Por: André | 29 Mai 2015
“Parece-me que as eleições refletem certa contradição muito humana: um desejo de mudança e um medo da mudança. O primeiro, porque a situação “já fede” mais que o cadáver de Lázaro. O segundo, por aquilo que eu disse em artigo anterior e que é reflexo da sensibilidade popular: “mais vale o mau conhecido do que o bom por conhecer”.
A análise é do teólogo espanhol José Ignacio González Faus, jesuíta, publicada no seu blog Miradas Cristianas, 26-05-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Demasiado cedo, apenas como primeiras impressões e antes de saber o tipo de alianças que vão acontecer, parece-me que as eleições refletem certa contradição muito humana: um desejo de mudança e um medo da mudança. O primeiro, porque a situação “já fede” mais que o cadáver de Lázaro. O segundo, por aquilo que eu disse em artigo anterior e que é reflexo da sensibilidade popular: “mais vale o mau conhecido do que o bom por conhecer”. Para esse balanço apontam os casos que vou comentar.
1.- “Sim, é possível”
Paradoxalmente, onde mais se reflete esse balanço é ali onde não parece realizar-se: o caso de Barcelona. Nunca votei nem votarei convergente (e nisso estou a anos luz da Lucía Caram). Mas a nobreza obriga a reconhecer que talvez Xavier Trías era o prefeito que menos merecia ser mudado: por honestidade pessoal e porque a sua gestão, acredito, também não foi tão desastrosa.
Por que então perdeu e nem sequer consegue essa “minoria maior” que, seguramente, impedirá o PP de governar na maioria dos municípios? Simplesmente porque não tinha diante de si uma promessa desconhecida, mas alguém que já atuou (francamente bem, além disso) e demonstrou que “é possível”. Ada Colau podia esgrimir fatos e não apenas palavras. E isso foi decisivo, até mesmo diante de um adversário mais respeitável.
2.- “Tu mais”
O mesmo não aconteceu com o PSOE: embora tenha salvado os móveis, perdeu. E só pode consolar-se com o placebo de que “o PP perdeu mais”. Nas eleições gerais passadas, escrevi que o PP se equivocaria ao tomar como um voto de confiança neles, o que era apenas um voto de castigo dos socialistas. E tenho certa sensação de que a população ainda quer continuar castigando o PSOE: porque, segundo a minha humilde maneira de entender as coisas, há dois pecados pelos quais o PSOE não mostrou nem contrição nem propósito de emenda.
O primeiro é a reforma da lei eleitoral que lhe assegurava muitas cadeiras que com uma lei mais equitativa, poderia ter ido à Esquerda Unida (IU). O segundo, a reforma na nomeação dos poderes judiciários, o que lhe garantia uma dose importante de controle sobre a Justiça (embora não quisesse toda a Justiça). Sem negar a vontade de honestidade pessoal de muitos juízes, quando deve seu cargo a um poder político, se está quebrando uma separação de poderes fundamental para a democracia. Onde o PSOE foi mais derrotado foi em sua defesa secreta do bipartidarismo.
3.- Satisfação insatisfeita
Também não houve uma mudança “à Ada Colau”, no caso do Podemos, que, seguramente, esperava mais se olhamos o que dizia durante a campanha. Nesta satisfação insuficiente podem ter pesado fatores negativos e positivos.
Entre os primeiros está o pequeno escândalo Monedero, que (embora leve em comparação com os casos de corrupção) não foi explicado satisfatoriamente e foi aumentado pelos meios de comunicação, em comparação com os outros. Além disso, os pequenos atritos entre eles, embora sejam normais e compreensíveis entre os humanos (basta reler a história da Igreja primitiva apesar do fervor da recente conversão), constituem também uma carniça para os meios de comunicação que ganham apresentando brigas.
E, positivamente (muito positivo, na minha opinião), está o modesto financiamento de uma campanha eleitoral para a qual o PP contava com 20,5 milhões de euros (quando, para a saúde ou a cultura, não havia um centavo a mais...); em seguida vinha o PSOE, com quase 8 milhões, e o Podemos, com apenas um milhão, dinheiro que, além disso, não provinha de créditos bancários. Isto por si só me parece muito digno de aplausos.
4.- Sem democracia não há progresso
Algo parecido se pode dizer do Progresso e Democracia (UPyD), tão necessitado agora de uma respiração artificial. Este partido creio que tem o mérito de ser aquele que fez mais denúncias eficazes em casos de corrupção. É bom saber também que seu orçamento eleitoral era de apenas 185 mil euros: uma miséria em comparação com o PP. Tudo isso é positivo. Mas, negativamente, creio que pesou o caráter autoritário e pouco dialogante de Rosa Díez, que pretende fazer política com o lema de “quem não está comigo, está contra mim”.
