27 Agosto 2014
"O valor de Downton Abbey não se encontra apenas em suas tramas bem amarradas ou em sua impecável reconstituição de época: a grande contribuição do seriado é retratar, de forma realista, a mudança de época que atingiu a todos nós e sobre a qual continuamos vivendo. Os personagens da série vivem em uma perfeita sociedade Dukheiniana, onde todos tem seu lugar predeterminado, as estruturas são imutáveis e o sentido de vida para cada pessoa se encontra em adaptar-se a este meio. O sopro dos ventos de mudança, vindos de várias direções, porém, vão revelando que esta arquitetura social é sustentada pela naturalização da desigualdade e pelo desencorajamento à transformação." A constatação é de Renato Ferreira Machado, teólogo, ao analisar a série inglesa Downton Abbey.
Eis o artigo.
O breve Século XX, segundo Eric Hobsbawn, iniciou-se com a Primeira Guerra Mundial, em 1914 e terminou com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Teria durando, portanto, setenta e cinco anos ao invés de cem. Este curto espaço de tempo histórico, porém, foi palco das maiores transformações sociais, culturais e políticas já acontecidas neste planeta. De certa forma, ainda estamos nos adaptando às transformações que este período trouxe. Nesse sentido, talvez a maior delas seja a própria mudança de época que, segundo muitas análises de diversos campos do conhecimento, estamos vivendo hoje. Para compreender este cenário, por isso, não é suficiente projetarmos o futuro, com todas as novidades que surgem cotidianamente. É muito necessário olhar o passado e compreender que tipo de tecido social foi rompido pela erupção do Século XX e de que forma isto acabou se tornando nossa forma de enxergar a realidade.
O seriado inglês Downton Abbey vem traçando este panorama de uma forma muito interessante. No ar desde 2010, tendo o início de suas transmissões para o Brasil em 2012, a produção mostra o impacto de uma mudança de época no microcosmo de uma família da aristocracia inglesa, durante o reinado de Jorge V. Residente na herdade chamada Downton Abbey, a família Crawley tem três filhas e, segundo as leis e costumes da época, nenhum herdeiro para seus bens e legado, pois apenas os varões podiam assumir títulos aristocráticos e propriedades como herança. Logo no primeiro capítulo da série fica-se sabendo que o plano para contornar este problema sofre um sério revés: o sobrinho do Conde Crawley, que deveria se casar com sua filha mais velha e garantir, assim, a continuidade da linhagem familiar na propriedade, é dado como morto no naufrágio do Titanic, em 1912. A partir daí introduz-se à trama uma série de personagens que, de certa forma, simbolizam as grandes mudanças que começavam a acontecer.
O primeiro deles é Matthew Crawley, sobrinho distante do conde e herdeiro presuntivo de seu título e propriedades. Matthew é um advogado de Yorkshire e vive com sua mãe, que é enfermeira. Ambas profissões são mal vistas pela aristocracia, pois representam uma classe social que não depende diretamente das famílias aristocráticas – como os inúmeros empregados destas famílias – mas que, ao mesmo tempo, precisam trabalhar para manter sua autonomia. Nesse sentido, aqui se encontra uma primeira ruptura do tecido social sobre o qual aristocratas como a família Crawley se sustentavam: a ideia de uma superioridade natural por parte da nobreza e da dependência de classes inferiores da benevolência aristocrática para poderem viver em sociedade. O estilo de vida de Matthew escandaliza os habitantes de Downton pelo simples fato de que ele e sua mãe conseguem manter sua autonomia sem este tipo de dependência. De certa forma, o caso de Isobel Crawley, mãe de Matthew é ainda mais escandaloso: viúva, ela não voltou a se casar e, em idade avançada, teimava em continuar trabalhando. Além disso, Isobel mantém uma relação de igualdade com os habitantes mais pobres de Yorkshire e tenta fazer o mesmo com a criadagem de Downton. Sua principal oponente acaba se tornando Violet Crawley, condessa viúva e mãe de Robert. Herdeira de todos os costumes aristocráticos do Século XIX, Violet é a verdadeira guardiã dos hábitos britânicos seculares e acredita que mulheres como ela tem seu lugar garantido no mundo, sem precisar realizar muitos esforços para mantê-lo.
