Por: Caroline | 02 Mai 2014
“O que está claro é que todas as religiões institucionalizadas tendem a diminuir, em diferentes ritmos, sendo o catolicismo a religião que mais decresce. Porém a categoria ‘sem religião’ não nos basta para afirmar em quanto aumentaram os agnósticos e ateus. A categoria ‘sem religião’ pode incluir um amplo campo de pessoas que, sem possuir uma religião particular, constroem seu sistema individual de crenças religiosas. Coloca-se em um mesmo saco a individualização da religiosidade e a negação da crença religiosa (...)” E a partir do contexto chileno o teólogo Alvaro Ramis trata desse relevante tema que extrapola as fronteiras chilenas, em artigo publicado por Punto Final, 30-04-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo
Em que acreditamos? É uma pergunta importante porque todos nós acreditamos em algo, ainda que não nos demos conta. Existem crenças religiosas, mas também políticas, científicas, filosóficas ou aquelas ligadas a vida cotidiana. Ao caminharmos pela rua devemos “crer” que o chão não irá se abrir debaixo de nossos pés, ao circular pela casa “cremos” que as paredes são impenetráveis e por isso as rodeamos e entramos pela porta. Por isso Ortega e Gasset dizia que “crenças são todas aquelas coisas com as que contamos absolutamente, ainda que não pensemos nelas. Temos certeza de que existem e de que são como acreditamos, não nos questionamos sobre elas mas, automaticamente, nos comportamos levando-as em consideração” (1). Em outras palavras, temos as ideias contudo as crenças “estão”, se “vive” nelas, as temos como postas, como a roupa ou os sapatos, que já não sentimos a menos que nos incomodem.
As crenças instalam-se acima das vontades próprias. Respondem a certos usos, a heranças culturais, tradições e circunstâncias. São as percepções que estão no ambiente, próprias da época ou da geração em que vivemos. Por isso as crenças mudam de geração em geração. As pessoas mesmas não pensam em mudar suas crenças, porque tendem a buscar certa coerência biográfica, mas seus filhos ou netos podem crer de outra maneira.
Chile, um país católico?
Alberto Hurtado, além de sua obra assistencial, social e política, produziu um dos primeiros estudos importantes de sociologia religiosa em nosso país. Em seu famoso É o Chile um país católico?, de 1941, Hurtado revisa as crenças dos chilenos e se assombra, tendo os dados em mão, frente ao enorme contraste entre a religião declarada e a religião praticada. Enquanto a enorme maioria declara-se católica, apenas menos de 2% se reconhecia como evangélica. Os ateus e agnósticos eram uma minoria ainda menor, e os estudos não se preocupavam com as outras crenças. Porém Alberto Hurtado já adverte que esta aparente homogeneidade trata-se apenas de uma fachada. O Chile já não era um país católico por forças das convicções, mas pelo peso das tradições e dos costumes. Faltava apenas esperar que o tempo passasse para que as gerações seguintes assumissem novas crenças, tal como vem ocorrendo atualmente.
Hoje o Chile é um país cada vez mais plural em relação às crenças. De acordo com o Censo de 2012, 67,4% declaram-se católico, quase 2,5 pontos a menos que em 2002. Uma queda importante, mas muito menor que a ocorrida entre 1992 e 2002, quando os católicos diminuíram de 76,7% para 69,9%. De sua parte, os evangélicos aumentaram levemente, passando de 15,14% para 16,62%. Em 2012 inclui-se, pela primeira vez, a opção de declarar-se budista, baha’i ou ligado a espiritualidade indígena, as que somaram, em conjunto, apenas 0,21%. Os dados de mulçumanos são estáveis e todas as demais religiões (judia, mórmon, ortodoxa e testemunhas de Jeová) diminuíram. Se levarmos em conta todas as crenças religiosas incluídas no Censo de 2012, podemos concluir que a religião evangélica é a única que aumenta, muito ligeiramente, sobre o crescimento da população. Contudo, analisando esses dados o teólogo evangélico Juan Sepúlveda conclui que “ainda que a população evangélica seja a única que continua crescendo, os dados do Censo 2012 também não justificam atitudes triunfalistas por parte das lideranças evangélicas. Seu crescimento entre 2002 e 2012 é de 0,64 pontos percentuais abaixo do crescimento que teve entre 1992 e 2002. Além disso, esse aumento pode refletir, em parte, a diminuição das pessoas de ‘outra religião ou crença’, ou um melhor desempenho dos recenseadores”. (2)
Por isso, o dado que é realmente uma novidade em 2012 foi o aumento das pessoas que se declararam sem religião, chegando a um total de 11,58%, cerca de 3,16% a mais que em 2002. Para analisar e evolução desta tendência dever-se-ia somar as dados precisos por regiões, comunas e idades, aos que não se pode ter acesso devido à desastrosa gestão anterior do Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Contudo pode-se imaginar que entre os jovens produziu-se um crescimento importante dos sem religião. Quando pudermos ter acesso a esses dados poderemos analisar com mais detalhes a magnitude e o alcance do giro laico produzido na última década. O que está claro é que todas as religiões institucionalizadas tendem a diminuir, em diferentes ritmos, sendo o catolicismo a religião que mais decresce. Porém a categoria “sem religião” não nos basta para afirmar em quanto aumentaram os agnósticos e ateus. A categoria “sem religião” pode incluir um amplo campo de pessoas que, se possuir uma religião particular, constroem seu sistema individual de crenças religiosas. Coloca-se em um mesmo saco a individualização da religiosidade e a negação da crença religiosa, o que deveria ser consultado em um próximo Censo de forma perceptível e distinta.