5.- “O que tiver que ser, será...”
Talvez quem tem mais motivos para estar contente é o Cidadãos, precisamente porque parece prometer uma mudança que não é, na realidade, tal: suas propostas seguem sendo vagas e só se concretizam no combate à corrupção. Será preciso ver agora com quem vai fazer alianças, para saber mais. Mas me parece exata a observação de muitos jornalistas de que Cidadãos tirou votos sobretudo do PP. Como se uma parte da população, embora seja de direita, quisesse ao menos uma direita civilizada (o que, na minha opinião, era a grande tarefa que tinha diante de si Rajoy e que não soube aproveitar). Isso, e o fato de ser um partido catalão não soberanista, abriu-lhes muitas portas em nível estatal. Prova disso parece ser seu rápido crescimento nos últimos dias da campanha.
6.- IU ou Uiiii!
A Esquerda Unida (IU) é um partido que inspira temor em muitas pessoas pelas razões que agora direi. Talvez em outros tempos compensava esse medo com a categoria de alguns líderes (Anguita, G. Iglesias, Llamazares) que, na minha opinião, estão entre os políticos mais honestos e mais carismáticos que a nossa democracia já teve. Mas hoje, creio, sofre de liderança capaz de entusiasmar. O que, ao lado do “tsunami bipartidarista”, de algumas rixas internas de última hora e, talvez, ao fato de ter se aliado com o PP em Extremadura, passou-lhes a fatura.
7.- E o medo, por quê?
Este ponto me parece fundamental na minha reflexão. Hoje, a Bolsa já caiu (e na Espanha creio que mais que em outros lugares) e este dado me fez lembrar uma frase indignante de Milton Friedman: “tudo o que se faz para ajudar os pobres, acaba prejudicando-os”. A frase é de um cinismo indignante, porque Friedman a apresentava como uma lei física da nossa natureza, tão mecânica quanto a gravidade ou a velocidade da luz. Mas tem seu ponto de verdade que deve nos obrigar a refletir: porque quem manda no mundo não são os políticos, mas as multinacionais e os Bancos; e estes não tolerarão que se faça política a favor dos pobres.
Mas sem democracia econômica não pode haver democracia política. Por mais que desconfiemos dela e até queiramos exportá-la ou impô-la a outros, a nossa democracia se parece muito com aquilo que o nosso último ditador chamou de democracia “orgânica”. Não sei o que ele queria dizer com isso (talvez na América Latina teriam dito simplesmente “idiota”). Mas está claro que era uma tentativa de lavar o rosto e dar um nome bonito a uma realidade que não o merecia. Este me parece ser o ponto sobre o qual mais deveríamos refletir.
Agora, penso que restam uma pergunta, uma advertência e uma ameaça.
a.- A pergunta é como o PP vai reagir: se continuar a enfiar a cabeça debaixo da asa, convencido de que a realidade não é o que está acontecendo, mas o que se diz que está acontecendo (e eles têm mais voz que ninguém para dizer), e deixando-nos a dúvida de se estão mentindo ou se não tomaram conhecimento: dois modos de proceder muito ruins para um político. Prefiro a reação honesta de Rita Barberá (“não gostei absolutamente destes resultados”) à da senhora Cospedal (“o povo falou e ganhamos”). Por favor!
b.- A advertência poderia ser formulada da seguinte maneira: o povo nos mandou um recado dizendo que dialoguemos. Mas a exigência é dialogar, não “negociar”. Na negociação, abaixa-se as calças e se é capaz de renunciar àquilo que se tinha de mais sagrado desde que se consiga poder (recordemos o primeiro Aznar, com a cota basca, tão contrária às suas ideias). No diálogo se escuta, se argumenta, buscam-se caminhos novos e pontos de confluência. E, finalmente, naturalmente se faz um acordo; mas o acordo é fruto de um encontro, não de um afã obscuro de poder.
c.- E a advertência me é sugerida por uma frase que se ouvia muito na Nicarágua dos anos 80: “Os olhos do mundo estão postos na Nicarágua”. Infelizmente, aquela “Nicaraguazinha, a flor mais linda do meu querer”, decepcionou o mundo e hoje vive envolta em uma mentira tranquilizadora. Muitos olhos estarão fixados agora nos partidos emergentes. E as empresas de comunicação vão comportar-se com eles como aqueles fariseus que iam ao encontro de Jesus para perguntar-lhe com o objetivo de “pegá-lo em alguma contradição”. Tenham isso muito em conta e tenham cuidado: porque aí pode estar a grande esperança do PP, para recuperar-se antes das eleições gerais: sujar tudo o que pode.
E, como contam que dizem os cegos, pois “já vamos ver”.