Junto à vida dos Crawley, explora-se o cotidiano dos empregados da casa. Numerosos e obedientes a uma rígida hierarquia, vivem disputando a ascensão a melhores postos, sempre sob os rigorosos olhares do mordomo Charles Carson e da governanta Elsie Hughes. É muito interessante perceber que, entre os empregados, o maior alcance de um projeto de vida é continuar servindo a mesma família, na mesma casa, em postos que os aproximem mais de seus patrões. Por isso, no primeiro capítulo da série, a aparição de um antigo companheiro de armas do conde, John Bates, e sua admissão como valete do Conde – ou seja, o empregado responsável pelas vestimentas, higiene e questões mais pessoais do dono da casa – escandaliza o grupo de empregados. Além de passar na frente de outros servos que aspiravam ao cargo, Bates tem um problema físico em uma das pernas, o que é considerado um sinal de inferioridade no contexto cultural da época. Importante perceber, aqui, o quanto estas atividades não eram encaradas como mero trabalho remunerado, mas como sinal de honradez e solidez de caráter. Afinal, o fato de um empregado passar décadas servindo à mesma família demonstrava o quanto de confiança era depositado nele. Por outro lado, ser demitido de uma casa e não levar uma carta de referências da família à qual servia era quase uma condenação à indigência, pois não havia lugar na sociedade para aqueles que não tinham mais a confiança da aristocracia.
Merece destaque aqui também o personagem Tom Branson. De origem irlandesa, ele é contratado como motorista da família – em uma época na qual automóveis eram uma novidade. Branson é simpatizante das ideias socialistas que circulavam com força na Europa do início do Século XX, critica a soberania da Coroa Inglesa sobre seu país, envolve-se nos movimentos sociais que começavam a surgir e questiona o modo de vida de seus patrões e colegas. O destino do personagem é interessante: Sybil Crawley, filha mais jovem da família, cultiva ideias vanguardistas muito próximas às de Tom. Os dois acabam se envolvendo e assumindo uma relação. Sem aceitação da família, ambos se retiram de Downton, indo morar na Irlanda, mas voltam para lá, fugindo dos desdobramentos da Revolução Russa, ocorrida em 1917. Sybil está grávida e morre ao dar à luz. Tom, agora pai de uma Crawley, aceita ser acolhido como membro da família e passa a morar em Downton.
Assim, se a primeira temporada apresenta a família Crawley e seus empregados sendo sutilmente atingidos pelas mudanças que começavam a ocorrer naquele momento da história, a segunda se passa toda durante a Primeira Guerra. Neste período, Downton se torna uma espécie de hospital e casa de repouso para soldados feridos. Não existem hospitais em Yorkshire naquela época e a aristocracia acaba se vendo na obrigação de dar um “uso social” para seu castelo. A terceira temporada, no pós-guerra, mostra a família lidando com o grande número de mortes ocorridos durante o conflito, com os ferimentos de combate sofridos por Matthew Crawley e com a crise econômica que, se abatendo sobre a Europa, atinge os aristocratas. Os desdobramentos disso levarão os Crawley a adotar novas formas de se sustentar economicamente, abrindo espaço para a filha mais velha, Mary Crawley, tornar-se protagonista nas negociações de impostos e propriedades com os quais a família precisa começar a lidar.
O valor de Downton Abbey não se encontra apenas em suas tramas bem amarradas ou em sua impecável reconstituição de época: a grande contribuição do seriado é retratar, de forma realista, a mudança de época que atingiu a todos nós e sobre a qual continuamos vivendo. Os personagens da série vivem em uma perfeita sociedade Dukheiniana, onde todos tem seu lugar predeterminado, as estruturas são imutáveis e o sentido de vida para cada pessoa se encontra em adaptar-se a este meio. O sopro dos ventos de mudança, vindos de várias direções, porém, vão revelando que esta arquitetura social é sustentada pela naturalização da desigualdade e pelo desencorajamento à transformação. E estas revelações não se dão de forma bombástica – como no caso da Primeira Guerra – mas em sutilezas que vão sendo introduzidas aos poucos na trama: personagens que se caracterizam por passar a maior parte do tempo calados e obedientes, começam a fazer perguntas; fica-se sabendo que o rigoroso mordomo Charles Carson, antes de ingressar na casa, era um cantor e ator teatral; lâmpadas elétricas vão substituindo a iluminação de velas e aparelhos eletrodomésticos vão substituindo o trabalho braçal de alguns empregados; as mulheres, que começam a série caracterizadas com pesados vestidos, aos poucos vão adotando roupas mais leves, incluindo calças.
O grande segredo de Downton, porém, está em seu teaser de abertura: nele, o espectador visita diversos aposentos da mansão e, entre outras coisas, vislumbra uma parede onde estão penduradas várias sinetas. Abaixo de cada uma delas está o nome de um aposento ou de um membro da família e presas a estas sinetas estão cordas que se estendem a cada aposento da casa. Quando umas destas sinetas é tocada, o empregado encarregado daquele membro da família deve atender imediatamente, esteja fazendo o que quer que seja. Do outro lado da corda, um membro da aristocracia espera que seu criado apareça magicamente e obedeça às suas ordens, como tem sido ao longo de séculos e, segundo a visão de mundo de alguns personagens continuará sendo eternamente.
Muitos de nós ainda vivemos em Downton Abbey. Mais cedo ou mais tarde, porém, os ventos da mudança acabarão penetrando as frestas de nossa velha mansão. E sentiremos frio.