Os três deuses dos chilenos
Estas estatísticas globais ocultam a diversidade interna de cada religião. Não se pode pensar que 67,4% que se declara católico acredita no mesmo, ou que os 16,62% de evangélicos sejam homogêneos. Além disso, as fronteiras confessionais não são nunca absolutas. É comum que católicos e evangélicos, no mundo popular, compartilhem com muitas outras crenças entre eles, mais do que com pessoas da mesma religião, mas que, pertencem às classes mais privilegiadas. Para penetrar nessa diversidade os dados não são suficientes, é necessário propor um método interpretativo que permita compreender o que Sallie McFague chamou de “modelos de Deus” (3) dentro das diferentes religiões. Proponho identificar três modelos de Deus dos chilenos:
1. Deus como uma ordem perfeita: Para ilustrar esta religiosidade vale a opinião da pesquisadora do Instituto Liberdade e Desenvolvimento, ligado a UDI, Maria Cecília Cifuentes, que em 27 de junho de 2013 declarou no Twitter: “Não compartilho com J. Sachs que a causa da infelicidade seja a desigualdade, ela sempre existiu. Penso que está relacionada à falta de Deus”. Em esses poucos caracteres cabe todo um tratado de teologia. O mundo foi criado por Deus como uma ordem perfeita, que o ser humano, desobediente e rebelde, se obstina a mudar. Sobre as leis humanas existiria uma lei natural, imutável e eterna, que dita como as coisas devem ser feitas. Portanto, a felicidade está em acatar o que Deus manda: aceitar a eterna desigualdade econômica, o poder dos poderosos, a riqueza dos ricos e a pobreza dos pobres. Deus providenciou uma ordem estratificada dentro da qual cada um deve buscar sua própria felicidade. Obviamente este Deus é extremamente conveniente para aqueles que têm os privilégios, mas extremamente ingrato para aqueles que vivem na miséria ou em contextos de injustiça.
O Deus da ordem perfeita abarca todas as dimensões humanas, ditando relações de hierarquias verticais entre homens e mulheres, raças, classes e países, as quais não podem ser alteradas sem desobedecer à vontade divina. Inclusive, o próprio Deus desenhou uma ordem econômica baseada em leis eternas, as que seu afronte é por desejo de regular ou modificar. Por algo assim a própria María Cecilia Cifuentes foi justificar a acumulação e a especulação de preços de produtos básicos que foram detectados em Iquique e Alto Hospicio, regiões próximas ao litoral chileno, após o terremoto no Grande Norte, dizendo: “Se tens dez laranjas e cem possíveis compradores, as sorteia? As coloca em uma pinhata? Ou as vende pelo melhor lance?” (4). Cobrar pela água engarrafada 7.000 pesos ou 3.000 pelo quilo do pão não é, de acordo com a teologia de Deus da ordem perfeita, um problema moral. É simplesmente um efeito da lei econômica natural que, por meio do livre fluxo da oferta e da demanda, determina sempre o preço que os produtos dever ter. Não é estranho que a religiosidade das oligarquias se fundamente nestes princípios. Contudo o que nunca deixa de surpreender é que as pessoas que sofrem diretamente os efeitos desta racionalidade religiosa, tenham aderência fervorosa a ela.
