberdade, tão importantes não só para a democracia como para o fortalecimento do judaísmo. O aumento e a diminuição dessa influência são fruto da pressão do povo, que em alguns ganhou o respaldo de eleições, como a coalizão de Ehud Olmert com o partido laico Shinui e até este atual governo. Às vezes, também foi resultado da interferência da Suprema Corte em alguns casos, como a batalha pela questão da definição de quem é judeu. É um assunto onde a pressão dos judeus da diáspora tem peso equivalente ao dos partidos ultraortodoxos e já impediu algumas exigências dessa comunidade.

Com tanta diversidade, o senhor acredita ser possível separar Estado e religião num país como Israel?

Nós não temos a ambição de separar Estado e religião. E nem achamos que é possível ou desejável uma separação total. O que pedimos é a defesa legítima das promessas feitas na independência de Israel: liberdade religiosa, de consciência e igualdade, independentemente do credo. Nós não achamos que se pode separar completamente. Por exemplo, não vemos nada de errado no fato de o Estado prestar serviços religiosos com base de igualdade de condições para judeus e outras religiões desde que seja relevante e objetivo. O Estado não presta serviços de educação, esportes e cultura? Seria algo assim. Também não vemos impedimento em ensinar a Bíblia na escola, desde que haja uma abordagem pluralista e aberta.

Nós acreditamos que é justamente a liberdade religiosa o fator capaz de fortalecer a identidade judaica em Israel. Isso porque muitos judeus israelenses hoje dão as costas à tradição judaica por rejeitar a natureza política e rótulo empregado pela ultraortodoxia. Dar a qualquer pessoa a possibilidade de se encontrar num amplo espectro do judaísmo contribuirá para o pluralismo, o respeito mútuo e um retorno ao judaísmo através do desenvolvimento de abordagens individuais e de grupo. Mas voluntárias e não forçado pela compulsão das leis do Estado.

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