2. Deus como consolo perfeito: Este é o segundo modelo que, diferentemente do anterior, não sacraliza a ordem estabelecida nem o considera imodificável. Frente ao sofrimento humano, Deus aparece como fonte de consolo e alívio. Nas sociedades tradicionais esperava-se que o Deus do consolo fosse um Deus curador, que fizesse milagres e eventos maravilhosos. Mas na alta modernidade esta lógica tem mudado devido a uma tendência e entender a prática religiosa como experiência terapêutica, especialmente no âmbito psicológico e emocional. O deus consolador não faz milagres, mas consegue harmonizar a vida, dar sentido, integrar uma comunidade de pertencimento, elevar a autoestima, relaxar, motivas, etc.
O Deus do consolo explica o crescimento exponencial que experimentou o pentecostalismo na América Latina entre os anos quarenta e oitenta do século passado. Christian Lalive D’Épinay estudou este fenômeno em O Refúgio das massas (5), no qual demonstrou como o traumático trânsito de milhões de pessoas do campo para a cidade encontrou o aconchego associativo das igrejas pentecostais como um refugio adequado que diminuiu os efeitos despersonalizadores e massificantes da transformação capitalista do continente.
Hoje, o Deus do consolo faz parte do mercado da autoajuda, onde se oferece a espiritualidade por meio da yoga, reiki, chi kung, analise dos chakras, meditação transcendental, tai chi e muitas outras experiências similares, inspiradas principalmente no Oriente. Todas estas buscas são saudáveis e proveitosas. Todavia, há um aspecto que esta religiosidade não consegue abarcar. Este Deus oferece seu consolo sem distinção, não importa o que se faça ou deixe de fazer. O mais cruel gerente de uma multinacional poder pedir o auxilio do Deus do consolo, por meio da terapia espiritual que mais lhe satisfaça, que alivie seus stress e assim possa voltar no dia seguinte ao seu escritório e continuar espremendo aqueles que quer esmagar. Trata-se, assim, de uma religiosidade que tende a ser acrítica e despolitizadora.
3. Deus como justiça perfeita: Esta religiosidade percebe que o atributo divino mais importante é “o justo”. Mas esse Deus da justiça perfeita contrasta com um mudo cheio de injustiça, que aparece como uma contradição absoluta, que leva a situação totalmente oposta a do Deus da ordem perfeita. A ordem vigente não é desenhada por Deus, mas é um espaço de injustiça radical que é necessário transformar para que se aproxime de forma progressiva ao critério absoluto do justo, personificado no próprio Deus. Por isso, este é o Deus dos defensores e defensoras dos direitos humanos, como Gandhi, Martin Luther King, Rosa Parks, Malcom X, Desmond Tutu, Oscar Romero, Pedro Casaldáliga, Helmut Frenz, Alfonso Baeza, Carolina Mayer e tantos outros e outras.
O Instituo Nacional de Direitos Humanos inaugurou em dezembro de 2013 um belo sitio web dedicado a honrar e divulgar a memória dos defensores e defensoras dos direitos humanos no Chile (6). Ele abarca pessoas que lutaram a favor do direito ao voto, do direito a educação, a liberdade de expressão, os direitos dos povos indígenas, pelo reconhecimento da diversidade sexual, pelos migrantes e refugiados e as vítimas da ditadura. Um nutrido grupo era crente em Deus e outra parte não. Contudo todos, invariavelmente, acreditavam na justiça, na dignidade humana, na igualdade entre homens e mulheres, ricos e pobres, mapuches e huicas, homossexuais e heterossexuais, chilenos, peruanos ou bolivianos. Todos eram, em um sentido amplo, “crentes”, porque todos assumiam estes direitos como evidentes e irrenunciáveis. Não precisavam de maior fundamentação além de sua profunda consciência de que cada ser humano é um fim em si mesmo, e nunca um meio, uma cifra ou um preço.
Notas:
(1) José Ortegae Gasset, Ideas y creencia (y otros ensayos de filosofía), Alianza, Madrid, 2005.
(2) Juan Sepúlveda, “ Religión evangélica es la única que crece en Chile, pero crece menos que la no creencia”, em http://www.sepade.cl/noticias/display.php?id=734
(3) Sallie McFague , Models of God , Fortress Press, Filadelfia, 1987.
(4) @ccifuenteslyd, 3 de abril de 2014.
(5) Christian Lalive D’Épinay, El Refugio de las masas. Estudio sociológico del protestantismo chileno , Ed. del Pacífico, Santiago, 1966.